É possível o indivíduo
emergir do coletivo?
Estivemos falando no último domingo sobre a questão de o indivíduo libertar-se de todas as limitações que lhe são impostas pela sociedade, e sobre o condicionamento religioso; porque, só quando está livre de seu condicionamento pode o indivíduo ser criador.
Entendo por "criação" o "estado de ser" libertado do tempo, porque é só neste estado que se pode produzir a correta transformação social e o bem-estar total do homem.
Não parecemos compreender o pleno significado da libertação individual do "coletivo", nem perceber a sua importância. É possível o indivíduo emergir do coletivo? Afinal, embora tenhamos nomes diferentes, depósitos particulares no banco, residências particulares, características pessoais, etc., não somos realmente indivíduos e sim, meramente, um resultado do "coletivo". Séculos e séculos de valores tradicionais, de crenças e dogmas, conscientes ou depositados no inconsciente, indicam-nos o caminho que devemos seguir e impelem-nos a mente, que temos por individual. Mas a mente é um resultado da totalidade dessas compulsões, impulsos e desejos, e embora lhe seja atribuído um nome especial, como Sr. X, ela não tem real individualidade. E não me parece que compreendemos quanto é necessário, essencial, o emergir do indivíduo desse total condicionamento do homem. É no instante em que nos libertamos do "coletivo" que surge o indivíduo criador, e a libertação desse estado criador é a questão fundamental, já que só então se pode descobrir se existe uma realidade atemporal, um estado a que se pode chamar "Deus". A mera asserção de que há ou não um tal estado, nenhum valor tem; o que tem valor é a experiência direta, não contaminada pelo passado.
Como estive explicando em nossa última reunião, a libertação deve estar no começo e não no fim. A liberdade deve vir em primeiro lugar, e não por último; e só pode haver liberdade quando a mente começa, no ponto de partida exato, a libertar-se de seu próprio condicionamento.
Importa pois a cada um de nós "realizar" essa liberdade em nós mesmos e exigi-la para nossos filhos, pela educação correta, etc. É sobre isto que desejo falar nesta tarde.
Ora, evidentemente, não estamos livres quando estamos seguindo a outro. É preciso estar-se livre do instrutor religioso, e isso significa que cada um tem de ser a luz de si mesmo e não depender da luz de nenhum outro. E pode-se realmente "experimentar" esse aliviar, esse libertar da mente do líder, do instrutor, do guru? Podemos experimentar realmente esse estado agora, que estamos falando sobre ele, de modo que a mente não dependa de nenhuma autoridade, não dependa de ninguém, para orientá-la e guiá-la?
Todas as vossas chamadas doutrinas religiosas criam um ideal, que seguis; e este ideal se torna uma nova espécie de instrutor. E, por certo, esta total libertação da ideia do guia, do instrutor, do seguir, sob qualquer forma que seja, esta libertação é essencial. Porque o seguir um instrutor implica acumulação de conhecimentos, e a libertação só é possível pela completa renúncia ao conhecimento. Afinal, são só conhecimentos o que estamos verdadeiramente buscando, na nossa vida de cada dia, não é verdade? Precisamos de conhecimentos para executar trabalhos, conhecimentos para agir, conhecimentos para nos guiarem ao alvo, ao sucesso, à realização de algo. E esse próprio conhecimento se torna o fator de nosso cativeiro. Mas pode a mente liberta-se do conhecimento? Acho muito importante considerar esta questão e, portanto, tratemos de investigá-la e não a ponhamos de parte, dizendo que a mente não pode libertar-se do conhecimento ou afirmando, meramente, que isso é possível.
O seguir implica sempre acumulação de conhecimentos, não é verdade? E onde há acumulação de conhecimentos tem de haver imitação. Afinal, quando se vos faz uma pergunta sobre questão que conheceis bem, vossa resposta é imediata. Se vos perguntam onde morais, qual a vossa profissão, vosso nome, etc., a memória responde instantaneamente, porque são coisas com que estais bem familiarizado. Mas se se faz uma pergunta mais complexa, há então hesitação — isso implica que a mente está dando uma busca nos arquivos da memória, para achar a resposta correta. E se se pergunta uma coisa sobre a qual praticamente nada sabeis, recorreis a um livro ou buscais mais profundamente naquela parte da consciência que é a memória. Assim sendo, sois sempre guiados pela memória. Memória deve haver, porque do contrário não poderíeis voltar à vossa casa, executar o vosso trabalho, construir uma ponte, etc. Aprendemos uma multidão de coisas necessárias e esses conhecimentos naturalmente não devem ser esquecidos. Mas eu me refiro a conhecimentos de ordem completamente diferente: os conhecimentos que a psique acumula, com o fim de proteger-se no futuro e realizar qualquer coisa que deseje realizar, psicologicamente, espiritualmente. É esse conhecimento que nos faz,egocêntricos, porque a mente dele se serve como meio de dar continuidade a si mesma, como meio de expansão do "eu". É a esse conhecimento que cumpre renunciar totalmente. Esta é que é a verdadeira renúncia — e não o abandonar uns poucos bens, uma casa, um pedaço de terra, e cingir uma tanga.
Temos, pois, esse conhecimento acumulado, sobre o qual a psique se forma e se mantém. E pode a mente, que é resultado do passado, renunciar a esse conhecimento? Decerto, enquanto a mente não se descartar desse conhecimento, nunca encontrará o que é novo, jamais conhecerá o instante atemporal, que é o "estado criador". Vede, o de que necessitamos neste momento não é mais físicos, mais cientistas, engenheiros, burocratas, políticos, porém indivíduos que conheceram esse "estado criador"; porque esses indivíduos é que são as pessoas verdadeiramente religiosas — o que significa que não pertencem a nenhuma sociedade, nenhum grupo, nenhuma classificação. Eis porque muito importa compreender todo esse mecanismo da acumulação de conhecimentos, que subentende identificação e senso de avaliação. Pode a mente estar livre, para observar sem avaliação nem julgamento? Não resta dúvida de que suas avaliações, suas comparações, suas condenações, baseiam-se todas no conhecimento, e essa mente é incapaz de compreender o que é verdadeiro.
Se observardes o processo de vosso próprio pensar, vereis que a mente só tem interesse em acumular mais e mais conhecimentos, e por essa razão nunca há um momento de liberdade, para explorar. E acho muito importante compreender, isto é, "experimentar", real e instantaneamente, esse estado de liberdade do passado, sem continuidade, — e não apenas asseverar que a mente pode ou que a mente não pode ser livre. Isso se tornará bastante simples, se soubermos escutar realmente o que se está dizendo; porque isso é uma coisa que se tem de experimentar, que se tem de sentir, e não discutir a seu respeito.
A mente, em verdade, é resultado do passado, de muitos dias pretéritos, o que é um fato bem óbvio. Ela é o resíduo do conhecido — sendo o conhecido a coisa experimentada, a palavra, o símbolo, o nome, o inteiro processo de reconhecimento. Essa mente, de certo, é incapaz de descobrir ou "experimentar" o desconhecido. Ela poderá especular, mas sua especulação estará baseada no conhecido, nas coisas que leu, Só poderá a mente experimentar aquele estado, quando o conhecimento — e por este termo entendo a memória de muitas experiências, — o inteiro processo de reconhecimento, que é "eu", "meu" — houver terminado.
Pois bem. Se puderdes, não apenas escutar o que se está dizendo, mas também afastar de vós tudo o que conheceis — as conclusões, as avaliações, as determinações, os ideais — vereis então surgir um estado sem continuidade, como memória, mas que é, instantaneamente, a totalidade do Ser. Esse momento é que é o Sublime, o Supremo, e ele precisa ser experimentado. Mas só se pode experimentá-lo, quando a mente está completamente tranquila, compreendendo a totalidade de sua própria estrutura. E pelo autoconhecimento que vem a quietude da mente, e não por meio de disciplina, por meio de compulsão. E nessa tranquilidade total encontrareis um momento que não está relacionado com o passado, um instante em que se verifica a criação. E esse estado é essencial, porque liberta a mente do "coletivo" e dá existência à individualidade.
O "coletivo" é a mente condicionada pela sociedade, por influências inúmeras, pelos valores e crenças a que se apega a multidão e de que uns poucos se livram, mas só para lhe acrescentarem mais uma crença. Em vista de tudo isso, é possível à mente, sem esforço algum, renunciar ao passado? Enquanto o não fizer, continuará a haver a observância, da tradição, de ontem ou de há milhares de anos. E a mente que segue a tradição é imitativa, dependente de um instrutor, com o que mantém a desigualdade, não apenas no nível físico, mas também no nível psicológico. Para essa mente, "criação" é apenas uma palavra sem sentido. Para se produzir um estado diferente, uma cultura diferente, uma diferente maneira de vida, é de todo necessária a libertação do indivíduo, a libertação dessa força criadora interior que produzirá sua sociedade própria, seus valores próprios.
Krishnamurti, Segunda Conferência em Bombaim
7 de maio de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana