O mecanismo do nacionalismo
PERGUNTA: Pode vir a paz mundial, sem um governo mundial para implantá-la ou mantê-la? E como realizar isso?
KRISHNAMURTI: A paz é exterior ou interior? Pode qualquer governo trazer-nos a paz, ainda que seja um governo mundial? Poderá estabelecer uma ordem exterior, sem constante ameaça de guerra, mas, mesmo isso, só é possível quando não há nacionalismo, quando não há fronteiras políticas ou religiosas. Deve-nos, pois, ficar bem esclarecido o que entendemos por paz.
É a paz uma coisa que deve ser criada pela autoridade de um governo, comunista, imperialista, capitalista, ou como quer que seja? A paz tem de ser implantada pela legislação? Pode-se ver que um governo mundial poderia estabelecer uma certa modalidade de paz. Poderia, talvez, abolir os governos soberanos, com suas forças armadas, e que constituem uma das causas da guerra. Mas não é este, por certo, o inteiro significado da paz. A paz vem da mente. E pode haver uma mente em paz, enquanto ela for ambiciosa, ávida, invejosa? Foi a mente ávida, invejosa, ambiciosa que criou esta sociedade belicosa em que vivemos, não é verdade? Nossa sociedade está baseada na aquisição, na inveja, na avidez, na impetuosa ambição de sermos alguma coisa. E, assim, dentro de nossa sociedade trava-se uma batalha, um conflito incessante.
A paz, pois, vem da mente e não pode ser criada pela mera legislação. A tirania poderá implantar uma ordem de certa espécie, numa sociedade confusa e contraditória, e a ordem pode também ser produzida pela ação do parlamento de um governo democrático. Mas enquanto houver o espírito de nacionalismo a criar governos soberanos, com suas forças armadas, enquanto houver fronteiras e divisões raciais, tem de haver guerras, inevitavelmente. Por conseguinte, o homem que deseja ser pacífico não pode pertencer a nação alguma, não pode pertencer a nenhuma religião porque, presentemente, religião é mero dogmatismo organizado.
Essa coisa que chamamos paz precisa ser compreendida interiormente, e não apenas instituída pela legislação ou pelo encontro de muitas opiniões. Se observardes, vereis com que devoção cultuamos o nacionalismo e erguemos bem alto a bandeira de uma dada nação. Identificamo-nos com o todo que chamamos a Índia porque, sendo pequenos, interiormente vazios e vivendo num lugarejo como Madanapale, o denominarmo-nos indianos confere-nos um certo orgulho, lisonjeia-nos a vaidade. E em defesa desse orgulho e dessa vaidade, estamos prontos a matar ou ser mortos. Este mui complexo problema psicológico, que se mantém vivo em todos os países, precisa ser bem compreendido por cada um de nós, e não apenas coibido pela legislação. E eis porque o homem verdadeiramente religioso é aquele que não pertence a nenhuma religião e a nenhum país.
PERGUNTA: Sois
indiano, e Andhra, nascido aqui em Madanapale. Orgulhamo-nos de vós e de vossa
benfazeja obra no mundo. Porque não passais mais — tempo em nossa terra natal,
em vez de viverdes na América. Sois necessário aqui.
KRISHNAMURTI: É um processo peculiar, esse que se
observa no mundo, esta identificação da pessoa com um certo pedaço de terra ou
uma suposta religião. Tem tanta importância o lugar em que nascemos, ou a
língua que falamos, ou a especial cultura em que fomos criados? Vede o que está
acontecendo neste nosso país. Estamos-nos esfacelando, denominando-nos Tamils,
Telugus, Maharashtrianos, etc. Este processo de fragmentação, se observa também
na Europa — alemães, ingleses, franceses, italianos, etc. Quando um homem rende
culto ao particular ou com ele se identifica, suas lutas se tornam muito
maiores, seus sofrimentos aumentam. Enquanto eu continuar a ser Andhra,
pertencer a uma dada classe ou religião, minha mente continuará limitada,
estreita. A mente, por certo, deve quebrar todas estas limitações, para
poder encontrar o todo; mas o todo não se constitui de partes. Pelo juntar
muitas partes umas às outras, não se encontra o todo. E só quando não nos
deixamos senhorear pela parte, que temos a possibilidade de perceber
imediatamente o todo.
Krishnamurti, Primeira Conferência em Madanapale
12 de fevereiro de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana