É sobremodo difícil compreender os meandros e as complexidades das relações humanas. Mesmo quando temos muita intimidade com uma pessoa, é muitas vezes dificílimo e quase impossível conhecer-lhes os verdadeiros sentimentos e pensamentos. Isso se torna menos difícil quando há afeição, quando há amor entre duas pessoas, porque há então comunhão imediata, simultânea e no mesmo nível; mas essa comunhão é negada, quando ficamos apenas discutindo ou apenas ouvindo no nível verbal. É dificílimo estabelecer essa comunhão entre eu e você, porque não há comunhão, não há verdadeiro entendimento entre nós.
A comunhão deixa de existir quando há temor ou preconceito, porque nesse caso entra em funcionamento o mecanismo de defesa. Talvez eu veja as coisas de maneira diferente daquela a que você está habituado, e desejo estar em comunhão com você, desejo comunicar-lhe o que vejo. Posso não ver com exatidão ou de maneira completa; mas, se deseja examinar o que estou lhe comunicando, deve, de sua parte, estar aberto, receptivo.
Não estou me ocupando com ideias. As ideias, para mim, não têm significação alguma. Ideias não produzem revolução, ideias não produzem regeneração; e é a regeneração que é essencial. A comunicação de ideias é relativamente fácil, mas o comungarmos uns com os outros, além do nível verbal, é sobremaneira difícil.
O que devemos estabelecer entre nós não é uma comunhão imaginária, uma comunhão mística, mas uma comunhão que só é possível quando nós dois estamos seriamente interessados em descobrir a verdade que resolverá nossos problemas. Quanto a mim, creio em uma realidade que existe de momento em momento e que, absolutamente, não se encontra na esfera do tempo. Essa realidade representa a única solução aos múltiplos problemas da nossa vida. Quando uma pessoa percebe essa realidade, ou quando ela surge, ele é um fator de libertação; mas nenhuma soma de argumentação intelectual, de disputa, de conflito econômico, social ou religioso, resolverá os problemas gerados pela mente.
Para haver comunicação temos que comungar uns com os outros, e para tal precisamos estar abertos e receptivos, não aceitando nem negando, mas investigando. Você e eu estamos em relação, não estamos vivendo isoladamente. A verdade não é algo separado do estado de relação. As relações constituem a sociedade, e na compreensão das relações entre você e a sua esposa, entre você e a sociedade, você encontrará a verdade, ou melhor, a verdade virá até você, trazendo-lhe a libertação de todos os problemas. Você não pode achar a verdade; deve deixá-la vir até você; e para que isso aconteça requer-se uma mente não mais perturbada pela ignorância.
Ignorância não significa a falta de conhecimentos técnicos, a falta de leitura de muitos livros filosóficos: ignorância é a falta de conhecimento próprio. Ainda que uma pessoa tenha lido muitos livros filosóficos e sagrados e seja capaz de citá-los, essas citações, que representam uma acumulação de palavras e experiências alheias, não libertam a mente da ignorância. Surge o autoconhecimento ao investigarmos e experimentarmos as tendências dos nossos próprios pensamentos, sentimentos e atos, o que significa estarmos cônscios de nosso "processo" total, nas relações, instante por instante.
O autoconhecimento, do qual trataremos mais adiante, dá-nos a exata perspectiva de qualquer de nossos problemas, e a exata perspectiva é a compreensão da verdade contida no problema; e essa compreensão, inevitavelmente, produzirá ação, nas relações. Por conseguinte, o autoconhecimento não se opõe à ação, não a nega. O autoconhecimento revela a perspectiva correta, ou seja a verdade contida no problema, da qual resulta a ação — essas três coisas estão sempre relacionadas entre si; não são separadas. Não há ação verdadeira sem autoconhecimento. Se não me conheço a mim mesmo, é óbvio que não tenha base para a ação; o que faço é uma mera atividade, reação de uma mente condicionada, e portanto sem significação. Uma reação condicionada não pode nos libertar nem colocar ordem no caos.
Ora, o mundo e o indivíduo são um "processo" único, não são opostos uma ao outro; e o homem que está tentando resolver seus próprios problemas, que são os problemas do mundo, necessita evidentemente de uma base para o seu pensar. Acho bastante claro isso. Se não me conheço a mim mesmo, falta-me a base para pensar; se, desconhecendo-me a mim mesmo, ponho-me em atividade, essa atividade só poderá gerar sofrimentos e confusão — exatamente o que está sucedendo no mundo, nos tempos atuais.
Nessas condições, a investigação que nos leva ao autoconhecimento não é um processo de isolamento, não é uma fantasia nem luxo de asceta. Pelo contrário, é uma necessidade evidente para o homem do mundo, para o pobre e o rico, e para aquele que deseja resolver os problemas do mundo. Julgo importantíssimo compreender que este mundo é produto de nossa existência diária, e que o ambiente criado por nós não é independente de nós. O ambiente existe, e não podemos transformá-lo sem nos transformarmos a nós mesmos; e para isso, devemos compreender os nossos pensamentos, sentimentos e atos, na vida de relação.
Os economistas e os revolucionários querem alterar o ambiente sem alterar o indivíduo; mas a simples alteração do ambiente, sem a compreensão de nós mesmos, não tem significação alguma. O ambiente é produto dos esforços do indivíduo, estando um e outro relacionados entre si; não se pode alterar um deles, sem alterar também o outro. Você e eu não estamos isolados; somos o resultado do "processo" total, o produto de toda a humanidade, quer vivamos na Índia, no Japão ou na América. A soma de toda a humanidade sou eu e você. Podemos estar conscientes ou inconscientes desse fato. Para se realizar uma transformação revolucionária na estrutura da sociedade, deve cada indivíduo compreender-se a si mesmo como um "processo" total, e não como uma entidade separada, isolada.
(...) Mas deve ficar bem claro, para o homem que sente real interesse, que não pode haver uma revolução completa no mundo num nível único, econômico ou espiritual. Uma revolução total, uma revolução fecunda, só será possível se você e eu nos compreendermos como um "processo" total. Você e eu não somos indivíduos isolados, mas, sim, o resultado de toda a luta da humanidade, com suas ilusões, suas fantasias, desejos, ignorância, diferenças, conflitos e misérias. Não podemos começar a alterar as condições do mundo antes de termos compreendido a nós mesmos. Se você perceber isso, dar-se-á, dentro de você, imediatamente, uma completa revolução. Então, é desnecessário o guru, porque o autoconhecimento se processa minuto por minuto: não é uma acumulação de coisas ouvidas de outrem, nem se encerra nos preceitos dos religiosos.
Quando o indivíduo está descobrindo-se a si mesmo, instante por instante, em suas relações com outras pessoas, essas relações assumem significado inteiramente diverso. As relações transformam-se em revelação, em constante "processo" de autodescobrimento; e desse autodescobrimento resulta a ação.
(...) O mero citar de autoridades não representa autoconhecimento, descobrimento do "processo" do "eu", e por conseguinte, de nada vale. Você tem de começar como se nada soubesse, pois só assim realizará um descobrimento fecundo e libertador; só assim encontrará, com seu descobrimento, a felicidade e a alegria. Mas nós, a maioria de nós, vivemos de palavras; e as palavras, tal como a memória, são produto do passado. Um homem que vive no passado não pode compreender o presente.
(...) Enquanto não nos compreendermos a nós mesmos, caminharemos sempre de um conflito para outro. Nada se pode criar quando há conflito; a criação só é possível quando cessa o conflito. Para um homem que vive numa batalha constante consigo mesmo e com seu próximo, nunca haverá a possibilidade de regeneração — ele só pode ir de reação em reação. Só pode vir a regeneração quando estamos livres toda reação, e essa liberdade só pode nascer do autoconhecimento.
Krishnamurti em, A ARTE DA LIBERTAÇÃO