Pode a mente
ultrapassar o mecanismo coletivo?
É muito difícil, segundo penso, distinguir a
diferença entre o coletivo e o individual, e descobrir onde termina o coletivo
e começa a individualidade; e, também, perceber o significado do coletivo e
descobrir se é possível ficar-se livre do coletivo e promover a integração do
indivíduo. Não sei se já pensastes, ainda que ligeiramente, a respeito deste
problema, que me parece ser um dos problemas fundamentais do mundo,
principalmente na época atual, em que tanto se encarece a importância do
coletivo. Não só nos países comunistas mas também no mundo capitalista, onde se
estão criando “Estados de Bem-Estar”, como é o caso da Inglaterra, se está
atribuindo significação cada vez maior ao coletivo. Criam-se fazendas coletivas
e cooperativas de toda ordem, e, ao considerarmos tudo isso, ficamos a
perguntar-nos qual é o lugar que o indivíduo irá ocupar nesse quadro e se,
afinal, o indivíduo existe mesmo.
Sois um indivíduo? Tendes um certo nome, um depósito
bancário particular, casa própria, certas características fisionômicas e
psicológicas, mas sois realmente um indivíduo? Acho de muita importância
considerar bem esta questão, uma vez que só quando existe a incorruptibilidade
do indivíduo — de que tratarei mais adiante — há a possibilidade de surgir
alguma coisa totalmente nova. Isso significa que cada um precisa descobrir por
si mesmo onde termina o coletivo, se ele de fato termina, e onde começa a
individualidade — o que suscita todo o problema do tempo. Este assunto é muito
complexo e, por ser complexo, precisamos aplicar-nos a ele de maneira simples,
direta, sem dar voltas ao redor dele; e, se me é permitido, vou examiná-lo
nesta manhã.
Peço licença para sugerir-vos observeis o vosso próprio
pensar, enquanto falo, e que não vos limiteis a, escutar meramente, aprovando
ou desaprovando o que se está dizendo. Se escutais apenas para concordar ou
discordar, com uma superficial compreensão intelectual, então esta palestra e todas
as anteriores, serão completamente inúteis. Mas, se sois capaz de observar o funcionamento de vossa própria
mente enquanto o vou descrevendo, esse próprio observar produzirá uma ação
extraordinária, que não é imposta nem forçada.
Acho de muita importância descubramos cada um de
nós, onde termina o coletivo e começa o individual. Ou o nosso pensar —
conquanto modificado pelo temperamento pessoal, pelas idiossincrasias de cada
um — será totalmente coletivo? O “coletivo” é o conglomerado de
condicionamentos vários, nascidos das ações e reações sociais, das influências
educativas, das crenças, dogmas e preceitos religiosos, etc. Todo esse mecanismo
heterogêneo constitui o coletivo, e se examinardes, se olhardes a vós mesmos,
vereis que tudo o que pensais, vossas crenças ou descrenças, vossos ideais ou
oposição aos ideais, vossos esforços, vossa inveja, vossos impulsos, vosso
senso de responsabilidade social — vereis que tudo isso é resultado do
coletivo. Se sois pacifista, vosso pacifismo é o resultado de um certo
condicionamento.
Assim, se examinamos a nós mesmos, admiramo-nos de
ver quanto estamos integrados no coletivo. No mundo ocidental, onde o
cristianismo domina há tantos séculos, sois criados no condicionamento
respectivo. Sois educados como católicos ou protestantes, com todas as divisões
do protestantismo. E tendo sido educados dessa maneira, crendo em absurdos de
toda ordem — no inferno, na punição eterna, no purgatório, no único Salvador, no pecado
original e outras coisas mais — estais condicionados por essa educação, e ainda
que vos afasteis dessas coisas, no vosso inconsciente permanecerá sempre um
resíduo desse condicionamento. Tendes sempre o medo do inferno, ou de não
crerdes num certo Salvador, etc.
Assim, se consideramos bem esse extraordinário fenômeno,
parecerá um tanto absurdo uma pessoa dizer-se “um indivíduo”. Podeis ter gostos
individuais, ter vosso nome próprio, e uma fisionomia completamente diferente
da de outro homem, mas o mecanismo do
vosso pensar é, em sua totalidade, um resultado do coletivo. Os instintos
raciais, as tradições, os valores morais, a extraordinária devoção ao sucesso,
a ambição de poder, de posição, de riquezas, geradora de violência — não há
dúvida de que tudo isso é resultado do coletivo, uma herança secular. E é
possível do meio desse conglomerado, extrair o indivíduo? Ou é impossível de
todo? Se levamos a sério esta questão de promover a transformação radical, uma
revolução, não é importantíssimo consideremos este ponto fundamental? Porque,
só ao homem que é um indivíduo, no sentido em que estou empregando a palavra,
ao homem não contaminado pelo coletivo, ao homem que está só — não isolado, mas
completamente só, interiormente — só a esse homem a Realidade pode
manifestar-se.
Expressando-o diferentemente: Iniciamos as nossas
vidas com suposições, postulados; que há ou que não há Deus, que há inferno e
céu, que é necessário um certo padrão de relações, uma determinada moral, que
deve prevalecer uma determinada ideologia, etc. Com estas suposições, que são
produto do coletivo, criamos uma estrutura que chamamos educação, que chamamos
religião, e fundamos uma sociedade em que o individualismo brutal prevalece sem
freios, ou é mantido sob controle. Esta sociedade está baseada na suposição de
que é necessária e inevitável a competição, de que é necessária a inveja, a
ambição. Mas, é possível não construirmos sobre suposições de qualquer
natureza, mas construirmos ao mesmo tempo que estamos investigando e
descobrindo? Se aceitamos o descobrimento feito por outro, nesse caso entramos
imediatamente no terreno do coletivo, que é o terreno da autoridade; mas se
cada um de nós começar livre de
suposições e postulados, então vós e eu edificaremos uma sociedade toda
diferente, e esta me parece uma das questões mais importantes da época atual.
Ora, percebendo esse mecanismo na sua inteireza
— no nível consciente e bem assim no inconsciente, já que o inconsciente é
também resíduo do coletivo — é possível extrairmos, daí o indivíduo? Pode-se
pensar, se se despojar o pensar da influência coletiva? Se fostes educado como
católico, metodista, batista, ou seja o que for, vosso pensar é o resultado do
coletivo, consciente ou inconsciente; vosso pensar é resultado da memória, e a
memória é o coletivo. Isto é um tanto complexo e devemos examiná-lo com vagar,
sem concordar nem discordar; o que queremos é descobrir.
Quando se diz que há liberdade de pensamento, isso
me parece um absurdo completo, porque, do modo como vós e eu pensamos, o pensar
é reação da memória, e a memória produto do coletivo, sendo esse coletivo cristão,
hinduísta, etc. Nessas condições, nunca haverá liberdade de pensamento enquanto
o pensar estiver baseado na memória. Vede, por favor, que isto não é mera
lógica. Não o rejeiteis, dizendo: “Ora, isto é puro raciocínio lógico”. Mas não
é. Será lógico por acaso, mas eu estou descrevendo um fato. Enquanto o
pensamento for reação da memória, que é resíduo do coletivo, a mente terá de
funcionar na esfera do tempo, sendo o tempo a continuação da memória de ontem,
hoje e amanhã. Para a mente em tais condições haverá sempre a morte, a
corruptibilidade e o medo, e por mais que busque algo incorruptível, fora do
tempo, nunca o achará, porque o seu pensamento é sempre resultado do tempo, da
memória, do coletivo.
Nessas condições, pode uma mente cujo pensamento resulta
do coletivo, cujo pensamento é o coletivo, desembaraçar-se do coletivo? Quer
dizer: Pode a mente conhecer o atemporal, o incorruptível, o que existe
sozinho, que não esteja sob a influência de nenhuma sociedade? Não afirmeis nem
negueis, não digais “já tive experiência disso” — porque isso nada significa,
em se tratando de questão tão complexa como esta. Pode-se ver que há sempre corrupção, quando a mente funciona
no coletivo. Poderá ela inventar um código de moral melhor, promover
reformas sociais, mas tudo estará sob a influência coletiva e, portanto, será
corruptível. Por certo, para descobrir se há um estado incorruptível,
atemporal, imortal, a mente tem de estar totalmente livre do coletivo. E ao
dar-se a sua completa libertação do coletivo, o indivíduo será anticoletivo? Ou
não será anticoletivo mas, sim, funcionará num plano totalmente diferente, que
o coletivo poderá repelir? Estais seguindo?
O problema é: Pode a mente ultrapassar o coletivo?
Se nenhuma possibilidade existe de ultrapassarmos o coletivo, então temos de
contentar-nos com adornar o coletivo, abrir janelas na prisão, instalar uma
iluminação melhor, mais banheiros, etc. É nisto que o mundo está interessado, e
é a isso que ele chama progresso, condições de vida melhores. Não sou contra o
melhoramento das condições de vida, pois seria uma estupidez isso,
principalmente por parte de quem vem da Índia, onde se passa fome como em
nenhuma outra parte do mundo, excetuada talvez a China, onde tanta gente só
toma meia refeição por dia, e mesmo nenhuma, onde há miséria, sofrimento,
doença, e a incapacidade para a revolta, já que o povo está a morrer de fome.
Assim, pois, nenhum homem inteligente pode ser contra a instauração de melhores
condições de vida; mas se é só isso que interessa, então a vida será puramente
materialista. E neste caso o sofrimento é inevitável; neste caso estará muito
bem que haja ambição, competição, antagonismo, impiedosa eficiência, guerras...
toda esta estrutura do mundo moderno, com suas esporádicas reformas sociais.
Mas se começarmos a investigar o problema do sofrimento — o sofrimento
representado pela morte, pela frustração, pela treva da ignorância — então
cumpre examinar essa estrutura, em sua totalidade, e não apenas certas partes
dela, como a manutenção de exércitos, as formas de governo, etc., visando a
reformas parciais. Ou aceitamos esta sociedade toda inteira, ou a rejeitamos
completamente — “rejeitar”, não no sentido de evitá-la, mas de descobrir a sua
significação.
Assim, pois, se a mente não achar possibilidade de
libertar-se desta prisão do coletivo, então o que pode fazer é só voltar atrás
e reformar a prisão. Mas eu acho que tal possibilidade existe, pois seria
estúpido demais ficarmos a lutar eternamente dentro da prisão. E como achará a
mente um meio de se libertar dessa massa heterogênea de valores e contradições,
ambições e impulsos? Enquanto isso não acontecer, não haverá individualidade.
Podeis denominar-vos um indivíduo, dizer que tendes uma alma, um, “eu”
superior, mas essas coisas são invenções da mente, que faz parte do coletivo.
Veja-se o que está acontecendo no mundo. Um novo
grupo do “coletivo” está a negar a alma, a imortalidade, a permanência, a Jesus
como único Salvador, etc. Em vista de todo esse conglomerado de asserções e
contra-asserções, surge a inevitável pergunta: É possível a mente libertar-se dele?
Isto é, é possível ficarmos libertados do tempo, do tempo como memória, memória
esta que é produto de determinada cultura, civilização ou condicionamento? Pode
a mente, ficar livre dessa memória? Não me estou referindo à memória da técnica
de construir uma ponte, da estrutura do átomo, do caminho de casa; esta é a
memória “fatual”, e sem ela estaríamos dementes ou doentes de amnésia. Mas pode
a mente existir livre da memória psicológica? Pode, sem dúvida, mas só quando
não está a buscar segurança. Afinal de contas, como disse ontem, enquanto a
mente busca a segurança, seja numa conta bancária, seja numa religião ou em
vários gêneros de atividades sociais e de relações, tem de haver violência. O homem
que possui muito cria a violência; mas o homem que percebe a futilidade de ter
muito e se torna eremita, esse também cria violência, porque está buscando a
segurança, não no mundo, mas em ideias.
O problema é então este: Pode a mente ficar livre da
memória, — não da memória relativa ao conhecimento de fatos, mas da memória
coletiva, amontoada através de séculos de crença? Se fizerdes a vós mesmo esta
pergunta, com toda a atenção, e não esperardes que eu vos, responda — porque
não há resposta — vereis então que, enquanto a mente está buscando a segurança,
sob qualquer forma, pertenceis ao coletivo, a uma memória multissecular. E o
não buscar a segurança é sumamente difícil, visto que podemos rejeitar o
coletivo, mas constituir um novo coletivo, com nossas próprias experiências.
Compreendeis? Posso rejeitar a sociedade com toda a sua corrupção, sua ambição,
sua avidez e competição, no plano coletivo; mas, depois de rejeitá-la, tenho
experiências e cada experiência deixa o seu resíduo. Estes resíduos se tornam
também o coletivo, já que constituem uma coleção. Aí encontro a minha
segurança, que transmito a meu filho, a meu vizinho, de modo que, mais uma vez,
está criado o coletivo, num padrão diferente.
É possível a mente ficar livre da memória do
coletivo? Quer dizer, ficar livre da inveja, da competição, da ambição, da
dependência, da perene busca do permanente como meio de segurança. Pois só
quando há esta liberdade, pode existir o indivíduo. E nela se encontra um
estado de espírito, um “estado de ser” completamente diferente. Não há mais
possibilidade de corrupção, não há mais o tempo, e para essa mente, que pode
ser chamada individual, ou outro nome qualquer, a Realidade surge na
existência. Não se pode buscar a Realidade; se o fizerdes, ela se tornará vossa
segurança e portanto será totalmente falsa, sem nenhuma significação, como o
vosso desejo de dinheiro, a vossa ambição e busca de preenchimento. A realidade
tem de vir a vós e não poderá vir enquanto houver a corrupção pelo coletivo.
Eis porque a mente deve achar-se completamente só, não influenciada, não
contaminada e, portanto, livre do tempo, pois só então pode manifestar-se o
imensurável, o atemporal.
Foram-me enviadas muitas perguntas, as quais,
infelizmente, não podem ser respondidas todas. Mas fizemos uma seleção das mais
típicas, e vou tentar responder à maior parte delas, nesta manhã.
Espero não estejais sendo mesmerizados por mim.
Notai, por favor, que o que digo tem significação; não o estou dizendo ao
acaso. Estais agora escutando em silêncio. Se este silêncio é apenas o sintoma
de que estais dominado por uma certa personalidade ou por ideias, então nenhum
valor tem. Mas se vosso silêncio é o resultado natural da atenção com que estais
observando os vossos próprios
pensamentos, a vossa própria mente, nesse caso não estais sendo
mesmerizados, hipnotizados. Portanto, não criareis um novo coletivo, novos
seguidores, um novo guia. Se estais realmente atento, interiormente vigilante,
descobrireis que estas palestras terão sido úteis, já que vos terão revelado o funcionamento de vossa própria mente.
Assim, nada tendes que aprender de outro, e por conseguinte não há mais
instrutor, nem discípulo, nem seguidor. Tudo está contido na vossa própria
consciência, e aquele que vos descreve essa consciência, não constitui vosso
guia. Ninguém se põe de joelhos diante de um mapa ou do catálogo de telefones,
ou do quadro-negro em que está escrita uma comunicação. Por conseguinte, não se
está criando aqui um novo grupo, um novo guia, uma nova seita — pelo menos no
que me diz respeito. Se criais tal coisa, lamento-vos. Mas se observardes a
vossa própria mente, cujo conteúdo está escrito no quadro-negro, esta
observação vos levará a um descobrimento extraordinário, que produzirá
sua ação própria.
Krishnamurti,
28 de agosto de 1955
Realização sem
esforço
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