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sábado, 7 de abril de 2018

É possível o indivíduo emergir do coletivo?

É possível o indivíduo 
emergir do coletivo?

Estivemos falando no último domingo sobre a questão de o indivíduo libertar-se de todas as limitações que lhe são impostas pela sociedade, e sobre o condicionamento religioso; porque, só quando está livre de seu condicionamento pode o indivíduo ser criador.

Entendo por "criação" o "estado de ser" libertado do tempo, porque é só neste estado que se pode produzir a correta transformação social e o bem-estar total do homem.

Não parecemos compreender o pleno significado da libertação individual do "coletivo", nem perceber a sua importância. É possível o indivíduo emergir do coletivo? Afinal, embora tenhamos nomes diferentes, depósitos particulares no banco, residências particulares, características pessoais, etc., não somos realmente indivíduos e sim, meramente, um resultado do "coletivo". Séculos e séculos de valores tradicionais, de crenças e dogmas, conscientes ou depositados no inconsciente, indicam-nos o caminho que devemos seguir e impelem-nos a mente, que temos por individual. Mas a mente é um resultado da totalidade dessas compulsões, impulsos e desejos, e embora lhe seja atribuído um nome especial, como Sr. X, ela não tem real individualidade. E não me parece que compreendemos quanto é necessário, essencial, o emergir do indivíduo desse total condicionamento do homem. É no instante em que nos libertamos do "coletivo" que surge o indivíduo criador, e a libertação desse estado criador é a questão fundamental, já que só então se pode descobrir se existe uma realidade atemporal, um estado a que se pode chamar "Deus". A mera asserção de que há ou não um tal estado, nenhum valor tem; o que tem valor é a experiência direta, não contaminada pelo passado.

Como estive explicando em nossa última reunião, a libertação deve estar no começo e não no fim. A liberdade deve vir em primeiro lugar, e não por último; e só pode haver liberdade quando a mente começa, no ponto de partida exato, a libertar-se de seu próprio condicionamento.

Importa pois a cada um de nós "realizar" essa liberdade em nós mesmos e exigi-la para nossos filhos, pela educação correta, etc. É sobre isto que desejo falar nesta tarde.

Ora, evidentemente, não estamos livres quando estamos seguindo a outro. É preciso estar-se livre do instrutor religioso, e isso significa que cada um tem de ser a luz de si mesmo e não depender da luz de nenhum outro. E pode-se realmente "experimentar" esse aliviar, esse libertar da mente do líder, do instrutor, do guru? Podemos experimentar realmente esse estado agora, que estamos falando sobre ele, de modo que a mente não dependa de nenhuma autoridade, não dependa de ninguém, para orientá-la e guiá-la?

Todas as vossas chamadas doutrinas religiosas criam um ideal, que seguis; e este ideal se torna uma nova espécie de instrutor. E, por certo, esta total libertação da ideia do guia, do instrutor, do seguir, sob qualquer forma que seja, esta libertação é essencial. Porque o seguir um instrutor implica acumulação de conhecimentos, e a libertação só é possível pela completa renúncia ao conhecimento. Afinal, são só conhecimentos o que estamos verdadeiramente buscando, na nossa vida de cada dia, não é verdade? Precisamos de conhecimentos para executar trabalhos, conhecimentos para agir, conhecimentos para nos guiarem ao alvo, ao sucesso, à realização de algo. E esse próprio conhecimento se torna o fator de nosso cativeiro. Mas pode a mente liberta-se do conhecimento? Acho muito importante considerar esta questão e, portanto, tratemos de investigá-la e não a ponhamos de parte, dizendo que a mente não pode libertar-se do conhecimento ou afirmando, meramente, que isso é possível.

O seguir implica sempre acumulação de conhecimentos, não é verdade? E onde há acumulação de conhecimentos tem de haver imitação. Afinal, quando se vos faz uma pergunta sobre questão que conheceis bem, vossa resposta é imediata. Se vos perguntam onde morais, qual a vossa profissão, vosso nome, etc., a memória responde instantaneamente, porque são coisas com que estais bem familiarizado. Mas se se faz uma pergunta mais complexa, há então hesitação — isso implica que a mente está dando uma busca nos arquivos da memória, para achar a resposta correta. E se se pergunta uma coisa sobre a qual praticamente nada sabeis, recorreis a um livro ou buscais mais profundamente naquela parte da consciência que é a memória. Assim sendo, sois sempre guiados pela memória. Memória deve haver, porque do contrário não poderíeis voltar à vossa casa, executar o vosso trabalho, construir uma ponte, etc. Aprendemos uma multidão de coisas necessárias e esses conhecimentos naturalmente não devem ser esquecidos. Mas eu me refiro a conhecimentos de ordem completamente diferente: os conhecimentos que a psique acumula, com o fim de proteger-se no futuro e realizar qualquer coisa que deseje realizar, psicologicamente, espiritualmente. É esse conhecimento que nos faz,egocêntricos, porque a mente dele se serve como meio de dar continuidade a si mesma, como meio de expansão do "eu". É a esse conhecimento que cumpre renunciar totalmente. Esta é que é a verdadeira renúncia — e não o abandonar uns poucos bens, uma casa, um pedaço de terra, e cingir uma tanga.

Temos, pois, esse conhecimento acumulado, sobre o qual a psique se forma e se mantém. E pode a mente, que é resultado do passado, renunciar a esse conhecimento? Decerto, enquanto a mente não se descartar desse conhecimento, nunca encontrará o que é novo, jamais conhecerá o instante atemporal, que é o "estado criador". Vede, o de que necessitamos neste momento não é mais físicos, mais cientistas, engenheiros, burocratas, políticos, porém indivíduos que conheceram esse "estado criador"; porque esses indivíduos é que são as pessoas verdadeiramente religiosas — o que significa que não pertencem a nenhuma sociedade, nenhum grupo, nenhuma classificação. Eis porque muito importa compreender todo esse mecanismo da acumulação de conhecimentos, que subentende identificação e senso de avaliação. Pode a mente estar livre, para observar sem avaliação nem julgamento? Não resta dúvida de que suas avaliações, suas comparações, suas condenações, baseiam-se todas no conhecimento, e essa mente é incapaz de compreender o que é verdadeiro.

Se observardes o processo de vosso próprio pensar, vereis que a mente só tem interesse em acumular mais e mais conhecimentos, e por essa razão nunca há um momento de liberdade, para explorar. E acho muito importante compreender, isto é, "experimentar", real e instantaneamente, esse estado de liberdade do passado, sem continuidade, — e não apenas asseverar que a mente pode ou que a mente não pode ser livre. Isso se tornará bastante simples, se soubermos escutar realmente o que se está dizendo; porque isso é uma coisa que se tem de experimentar, que se tem de sentir, e não discutir a seu respeito.

A mente, em verdade, é resultado do passado, de muitos dias pretéritos, o que é um fato bem óbvio. Ela é o resíduo do conhecido — sendo o conhecido a coisa experimentada, a palavra, o símbolo, o nome, o inteiro processo de reconhecimento. Essa mente, de certo, é incapaz de descobrir ou "experimentar" o desconhecido. Ela poderá especular, mas sua especulação estará baseada no conhecido, nas coisas que leu, Só poderá a mente experimentar aquele estado, quando o conhecimento — e por este termo entendo a memória de muitas experiências, — o inteiro processo de reconhecimento, que é "eu", "meu" — houver terminado.

Pois bem. Se puderdes, não apenas escutar o que se está dizendo, mas também afastar de vós tudo o que conheceis — as conclusões, as avaliações, as determinações, os ideais — vereis então surgir um estado sem continuidade, como memória, mas que é, instantaneamente, a totalidade do Ser. Esse momento é que é o Sublime, o Supremo, e ele precisa ser experimentado. Mas só se pode experimentá-lo, quando a mente está completamente tranquila, compreendendo a totalidade de sua própria estrutura. E pelo autoconhecimento que vem a quietude da mente, e não por meio de disciplina, por meio de compulsão. E nessa tranquilidade total encontrareis um momento que não está relacionado com o passado, um instante em que se verifica a criação. E esse estado é essencial, porque liberta a mente do "coletivo" e dá existência à individualidade.

O "coletivo" é a mente condicionada pela sociedade, por influências inúmeras, pelos valores e crenças a que se apega a multidão e de que uns poucos se livram, mas só para lhe acrescentarem mais uma crença. Em vista de tudo isso, é possível à mente, sem esforço algum, renunciar ao passado? Enquanto o não fizer, continuará a haver a observância, da tradição, de ontem ou de há milhares de anos. E a mente que segue a tradição é imitativa, dependente de um instrutor, com o que mantém a desigualdade, não apenas no nível físico, mas também no nível psicológico. Para essa mente, "criação" é apenas uma palavra sem sentido. Para se produzir um estado diferente, uma cultura diferente, uma diferente maneira de vida, é de todo necessária a libertação do indivíduo, a libertação dessa força criadora interior que produzirá sua sociedade própria, seus valores próprios.

Krishnamurti, Segunda Conferência em Bombaim
7 de maio de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana


O mecanismo da “individualidade”


O mecanismo da “individualidade”

Estou bem certo de que a maioria de nós sente a necessidade de uma revolução fundamental, num mundo em que se vê tanto caos, tanta miséria e fome, e perene ameaça de guerra. Sentimos necessária uma certa mudança das coisas, e cada grupo tem sua especial panacéia ou método, para pôr fim às misérias do mundo. Os comunistas têm o seu padrão, os capitalistas o seu, e os indivíduos chamados religiosos têm também o seu. Tão interessados, que estamos, em produzir esta transformação, obviamente necessária, ingressamos num ou noutro desses diferentes grupos e, por isso, acho importante descobrirmos o que se entende por transformação — não a mudança resultante da mera ação exterior, legislativa, porém uma transformação muito mais profunda, mais radical. É fácil ver que toda mudança promovida de acordo com um plano preconcebido, torna necessária uma entidade administrativa, para levar a efeito, o plano, e que a autoridade de que deve revestir-se uma tal entidade se torna invariavelmente tirânica; isto é o que, de fato, está acontecendo no mundo. Existe a tirania da autoridade bem organizada, nas mãos de uns poucos, ou a tirania de determinada religião, ou tirania da autoridade conferida a uma certa seção da sociedade. Em vista de tudo isso, vós e eu, as pessoas comuns, desejamos produzir uma mudança para melhor, de modo que a humanidade possa ter, em todas as partes, alimentação adequada, roupas, moradia, educação mais completa, etc.

Ora, como disse, é importante averiguar o que entendemos por "transformação". Para a maioria de nós, transformação significa "continuidade modificada" do que já existia, não é verdade? Embora os chamados revolucionários desejem promover uma transformação radical na sociedade, a sua atitude, os seus valores, os seus conceitos e fórmulas, tudo está baseado no passado, na reação do "conhecido". E toda mudança nascida dessa fonte, é mera continuidade do que já existia, um tanto ou quanto modificada. Eles poderão não começar dessa maneira, mas no fim o que resulta é isso, e isso, para mim, não é transformação, absolutamente. A transformação significa algo completamente diferente e eu gostaria, se me permitis, de examinar bem esta questão.

Reconhecemos necessária uma transformação fundamental em nossa maneira de pensar, uma radical transformação da mente e do coração do homem. Mas esta extraordinária transformação não está realizada se fazemos continuar o que já existia, sob forma modificada. Tampouco pode essa radical revolução da mente operar-se por meio da educação, como hoje a conhecemos. Porque, isto que atualmente chamamos "educação", consiste apenas em aprender uma determinada técnica, para cada um poder ganhar o próprio sustento e ajustar-se ao padrão imposto pela sociedade.

Em vista disto, por onde devemos começar? Onde começar, para realizar esta transformação fundamental da ordem social, que se torna tão obviamente necessária? Por certo, o problema individual é o problema mundial. A sociedade é tal como nós mesmos a fizemos. Há os que têm e os que não têm; os que sabem e os ignorantes; os que preenchem suas ambições e os que se vêm frustrados. Existem as várias religiões com suas cerimônias e crenças dogmáticas, e a batalha interminável no seio da sociedade, a perene competição entre todos, para ganhar, "vir a ser" alguma coisa. Tudo isso fomos vós e eu que criamos. Reformas sociais podem ser introduzidas por meio da legislação ou por meio da tirania; mas se não houver uma radical transformação do indivíduo, este superará sempre o novo padrão, adaptando-o às próprias exigências psicológicas.

Assim sendo, parece-me de grande importância compreender o "mecanismo" total da individualidade. Porque, só quando o indivíduo se transforma radicalmente, pode haver uma revolução fundamental na sociedade. É sempre o indivíduo e nunca a coletividade, que pode produzir uma mudança radical no mundo — e isto é um fato histórico.

Ora bem, pode o indivíduo — vós e eu — transformar-se radicalmente? Esta transformação do indivíduo — mas não operada de acordo com um padrão — é o que nos interessa e é, para mim, a mais elevada forma de educação. É a transformação do indivíduo que constitui a verdadeira religião, e não a mera aceitação de um dogma, uma crença, pois isto não é religião nenhuma. A mente que está condicionada segundo um certo padrão a que chama religião — hinduísta, cristã, budista, ou outra — não é uma mente religiosa, por mais que pratique todos os chamados ideais religiosos.

Assim sendo, podemos nós — vós e eu — promover uma radical transformação em nós mesmos, sem compulsão, e sem "motivo" algum? Toda forma de compulsão é atividade egocêntrica, que perverte a mente, e o "motivo" está sempre baseado no mecanismo do "eu", do "ego". E é possível realizar uma transformação radical em cada um de nós, sem "motivo" e sem compulsão? Penso que esta é uma questão que exige muita reflexão, investigação, e não podemos "despachá-la" tão facilmente, dizendo que tal transformação é possível ou impossível. Todo homem verdadeiramente sério deve investigar profundamente este problema de sua própria transformação interior. Esta transformação interior, por certo, não pode ser feita de acordo com nenhum padrão, nenhum conceito religioso, sendo possível unicamente por meio do autoconhecimento. Isto é, se não conheço a totalidade de minha consciência, a totalidade de meu ser, qualquer ideal, fórmula, conceito ou crença que eu tenha, não passa de mero desejo, mera ideia, sem base alguma e portanto sem realidade. Se não há autoconhecimento, isto é, se não começo por conhecer a mim mesmo, completamente, toda e qualquer atividade que eu empreenda, há de ser destrutiva e causadora de maiores danos. Assim, pois, o homem que é verdadeiramente sério, que se preocupa realmente a respeito do caos e das misérias do mundo, não deve reconhecer de vital importância a compreensão do mecanismo total de si mesmo?

Ora, que é autoconhecimento? O autoconhecimento não se realiza de acordo com um livro, não se adquire seguindo-se a autoridade de quem quer que seja. As operações de meu pensamento têm de ser descobertas e só posso descobri-las nas relações; porque as relações são um espelho em que posso ver a mim mesmo, não teoricamente, porém exatamente como sou. Não há dúvida que é nas relações com minha mulher, meus filhos, meu vizinho, meus criados, meu patrão, com a sociedade em geral, que descubro a mim mesmo, tal como sou. Porque, nesse espelho das relações, posso enxergar as minhas superstições, meus juízos, meus hábitos de pensamento, as tradições que estou seguindo, os valores comparativos que atribuo às experiências e às coisas.

O que em geral acontece é que aquilo que vemos no espelho das relações, nos agrada ou desagrada e, por isso, ou o aceitamos ou o condenamos. Mas só é possível descobrir as operações do pensamento, os "motivos" e desejos ocultos, as reações de uma mente condicionada por determinada sociedade, quando nos contemplamos nesse espelho sem espírito de condenação ou comparação, sem julgamento. Só então a mente — tanto consciente como inconsciente — está libertada de sua escravidão e, assim, talvez, capacitada para ultrapassar as suas próprias limitações. Isto, em verdade, é meditação.

A verdadeira religião é a da mente que compreende os seus próprios processos — ambição, inveja, avidez, ódio — porque a própria compreensão dessas coisas põe-lhes fim, sem necessidade de compulsão e a mente, portanto, fica livre para explorar. Tem-se então a possibilidade de encontrar a Realidade, Deus ou o nome que preferirdes. Mas, sem autoconhecimento, o mero afirmar ou negar que Deus ou a Realidade existe, nenhuma significação tem.

Vê-se que uma parte da humanidade está condicionada para aceitar a ideia de Deus, ao passo que outra parte está sendo condicionada para não crer em Deus, porém crer no Estado e por ele se sacrificar. E é possível a mente libertar-se de todos os condicionamentos? Não há dúvida de que só a mente que procura descondicionar-se e se torna, portanto, capaz de agir, só essa mente pode realizar a revolução radical. Essa a razão por que muito importa que tanto vós como eu nos libertemos, individualmente, do "coletivo"; porque se o indivíduo não é livre não tem possibilidade de investigar e descobrir o que é verdadeiro.

Assim, cabe evidentemente aos que são sérios investigar profundamente esta questão, em vez de ajustarem-se, meramente, a um padrão de pensamento. Só o indivíduo religioso, no verdadeiro sentido da palavra, pode dar nascimento a um novo estado, uma nova maneira de considerar a vida. E o indivíduo verdadeiramente religioso é aquele que se está libertando do condicionamento de uma dada sociedade, sendo, assim, um verdadeiro revolucionário.

Krishnamurti, Segunda Conferência em Madanapale
19 de fevereiro de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Pode a mente ultrapassar o mecanismo coletivo?


Pode a mente ultrapassar o mecanismo coletivo?

É muito difícil, segundo penso, distinguir a diferença entre o coletivo e o individual, e descobrir onde termina o coletivo e começa a individualidade; e, também, perceber o significado do coletivo e descobrir se é possível ficar-se livre do coletivo e promover a integração do indivíduo. Não sei se já pensastes, ainda que ligeiramente, a respeito deste problema, que me parece ser um dos problemas fundamentais do mundo, principalmente na época atual, em que tanto se encarece a importância do coletivo. Não só nos países comunistas mas também no mundo capitalista, onde se estão criando “Estados de Bem-Estar”, como é o caso da Inglaterra, se está atribuindo significação cada vez maior ao coletivo. Criam-se fazendas coletivas e cooperativas de toda ordem, e, ao considerarmos tudo isso, ficamos a perguntar-nos qual é o lugar que o indivíduo irá ocupar nesse quadro e se, afinal, o indivíduo existe mesmo.

Sois um indivíduo? Tendes um certo nome, um depósito bancário particular, casa própria, certas características fisionômicas e psicológicas, mas sois realmente um indivíduo? Acho de muita importância considerar bem esta questão, uma vez que só quando existe a incorruptibilidade do indivíduo — de que tratarei mais adiante — há a possibilidade de surgir alguma coisa totalmente nova. Isso significa que cada um precisa descobrir por si mesmo onde termina o coletivo, se ele de fato termina, e onde começa a individualidade — o que suscita todo o problema do tempo. Este assunto é muito complexo e, por ser complexo, precisamos aplicar-nos a ele de maneira simples, direta, sem dar voltas ao redor dele; e, se me é permitido, vou examiná-lo nesta manhã.

Peço licença para sugerir-vos observeis o vosso próprio pensar, enquanto falo, e que não vos limiteis a, escutar meramente, aprovando ou desaprovando o que se está dizendo. Se escutais apenas para concordar ou discordar, com uma superficial compreensão intelectual, então esta palestra e todas as anteriores, serão completamente inúteis. Mas, se sois capaz de observar o funcionamento de vossa própria mente enquanto o vou descrevendo, esse próprio observar produzirá uma ação extraordinária, que não é imposta nem forçada.

Acho de muita importância descubramos cada um de nós, onde termina o coletivo e começa o individual. Ou o nosso pensar — conquanto modificado pelo temperamento pessoal, pelas idiossincrasias de cada um — será totalmente coletivo? O “coletivo” é o conglomerado de condicionamentos vários, nascidos das ações e reações sociais, das influências educativas, das crenças, dogmas e preceitos religiosos, etc. Todo esse mecanismo heterogêneo constitui o coletivo, e se examinardes, se olhardes a vós mesmos, vereis que tudo o que pensais, vossas crenças ou descrenças, vossos ideais ou oposição aos ideais, vossos esforços, vossa inveja, vossos impulsos, vosso senso de responsabilidade social — vereis que tudo isso é resultado do coletivo. Se sois pacifista, vosso pacifismo é o resultado de um certo condicionamento.

Assim, se examinamos a nós mesmos, admiramo-nos de ver quanto estamos integrados no coletivo. No mundo ocidental, onde o cristianismo domina há tantos séculos, sois criados no condicionamento respectivo. Sois educados como católicos ou protestantes, com todas as divisões do protestantismo. E tendo sido educados dessa maneira, crendo em absurdos de toda ordem — no inferno, na punição eterna, no purgatório, no único Salvador, no pecado original e outras coisas mais — estais condicionados por essa educação, e ainda que vos afasteis dessas coisas, no vosso inconsciente permanecerá sempre um resíduo desse condicionamento. Tendes sempre o medo do inferno, ou de não crerdes num certo Salvador, etc.

Assim, se consideramos bem esse extraordinário fenômeno, parecerá um tanto absurdo uma pessoa dizer-se “um indivíduo”. Podeis ter gostos individuais, ter vosso nome próprio, e uma fisionomia completamente diferente da de outro homem, mas o mecanismo do vosso pensar é, em sua totalidade, um resultado do coletivo. Os instintos raciais, as tradições, os valores morais, a extraordinária devoção ao sucesso, a ambição de poder, de posição, de riquezas, geradora de violência — não há dúvida de que tudo isso é resultado do coletivo, uma herança secular. E é possível do meio desse conglomerado, extrair o indivíduo? Ou é impossível de todo? Se levamos a sério esta questão de promover a transformação radical, uma revolução, não é importantíssimo consideremos este ponto fundamental? Porque, só ao homem que é um indivíduo, no sentido em que estou empregando a palavra, ao homem não contaminado pelo coletivo, ao homem que está só — não isolado, mas completamente só, interiormente — só a esse homem a Realidade pode manifestar-se.

Expressando-o diferentemente: Iniciamos as nossas vidas com suposições, postulados; que há ou que não há Deus, que há inferno e céu, que é necessário um certo padrão de relações, uma determinada moral, que deve prevalecer uma determinada ideologia, etc. Com estas suposições, que são produto do coletivo, criamos uma estrutura que chamamos educação, que chamamos religião, e fundamos uma sociedade em que o individualismo brutal prevalece sem freios, ou é mantido sob controle. Esta sociedade está baseada na suposição de que é necessária e inevitável a competição, de que é necessária a inveja, a ambição. Mas, é possível não construirmos sobre suposições de qualquer natureza, mas construirmos ao mesmo tempo que estamos investigando e descobrindo? Se aceitamos o descobrimento feito por outro, nesse caso entramos imediatamente no terreno do coletivo, que é o terreno da autoridade; mas se cada um de nós começar livre de suposições e postulados, então vós e eu edificaremos uma sociedade toda diferente, e esta me parece uma das questões mais importantes da época atual.

Ora, percebendo esse mecanismo na sua inteireza — no nível consciente e bem assim no inconsciente, já que o inconsciente é também resíduo do coletivo — é possível extrairmos, daí o indivíduo? Pode-se pensar, se se despojar o pensar da influência coletiva? Se fostes educado como católico, metodista, batista, ou seja o que for, vosso pensar é o resultado do coletivo, consciente ou inconsciente; vosso pensar é resultado da memória, e a memória é o coletivo. Isto é um tanto complexo e devemos examiná-lo com vagar, sem concordar nem discordar; o que queremos é descobrir.

Quando se diz que há liberdade de pensamento, isso me parece um absurdo completo, porque, do modo como vós e eu pensamos, o pensar é reação da memória, e a memória produto do coletivo, sendo esse coletivo cristão, hinduísta, etc. Nessas condições, nunca haverá liberdade de pensamento enquanto o pensar estiver baseado na memória. Vede, por favor, que isto não é mera lógica. Não o rejeiteis, dizendo: “Ora, isto é puro raciocínio lógico”. Mas não é. Será lógico por acaso, mas eu estou descrevendo um fato. Enquanto o pensamento for reação da memória, que é resíduo do coletivo, a mente terá de funcionar na esfera do tempo, sendo o tempo a continuação da memória de ontem, hoje e amanhã. Para a mente em tais condições haverá sempre a morte, a corruptibilidade e o medo, e por mais que busque algo incorruptível, fora do tempo, nunca o achará, porque o seu pensamento é sempre resultado do tempo, da memória, do coletivo.

Nessas condições, pode uma mente cujo pensamento resulta do coletivo, cujo pensamento é o coletivo, desem­­baraçar-se do coletivo? Quer dizer: Pode a mente conhecer o atemporal, o incorruptível, o que existe sozinho, que não esteja sob a influência de nenhuma sociedade? Não afirmeis nem negueis, não digais “já tive experiência disso” — porque isso nada significa, em se tratando de questão tão complexa como esta. Pode-se ver que há sempre corrupção, quando a mente funciona no coletivo. Poderá ela inventar um código de moral melhor, promover reformas sociais, mas tudo estará sob a influência coletiva e, portanto, será corruptível. Por certo, para descobrir se há um estado incorruptível, atemporal, imortal, a mente tem de estar totalmente livre do coletivo. E ao dar-se a sua completa libertação do coletivo, o indivíduo será anticoletivo? Ou não será anticoletivo mas, sim, funcionará num plano totalmente diferente, que o coletivo poderá repelir? Estais seguindo?

O problema é: Pode a mente ultrapassar o coletivo? Se nenhuma possibilidade existe de ultrapassarmos o coletivo, então temos de contentar-nos com adornar o coletivo, abrir janelas na prisão, instalar uma iluminação melhor, mais banheiros, etc. É nisto que o mundo está interessado, e é a isso que ele chama progresso, condições de vida melhores. Não sou contra o melhoramento das condições de vida, pois seria uma estupidez isso, principalmente por parte de quem vem da Índia, onde se passa fome como em nenhuma outra parte do mundo, excetuada talvez a China, onde tanta gente só toma meia refeição por dia, e mesmo nenhuma, onde há miséria, sofrimento, doença, e a incapacidade para a revolta, já que o povo está a morrer de fome. Assim, pois, nenhum homem inteligente pode ser contra a instauração de melhores condições de vida; mas se é só isso que interessa, então a vida será puramente materialista. E neste caso o sofrimento é inevitável; neste caso estará muito bem que haja ambição, competição, antagonismo, impiedosa eficiência, guerras... toda esta estrutura do mundo moderno, com suas esporádicas reformas sociais. Mas se começarmos a investigar o problema do sofrimento — o sofrimento representado pela morte, pela frustração, pela treva da ignorância — então cumpre examinar essa estrutura, em sua totalidade, e não apenas certas partes dela, como a manutenção de exércitos, as formas de governo, etc., visando a reformas parciais. Ou aceitamos esta sociedade toda inteira, ou a rejeitamos completamente — “rejeitar”, não no sentido de evitá-la, mas de descobrir a sua significação.

Assim, pois, se a mente não achar possibilidade de libertar-se desta prisão do coletivo, então o que pode fazer é só voltar atrás e reformar a prisão. Mas eu acho que tal possibilidade existe, pois seria estúpido demais ficarmos a lutar eternamente dentro da prisão. E como achará a mente um meio de se libertar dessa massa heterogênea de valores e contradições, ambições e impulsos? Enquanto isso não acontecer, não haverá individualidade. Podeis denominar-vos um indivíduo, dizer que tendes uma alma, um, “eu” superior, mas essas coisas são invenções da mente, que faz parte do coletivo.

Veja-se o que está acontecendo no mundo. Um novo grupo do “coletivo” está a negar a alma, a imortalidade, a permanência, a Jesus como único Salvador, etc. Em vista de todo esse conglomerado de asserções e contra-asserções, surge a inevitável pergunta: É possível a mente libertar-se dele? Isto é, é possível ficarmos libertados do tempo, do tempo como memória, memória esta que é produto de determinada cultura, civilização ou condicionamento? Pode a mente, ficar livre dessa memória? Não me estou referindo à memória da técnica de construir uma ponte, da estrutura do átomo, do caminho de casa; esta é a memória “fatual”, e sem ela estaríamos dementes ou doentes de amnésia. Mas pode a mente existir livre da memória psicológica? Pode, sem dúvida, mas só quando não está a buscar segurança. Afinal de contas, como disse ontem, enquanto a mente busca a segurança, seja numa conta bancária, seja numa religião ou em vários gêneros de atividades sociais e de relações, tem de haver violência. O­ homem que possui muito cria a violência; mas o homem que percebe a futilidade de ter muito e se torna eremita, esse também cria violência, porque está buscando a segurança, não no mundo, mas em ideias.

O problema é então este: Pode a mente ficar livre da memória, — não da memória relativa ao conhecimento de fatos, mas da memória coletiva, amontoada através de séculos de crença? Se fizerdes a vós mesmo esta pergunta, com toda a atenção, e não esperardes que eu vos, responda — porque não há resposta — vereis então que, enquanto a mente está buscando a segurança, sob qualquer forma, pertenceis ao coletivo, a uma memória multissecular. E o não buscar a segurança é sumamente difícil, visto que podemos rejeitar o coletivo, mas constituir um novo coletivo, com nossas próprias experiências. Compreendeis? Posso rejeitar a sociedade com toda a sua corrupção, sua ambição, sua avidez e competição, no plano coletivo; mas, depois de rejeitá-la, tenho experiências e cada experiência deixa o seu resíduo. Estes resíduos se tornam também o coletivo, já que constituem uma coleção. Aí encontro a minha segurança, que transmito a meu filho, a meu vizinho, de modo que, mais uma vez, está criado o coletivo, num padrão diferente.

É possível a mente ficar livre da memória do coletivo? Quer dizer, ficar livre da inveja, da competição, da ambição, da dependência, da perene busca do permanente como meio de segurança. Pois só quando há esta liberdade, pode existir o indivíduo. E nela se encontra um estado de espírito, um “estado de ser” completamente diferente. Não há mais possibilidade de corrupção, não há mais o tempo, e para essa mente, que pode ser chamada individual, ou outro nome qualquer, a Realidade surge na existência. Não se pode buscar a Realidade; se o fizerdes, ela se tornará vossa segurança e portanto será totalmente falsa, sem nenhuma significação, como o vosso desejo de dinheiro, a vossa ambição e busca de preenchimento. A realidade tem de vir a vós e não poderá vir enquanto houver a corrupção pelo coletivo. Eis porque a mente deve achar-se completamente só, não influenciada, não contaminada e, portanto, livre do tempo, pois só então pode manifestar-se o imensurável, o atemporal.

Foram-me enviadas muitas perguntas, as quais, infelizmente, não podem ser respondidas todas. Mas fizemos uma seleção das mais típicas, e vou tentar responder à maior parte delas, nesta manhã.

Espero não estejais sendo mesmerizados por mim. Notai, por favor, que o que digo tem significação; não o estou dizendo ao acaso. Estais agora escutando em silêncio. Se este silêncio é apenas o sintoma de que estais dominado por uma certa personalidade ou por ideias, então nenhum valor tem. Mas se vosso silêncio é o resultado natural da atenção com que estais observando os vossos próprios pensamentos, a vossa própria mente, nesse caso não estais sendo mesmerizados, hipnotizados. Portanto, não criareis um novo coletivo, novos seguidores, um novo guia. Se estais realmente atento, interiormente vigilante, descobrireis que estas palestras terão sido úteis, já que vos terão revelado o funcionamento de vossa própria mente. Assim, nada tendes que aprender de outro, e por conseguinte não há mais instrutor, nem discípulo, nem seguidor. Tudo está contido na vossa própria consciência, e aquele que vos descreve essa consciência, não constitui vosso guia. Ninguém se põe de joelhos diante de um mapa ou do catálogo de telefones, ou do quadro-negro em que está escrita uma comunicação. Por conseguinte, não se está criando aqui um novo grupo, um novo guia, uma nova seita — pelo menos no que me diz respeito. Se criais tal coisa, lamento-vos. Mas se observardes a vossa própria mente, cujo conteúdo está escrito no quadro-negro, esta observação vos levará a um descobrimento extraordinário, que produzirá sua ação própria.
Krishnamurti, 28 de agosto de 1955
Realização sem esforço
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sábado, 4 de junho de 2016

Como ser um indivíduo?

Na sociedade, existe uma profunda expectativa de que você se comporte exatamente como todos os demais. No momento em que se comporta de forma um pouco diferente, você passa a ser um sujeito estranho, e as pessoas têm muito medo de estranhos.

As pessoas sempre querem participar de um grupo ao qual se ajustem.

Nesta sociedade, ninguém aceita a si mesmo. Todo mundo se condena. Esse é o estilo de vida da sociedade: condenar-se. E, se você não está se condenando, se está se aceitando do jeito que é, você tem que se afastar da sociedade.

E a sociedade não tolera ninguém que saiu do rebanho, porque ela vive de números; é uma política de números. Quando há muitos números, as pessoas se sentem bem. Números grandes fazem com que as pessoas sintam que tem de estar certas - elas não podem estar erradas, milhões de pessoas estão com elas. E, quando ficam sozinhas, grandes dúvidas começam a vir à tona: Ninguém está comigo. O que garante que estou certo?

É por isso que eu digo que, neste mundo, ser um indivíduo é o maior sinal de coragem.

Para ser um indivíduo, é preciso o mais destemido dos treinamentos: “Não importa que o mundo inteiro esteja contra mim. O que importa é que a minha experiência é válida. Eu não me importo com os números, com quantas pessoas estão comigo. Eu me importo com a validade da minha experiência — se estou simplesmente repetindo as palavras de outra pessoa, como um papagaio, ou se a fonte das minhas afirmações é a minha própria experiência. Se é a minha própria experiência, se isso é parte do meu sangue, dos meus ossos, do meu âmago, então o mundo inteiro pode pensar de outro jeito; ainda assim, eu estou certo e eles estão errados. Não importa, não preciso da aprovação deles para sentir que estou certo. Só aqueles que dependem das opiniões de outras pessoas precisam do apoio dos outros.

Mas é assim que a sociedade humana tem sido até agora. É assim que ela mantém você no rebanho. Se os outros estão tristes, você tem que ficar triste; se sofrem, você tem que sofrer. O que quer que eles sejam, você tem que ser também. Não se permitem diferenças, porque as diferenças acabam levando para o indivíduo, para o único, e a sociedade tem muito medo do indivíduo e da unicidade. Isso significa que alguém ficou independente do grupo, que essa pessoa não dá a mínima para o grupo. Seus deuses, seus templos, seus padres, suas escrituras, tudo ficou sem sentido para ela.

Agora ela tem seu próprio ser e seu próprio jeito, seu próprio estilo — de viver, morrer, celebrar, cantar, dançar. Ela chegou em casa.

E ninguém pode chegar em casa junto com a multidão. Só se pode chegar em casa sozinho.

(Osho)

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A vida é agir e relacionar-se

No mundo à nossa volta, vemos confusão, miséria e desejos conflitantes e, compreendendo este caos mundial, as pessoas mais coerentes e sérias — não as que estão fingindo, mas as que de fato se preocupam — naturalmente verão a importância de refletir sobre o problema da ação. Há a ação coletiva e a ação individual; a ação de massa tornou-se uma abstração, um meio de fuga conveniente para escapar da ação individual. Ao imaginar que este caos, esta miséria, este desastre que está constantemente aumentando possa ser de alguma forma transformado ou organizado pela ação das massas, o indivíduo torna-se um irresponsável. A massa é por certo uma entidade fictícia, a massa são vocês e sou eu. Só quando vocês e eu não entendemos a relação da verdadeira ação é que nos voltamos para a abstração chamada a massa e, por isso, nos tornamos irresponsáveis em nossa ação. Para a ação da reforma, procuramos um líder ou nos voltamos para a ação coletiva, organizada, que novamente é ação da massa. Quando procuramos um líder para dirigir a ação, invariavelmente escolhemos uma pessoa que achamos que nos ajudará a transcender os nossos problemas, a nossa miséria. Contudo, pelo fato de escolhermos um líder a partir de nossa confusão, o próprio líder está confuso. Não escolhemos um líder diferente de nós mesmos. Não podemos fazer isso. Só podemos escolher um líder que, como nós mesmos, está confuso; portanto, esses líderes, esses guias e os assim chamados gurus espirituais invariavelmente nos levam a maior confusão, a mais miséria. Visto que os escolhemos a partir de nossa própria confusão, quando seguimos um líder estamos unicamente seguindo a nossa própria e confusa projeção de nós mesmos. Assim sendo, essa ação, embora possa produzir um resultado imediato, invariavelmente leva a outro desastre.

Portanto, vimos que a ação da massa — embora seja valiosa em certos casos — está destinada a levar ao desastre, à confusão, e a acarretar irresponsabilidade da parte do indivíduo, e vimos que seguir um líder significa também aumentar a confusão. No entanto, temos de viver. Viver é agir; viver é relacionar-se. Não há ação sem relacionamento, e não podemos viver isolados. Não existe o isolamento. A vida é agir e relacionar-se. Portanto, para entender a ação que não crie mais infelicidade, mais confusão, temos de entender a nós mesmos, com todas as nossas contradições, nossos traços contraditórios, nossas muitas facetas que estão constantemente em luta umas contra as outras. Enquanto não entendermos a nós mesmos, a ação deverá inevitavelmente levar a mais conflito, a mais infelicidade.

Assim sendo, nosso problema é agir com entendimento, e esse entendimento só vem com o autoconhecimento. Afinal, o mundo é uma projeção de mim mesmo. O mundo é o que eu sou. O mundo não é diferente de mim, o mundo não está contra mim. O mundo e eu não somos entidades separadas. A sociedade sou eu; não há dois processos diferentes. O mundo é uma extensão de mim mesmo, e, para entender o mundo, tenho de entender a mim mesmo. O indivíduo não está em oposição à massa, à sociedade, porque a sociedade é o indivíduo. Sociedade é relacionamento entre vocês, eu e o outro. Só há oposição entre indivíduo e sociedade quando o indivíduo se torna irresponsável. Portanto, temos um problema a considerar. Há uma crise extraordinária que atinge todos os países, pessoas e grupos. Qual o relacionamento que há entre nós, vocês e eu, e essa crise, e como devemos agir? Por onde devemos começar para provocar uma transformação? Como eu disse, se considerarmos a massa não há saída, visto que a massa implica um líder, e a massa sempre é explorada pelos políticos, pelo sacerdote e pelos espertos. E uma vez que vocês e eu fazemos parte da massa, temos de assumir a responsabilidade pela nossa ação, ou seja, temos de entender a nossa própria natureza, temos de entender a nós mesmos. Entender a nós mesmos não significa nos isolarmos do mundo, porque isolar-se do mundo significa afastar-se e não podemos viver afastados. Assim sendo, temos de entender a ação no relacionamento, e esse entendimento depende da percepção de nossa natureza conflitiva e contraditória. Acho que é uma tolice conceber um estado em que haja paz e para o qual possamos olhar. Só pode haver paz e tranquilidade quando entendemos a nossa natureza e quando não pressupomos um estado que não conhecemos. Pode haver um estado de paz, mas a simples especulação sobre esse estado é inútil.

Para agir corretamente, deve haver pensamento correto; para pensar corretamente, deve haver autoconhecimento, e o autoconhecimento só pode existir por meio do relacionamento, não do isolamento. O pensamento correto só ocorre quando entendemos a nós mesmos, e desse conhecimento surge a ação correta. A ação correta é a que surge do entendimento de nós mesmos, não de uma parte de nós mesmos, mas de todos os aspectos de nós mesmos, da nossa natureza contraditória, de tudo o que somos. À medida que entendemos a nós mesmos, há ação correta, e dessa ação surge a felicidade. Além do mais, queremos felicidade. Felicidade é o que a maioria de nós está procurando por meio de várias formas, por meio de várias fugas — fugas através da atividade social, do mundo burocrático, da diversão, do culto e da repetição de frases, do sexo, e de inumeráveis outras fugas. Vemos que essas fugas não trazem a felicidade duradoura; elas apenas dão um alívio temporário; fundamentalmente, não há nada de verdadeiro nelas, nenhum deleite duradouro. Penso que só encontraremos esse prazer, esse êxtase, a verdadeira alegria de sermos criativos, quando entendermos a nós mesmos. Não é fácil entender a nós mesmos; esse entendimento requer certa vivacidade, certa percepção. Essa vivacidade, essa percepção só podem surgir quando não nos condenamos, não nos justificamos; porque, no momento em que há uma condenação ou uma justificação, o processo do entendimento se encerra. Quando condenamos alguém, deixamos de entender essa pessoa, e quando nos identificamos com ela, novamente deixamos de entendê-la. Dá-se o mesmo conosco. É difícil observar, ficar passivamente consciente de quem são vocês; mas dessa consciência advém um entendimento, uma transformação do que existe, e só nessa transformação é que se abrem as portas para a realidade.

Então, nosso problema é a ação, o entendimento e a felicidade. Não há base para o verdadeiro raciocínio a não ser que conheçamos a nós mesmos. Sem o autoconhecimento não tenho base para o pensamento — apenas posso viver num estado de contradição, como faz a maioria de nós. Para provocar uma transformação no mundo, que é o mundo do relacionamento, tenho de começar por mim mesmo. Vocês podem argumentar que “provocar uma transformação do mundo desse modo exigirá um tempo infinitamente longo”. Se estivermos buscando resultados imediatos, naturalmente acharemos que a demora será muito grande. Os resultados imediatos são prometidos pelos políticos; mas receio que para um homem que está em busca da verdade não há resultados imediatos. É a verdade que transforma, não a ação imediata; só quando cada um descobrir a verdade haverá felicidade e paz no mundo. O nosso problema é viver no mundo sem pertencer a ele, e trata-se de um problema de uma busca das mais sérias, porque não podemos nos recolher, não podemos renunciar, porém temos de ter a consciência de nós mesmos. Compreender a si mesmo é o começo da sabedoria. Ter consciência de nós mesmos é entender o nosso relacionamento com as coisas, pessoas e ideias. Enquanto não compreendermos a importância e o significado do nosso relacionamento com as coisas, pessoas e ideias, a ação que implica o relacionamento inevitavelmente provocará conflitos e lutas. Assim, um homem verdadeiramente sério tem de começar por si mesmo; ele tem de ficar passivamente consciente de todos os seus pensamentos, sentimentos e ações. Novamente, não se trata de uma questão de tempo. Não há fim para o autoconhecimento. Este só existe de momento a momento e, portanto, há uma felicidade criativa a cada novo momento.

Jiddu Krishnamurti — Nova Delhi, 14 de novembro de 1948


quarta-feira, 24 de julho de 2013

É retrocesso reformar a velha sociedade

Interrogante: Há muitos problemas — sociais, econômicos, nacionais — pelos quais não sou responsável.

Krishnamurti: Está-se morrendo de fome na Ásia; lá há miséria, pobreza, doença, coisas terríveis que vocês desconhecem completamente por aqui. Mas, quem é o responsável? Como sabem, graças à automação, ao aperfeiçoamento do computador, à cibernética, etc., a ciência está hoje em dia apta a libertar o homem das canseiras de certos trabalhos. A ciência tem a possibilidade de fornecer alimentos, roupas e teto a todo o mundo; mas, por que não se faz isso? Não diga que concorda comigo, pelo amor de Deus! Olhe! É porque somos nacionalistas. A glória da França, o estilo de vida dos americanos, o nacionalismo indiano, o nacionalismo africano, o imperialismo dos comunistas, bem como o dos capitalistas — todas essas coisas estão dividindo os homens economicamente. E, religiosamente, os homens estão separados por suas crenças. Aqui, no Ocidente, vocês acreditam no catolicismo, num certo Salvador, e em toda a Ásia, não se acredita em nada disso. Lá eles têm as suas próprias crenças. Estão, pois, os homens separados pelo nacionalismo, pelo racismo, pelas pressões econômicas, pela chamada religião. E todos nós somos responsáveis por isso, não? Vocês são nacionalistas, sentem orgulho de ser inglês, possuem muito orgulho de suas tradições, como francês — e sabe Deus o que mais. É isso o que está separando os homens, não? Por conseguinte, você e eu só deixaremos de ser responsáveis pelas dores do mundo quando estivermos livres no nacionalismo, do racismo, quando dentro de nós houver ordem.

Por outras palavras, nós somos entes humanos e não indivíduos. A individualidade é uma ideia antiquada, uma ideia insensata. Somos seres humanos, carregados dos problemas de todos os outros entes humanos, onde quer que vivam — na Europa, na Ásia ou na América. Mas se, como ente humano, compreendo a integral estrutura de minha sociedade, de minha norma de vida, com seus problemas, etc., estou então livre dessa imagem. Consequentemente, torna-se existente a ordem, e deixo de ser responsável pelas misérias do mundo. Estou fora da sociedade e assim, apto a ajudar a sociedade. Não desejo reforma-la. Compreendem? Devemos desembaraçar-nos, libertar-nos da sociedade, a fim de que surja um novo grupo humano e, por conseguinte, possa ser formada uma nova estrutura social. Não se pode reformar a velha sociedade; isso é retrocesso.

Krishnamurti - O descobrimento do amor

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Nem fácil nem difícil, só natural

O amor é um estado natural da consciência. Não é nem fácil nem difícil, essas palavras de forma nenhuma se aplicam a ele. Ele não é um esforço; por isso não pode ser fácil nem pode ser difícil.

É como respirar! É como as batidas do coração, é como o sangue circulando no nosso corpo.

O amor é o nosso próprio ser... mas esse amor ficou quase impossível. A sociedade não o permite. A sociedade condiciona você de tal forma que o amor fica impossível e o ódio passa a ser a única coisa possível.

Então o ódio é fácil, e o amor não só é difícil como impossível.

O homem tem sido deturpado. Ele não pode ser reduzido à escravidão se não for primeiro deturpado. Os políticos e os padres têm participado de uma profunda conspiração ao longo das eras. Eles têm reduzido a humanidade a uma multidão de escravos.

Estão destruindo qualquer possibilidade de rebelião no homem — e o amor é uma rebelião, porque o amor ouve só o coração e não dá a mínima para o resto.

O amor é perigoso porque ele faz de você um indivíduo. E o Estado e a Igreja... eles não querem indivíduos, de jeito nenhum. Não querem seres humanos, querem ovelhas. Querem pessoas que só pareçam seres humanos, mas cuja alma tenha sido esmagada de tal maneira, tenha sido danificada a tal ponto, que o estrago pareça quase irremediável.

E a melhor maneira de destruir o homem é destruir sua espontaneidade de amar. Se o homem tiver amor, não poderá haver nações; as nações existem no ódio. Os indianos odeiam os paquistaneses e os paquistaneses odeiam os indianos — só assim esses dois países podem existir.

Se o amor surgir, as fronteiras vão desaparecer.

Se o amor surgir, então quem vai ser cristão e quem vai ser judeu? Se o amor surgir, as religiões desaparecerão. Se o amor surgir, quem irá ao templo? Para quê?

É porque está faltando amor que você sai em busca de Deus. Deus não é nada mais do que um substituto para o amor que está faltando. Como você não é bem-aventurado, não está em paz, não está em êxtase, você está em busca de Deus.

Se a sua vida é uma dança, Deus já está no seu coração. O coração amoroso está cheio de Deus. Não há necessidade de mais nenhuma busca, não há necessidade de mais nenhuma prece, não há necessidade de ir a templo nenhum, de procurar padre nenhum.

Por isso o padre e o político, esses dois, são inimigos da humanidade. Eles estão conspirando, pois o político quer governar seu corpo e o padre quer governar sua alma. E o segredo é o mesmo: destruir o amor. Então o homem passa a ser nada além de uma vacuidade, de um vazio, uma existência sem sentido.

Então você pode fazer o que quiser com a humanidade e ninguém se rebelará, ninguém terá coragem suficiente para se rebelar.

O amor dá coragem, o amor leva todo o medo embora — e os opressores dependem do seu medo. Eles criam medo em você, mil e um tipos de medo. Você fica cercado de medos, toda a sua psicologia é cheia de medos.

Lá no fundo você está tremendo. Só na superfície você mantém uma certa fachada; mas, dentro de você, existem camadas e camadas de medo.

Um homem cheio de medo só pode odiar — o ódio é uma consequência natural do medo. Um homem cheio de medo é também cheio de raiva, e um homem cheio de medo é mais contra a vida do que a favor dela. A morte parece um estado repousante para ele.

O homem temeroso é suicida, tem uma visão negativa da vida. A vida lhe parece perigosa, pois viver significa que você terá de amar — como você poderá viver?

Exatamente como o corpo precisa respirar para viver, a alma precisa de amor para viver. E o amor está definitivamente envenenado.

Envenenando a sua energia de amor, eles criaram uma cisão em você; criaram um inimigo dentro de você, dividiram-no em dois. Eles criaram uma guerra civil, e você está sempre em conflito. E, no conflito, sua energia é dissipada; por isso sua vida não tem sabor, alegria. Não transborda de energia; ela é sem graça, insípida, falta-lhe inteligência.

O amor aguça a inteligência, o medo a embota.

Quem quer que você seja inteligente? Não aqueles que estão no poder. Como eles podem querer que você seja inteligente? — porque, se for inteligente, você começará a ver toda a estratégia, os jogos que eles fazem. Eles querem que você seja burro e medíocre.

Certamente querem que você seja eficiente no que diz respeito ao trabalho, mas não inteligente; por isso a humanidade vive o seu potencial mínimo.

Osho, em "Coragem: O Prazer de Viver Perigosamente"

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Somos indivíduos?

            É bem óbvio que não somos verdadeiros indivíduos. Cada um pode ter um nome diferente, diferentes tendências, sua casa própria, sua conta-corrente no banco, pertencer a uma determinada família, ter certos maneirismos, ser devoto de uma certa religião; entretanto nada disso constitui a individualidade. Nossa mente, na sua totalidade, é o resultado das influências do meio social, de uma determinada cultura ou civilização, de determinada religião; e, enquanto pertencer a qualquer dessas “particularidades”, a mente, é claro, não pode ser simples, pura, direta. Para o descobrimento do Real é indispensável uma mente clara e simples.
            Nessas condições, há possibilidade de verificarmos juntos, vós e eu, se se pode libertar a mente de todo esse peso da influência, da tradição, da crença? Porque a mim me parece que esta é a única finalidade do viver; descobrir o que é a Realidade. Se desejamos fazer este descobrimento, devemos investigar o que é que nos faz conformar-nos, ajustar-nos. Estamos a ajustar-nos a todas as horas, não é verdade? Nossa vida e nossas tendências, nossa educação, nossa moral, todas as sanções da religião, estão orientadas para o conformismo. Nossa religião se baseia essencialmente no conformismo. E, por certo, a mente que se conforma, se ajusta, não é livre, não é capaz de investigação. Em vista disso, podemos nós, vós e eu, examinar no seu todo esse processo de conformismo, descobrir o que é que faz a mente sujeitar-se a um determinado padrão de sociedade, de cultura? Nós nos ajustamos, porque, essencialmente, temos medo. Não é verdade? Impelidos pelo medo, criamos a autoridade, a autoridade da religião, a autoridade de um guia, porque o nosso desejo é estar em segurança, protegidos; talvez não tanto assim do ponto de vista físico, mas, essencialmente, desejamos segurança interior, segurança psicológica e criamos assim, uma sociedade que nos garanta a segurança exterior.
            Isso é um fato psicológico, e, como tal, não pode ser objeto de debate ou disputa. Isto é, desejo estar em segurança; psicologicamente, interiormente, desejo uma certeza — certeza de bom êxito, certeza de realizar algo, certeza de “chegar lá”, onde quer que esteja esse “lá”. E assim sendo, para que possa realizar, “chegar”, ser alguma coisa, necessito da autoridade.
            Vede, por favor — se desejais colher algum fruto destas palestras — que seria aconselhável, enquanto ouvis, examinásseis com atenção a vossa mente. A fala, as palavras não são mais do que uma simples descrição de vosso próprio estado mental; e só escutar palavras nenhuma significação tem. Mas se, no processo de escutar, somos capazes de olhar para dentro de nós mesmos e observar as operações de nossa própria mente, terá então significado esse escutar “descritivo”. E espero se me permitis sugeri-lo — estejais procedendo assim, e não meramente a escutar as minhas palavras.
            Cada um de nós tem o desejo de segurança — nas relações, no amor, nas crenças, nas nossas experiências; queremos estar seguros, certos, livres de toda dúvida. E, uma vez que este é o nosso mais íntimo desejo, psicologicamente falando, é bem óbvio que temos de estribar-nos na autoridade. Eis a verdadeira anatomia da autoridade, a sua verdadeira estrutura; aqui temos a razão por que a mente cria a autoridade. Podeis rejeitar a autoridade de uma certa sociedade, de um certo líder, ou de uma certa religião; mas, nesse caso, vós mesmos criareis outra autoridade. E então será vossa própria experiência, vosso próprio saber que se tornará vosso guia. Porque a mente quer sempre estar certa; não pode viver num estado de incerteza. Por estar sempre interessada na certeza, ela tem de criar autoridades.
            E esta é a base em que está assentada a nossa sociedade, com sua cultura, seu saber, suas religiões. Ela se baseia essencialmente na autoridade, a autoridade da tradição, do sacerdote, da Igreja, ou a autoridade do especialista. Como a nossa intenção é viver em segurança, tornamo-nos escravos dos especialistas. Mas, sem dúvida, se queremos achar algo que seja real, e não apenas ficar a repetir as palavras “Deus”, “Verdade”, que nenhuma significação têm, quando repetidas; se queremos fazer algum descobrimento, a mente tem de achar-se numa insegurança absoluta, num estado de não dependência de qualquer autoridade. Isto é dificílimo para a maioria de nós, que fomos educados, desde pequenos, para crer, para viver sempre em alguma espécie de dependência; e, na falta do líder, do guia, do instrutor, do sacerdote, criamos nossa imagem própria do que pensamos ser verdadeiro e que nada mais é do que a reação de nosso próprio condicionamento.
            Assim sendo, parece-me que, enquanto a mente estiver sendo moldada e controlada pela sociedade — não só o ambiente social, educativo e cultural, mas o conceito geral de autoridade, crença e conformismo — é bem óbvio que ela, a mente, não pode encontrar o que é verdadeiro, e, portanto, não poderá ser criadora; só saberá imitar, repetir. O problema, por conseguinte, não é — “Como ser criador?” — e sim, — “se podemos compreender de modo completo o “processo” do medo” — o medo da opinião dos outros, o medo à solidão, o medo de perdermos dinheiro, o medo de não alcançarmos a meta, de não sermos bem sucedidos neste mundo ou noutro mundo qualquer. Enquanto houver alguma forma de temor, este temor criara a autoridade, da qual a mente ficará dependendo; e, em tais condições, é bem de ver que a mente não será capaz de avançar, de investigar, de afastar todos os obstáculos, a fim de descobrir o que é “ser verdadeiramente criador”.
            Não achais, pois, que é importante perguntemos a nós mesmos, cada um de nós, se realmente somos indivíduos, e não fiquemos meramente a dizer que o somos? Na realidade, não somos indivíduos. Podeis ter um corpo separado, um rosto diferente, nome e família diferentes; mas a vossa estrutura mental interna está essencialmente condicionada pela sociedade; por conseguinte, não sois indivíduos. Por certo, só a mente não acorrentada pelas imposições da sociedade, e todas as respectivas complicações, só essa mente pode ser livre para investigar o que é a Verdade e o que é Deus. Do contrário, nada mais fazemos senão provocar repetidas catástrofes e nunca haverá possibilidade de realizar-se aquela revolução que fará nascer um mundo totalmente diferente. Esta me parece a única coisa verdadeiramente importante — não a que sociedade, a que grupo, a que religião devemos ou não devemos pertencer (pois tudo isso já se tornou muito infantil), porém sim que cada um investigue, por si mesmo, se a mente pode libertar-se de todas as imposições do uso, da tradição, da crença, para investigar livremente o que é verdadeiro. Só então poderão existir entes humanos criadores.
           
Krishnamurti – Austrália e Holanda – 1955 (2ª Conferência em Amsterdã)

Você é - realmente - um indivíduo?


            Que entendemos por indivíduo? Uma pessoa que é controlada e dominada pelos seus temores, suas decepções, suas ansiedades, os quais criam uma certa série de circunstâncias que a escravizam e a forçam a se ajustar a uma estrutura social. É isto o que entendemos por indivíduo. Por meio de nossos temores, nossas superstições, nossas vaidades e nossas ansiedades, criamos certo conjunto de circunstâncias das quais nos tornamos escravos. Quase perdemos nossa individualidade, nossa unicidade. Quando examinardes a vossa ação na vida diária, verificareis que ela é apenas uma reação a um conjunto de padrões, a uma série de idéias.
            Por favor, acompanhai o que estou dizendo e não digais que incito o homem a libertar-se de modo a poder fazer o que bem entender — de modo a produzir ruína e desastre.
            Antes de tudo desejo esclarecer que somos apenas reações a uma série de padrões e idéias que criamos por meio de nosso sofrimento e temor, por meio de nossa ignorância, por meio de nosso desejo de posse. A essa reação chamamos ação individual, mas para mim isto não é absolutamente ação. É uma constante reação em que não há ação positiva.
            Di-lo-ei de outro modo. No presente o homem é apenas vacuidade de reação, nada mais. Ele não age baseado na integridade de sua natureza, na sua plenitude, na sua sabedoria; ele age meramente baseado numa reação. Afirmo que o caos, a completa destruição está tendo lugar no mundo por não agirmos baseados em nossa plenitude, mas em nosso temor, em nossa falta de entendimento. Uma vez que nos tornemos conscientes do fato de que o que chamamos individualidade é apenas uma série de reações nas quais não há plenitude de ação; uma vez que compreendamos que essa individualidade é apenas uma série de reações nas quais há contínuo vazio, um vácuo, então agiremos harmoniosamente.
            Como podereis descobrir o valor de um dado padrão que mantendes? Não o fareis agindo em oposição a esse padrão, mas pesando, comparando o que realmente pensais e sentis com o que ele exige. Verificareis que o padrão exige certas ações, enquanto a vossa ação instintiva tende para outra direção. Que fareis então? Se fizerdes o que pede o vosso instinto, a vossa ação vos conduzirá ao caos, porque nossos instintos - foram pervertidos através de séculos pelo que chamamos educação — educação essa que é inteiramente falsa. O vosso próprio instinto requer um tipo de ação, mas a sociedade, que nós individualmente criamos no decorrer dos séculos, sociedade de que nos tornamos escravos, exige outro tipo de ação. E quando agis de conformidade com a série de padrões exigidos pela sociedade não estais agindo com plenitude de compreensão.
            Refletindo realmente sobre as exigências de vossos instintos e as da sociedade, descobrireis como podereis agir com sabedoria. Essa ação liberta o individuo; não o aprisiona. Mas a libertação do indivíduo exige grande ardor, grande busca na profundeza da ação; não é o resultado da ação oriunda de um impulso momentâneo.
            Assim, tendes de reconhecer o que sois agora. Por melhor que tenhais sido educado, sois apenas parcialmente um verdadeiro indivíduo; a maior parte de vosso ser é determinada pela reação para com a sociedade que criastes. Sois apenas uma engrenagem numa tremenda máquina a que chamais sociedade, religião, política, e, enquanto fordes uma tal engrenagem, a vossa ação será oriunda da limitação; ela vos conduzirá somente à desarmonia e ao conflito. O caos atual resultou de vossa ação. Mas se agísseis partindo de vossa plenitude descobriríeis o verdadeiro valor da sociedade e o instinto que origina a vossa ação; então esta seria harmoniosa, não um compromisso.
            Antes que tudo, portanto, precisais tornar vos consciente dos falsos valores estabelecidos através dos séculos e aos quais vos escravizastes; precisais tornar-vos consciente dos valores para descobrir se são falsos ou verdadeiros, e isto precisais fazê-lo por vós mesmo. Ninguém o poderá fazer por vós — e aí reside a grandeza e a glória do homem. Desse modo, pela descoberta do verdadeiro valor dos padrões, libertais a mente dos falsos padrões transmitidos através do tempo.
            Mas tal libertação não significa ação impetuosa, instintiva, conduzindo ao caos; significa ação nascida da plena harmonia da mente e coração. (...)
  
            (...) O homem em geral vê a vida apenas pela tradição do tempo, que traz em sua mente e coração; enquanto para mim a vida é fresca, renovadora, movente, nunca estática. A mente e o coração do homem estão sobrecarregados com o inquestionado desejo de conforto, que, necessariamente, deve originar autoridade. Pela autoridade ele enfrenta a vida e assim é incapaz de compreender o pleno significado da experiência, o único que pode libertá-lo do sofrimento. Ele se consola com os falsos valores da vida e se torna simplesmente máquina, uma engrenagem na estrutura social ou no sistema religioso. Não se pode descobrir o que é valor verdadeiro enquanto a mente está à procura de consolo; e desde que a maioria das mentes estão procurando consolo, conforto, segurança, não podem descobrir o que a verdade é. Assim a maioria das pessoas não são indivíduos; são meras engrenagens de um sistema. Para mim, indivíduo é uma pessoa que por meio do interrogar, descobre valores verdadeiros; e só se pode realmente interrogar quando se está em sofrimento. Quando sofreis, percebeis que a vossa mente se torna aguda, sensível; nesse momento não sois teórico; e apenas neste estado da mente podeis interrogar qual o verdadeiro valor dos padrões da sociedade, a religião e a política erigiram em torno de nós. Apenas neste estado podemos interrogar, e quando interrogamos, quando descobrimos verdadeiros valores, então somos indivíduos verdadeiros. Nunca antes. Isto é, não somos indivíduos enquanto estamos inconscientes dos valores a que nos acostumamos pelas seguranças, pelas religiões, pela busca de crenças e ideais. Somos simplesmente máquinas, escravos da opinião pública, escravos dos inúmeros ideais que as religiões colocaram ao nosso redor, escravos dos sistemas econômicos e políticos que aceitamos. E desde que todos são dentes de engrenagem nesta máquina, jamais podemos descobrir verdadeiros valores, valores duradouros, os únicos em que reside a eterna felicidade, a eterna realização da verdade.

Krishnamurti – 8 de julho de 1933 – 2ª Palestra em Stresa – 
Livro: Palestras e Respostas a perguntas feitas por KRISHNAMURTI – Itália e Noruega - ICK
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill