Desejo nesta manhã falar sobre o significado da religião, não apenas para explicá-lo verbalmente, mas também para compreendê-lo profundamente. Mas, antes de nos aprofundarmos nesta questão, precisamos ficar bem esclarecidos sobre o que é mente religiosa, e qual o estado da mente que investiga, de fato, a questão da religião.
Parece-me sumamente importante compreender a diferença entre isolamento e solidão. Quase toda a nossa atividade diária se concentra em torno de nós mesmos; baseia-se em nosso particular ponto de vista, em nossas próprias experiências e idiossincrasias. Pensamos em termos relativos à nossa família, nosso emprego, nossos objetivos, e também em referência a nossos temores, esperanças e desesperanças. Tudo isso é obviamente egocêntrico e torna existente um estado de isolamento, como se pode ver na vida de cada dia. Temos secretos desejos pessoais, ocultos apelos e ambições, e nunca nos achamos em profunda relação com ninguém, nem com as nossas esposas, nem com os nossos maridos ou nossos filhos. Esse isolamento é igualmente um resultado de nossa fuga ao tédio cotidiano, às frustrações e trivialidades de nossa vida diária. É causado, também, pela nossa fuga ao estranho sentimento de solidão que nos assalta quando nos vemos subitamente desligados de tudo, quando tudo está longe de nós e não há comunhão, não há relação com ninguém. Penso que a maioria de nós, aqui presentes — se alguma vez nos conscientizamos do mecanismo de nosso próprio existir — tem sentido profundamente essa solidão.
Em virtude dessa solidão, desse sentimento de isolamento, tratamos de identificar-nos com alguma coisa maior do que nós — pode ser o Estado, um ideal, ou um conceito acerca de Deus. Essa identificação com algo maior ou imortal, algo exterior à esfera de nosso pensamento, chama-se geralmente “religião” e conduz à crença, ao dogma, ao ritual, a atividades separadas de grupos rivais, cada um dos quais crê num diferente aspecto da mesma coisa; assim, o que chamamos religião produz mais isolamento ainda.
E vê-se, também, como o mundo está dividido em nações rivais, cada uma com seu governo soberano e suas barreiras econômicas. Embora todos sejamos entes humanos, temos edificado muralhas entre nós mesmos e nossos semelhantes, com o nacionalismo, a raça, a casta, a classe — o que, por igual, gera isolamento, solidão.
Ora, a pessoa que se envolve na solidão, nesse estado de isolamento nunca terá possibilidade de compreender o que é religião. Poderá crer, ter certas teorias, conceitos, fórmulas, poderá procurar identificar-se com o que chama Deus; mas a religião, assim me parece, nada tem que ver com crenças, sacerdotes, igrejas ou os chamados livros sagrados. Só podemos compreender o estado da mente religiosa ao começarmos a compreender o que é a beleza. E a compreensão da beleza tem de começar pela solidão total. Só nesse estado é que podemos conhecer a beleza.
Solidão, evidentemente, não é isolamento, nem singularidade. Ser “singular” é apenas de algum modo ser excepcional, ao passo que o estar completamente só requer extraordinária sensibilidade, inteligência, compreensão. “Estar completamente só” implica que a pessoa se encontra livre de toda espécie de influência e, por conseguinte, isenta da contaminação social; temos de estar sós para compreender o que é religião — a verdadeira religião, que é descobrir individualmente se existe algo imortal, eterno.
A mente, tal como é na atualidade, resulta de milhares de anos de influência — biológica, sociológica, ambiente, climática, alimentar, etc. Isso também é bem óbvio. Sois influenciados pela alimentação, pelos jornais, por vossa mulher ou marido, por vosso vizinho, pelo político, pelo rádio, pela televisão, e outras coisas mais. Estais sendo influenciados pelo que vos é “despejado”, na mente consciente e na inconsciente, de muitas e diferentes direções. E não é possível estarmos apercebidos dessas numerosas influências, de maneira tal que não nos deixemos enredar por nenhuma delas? Do contrário, a mente se torna um mero instrumento do ambiente. Poderá criar uma imagem do que ela pensa ser Deus ou a Verdade Eterna, e crer nessa coisa, mas continua a ser moldada pelo ambiente, suas exigências, tensões, superstições, pressões; e sua crença não representa, absolutamente, o estado de uma mente religiosa.
Como cristão, fostes criado numa igreja construída pelo homem no decorrer de dois milênios, com seus sacerdotes, dogmas, rituais. Em pequeno, batizaram-vos e enquanto crescíeis disseram-vos o que devíeis crer; passastes por todo esse mecanismo de condicionamento, de “lavagem do cérebro”. A pressão dessa religião, com sua máquina de propaganda, é obviamente forte, sobretudo porque é bem organizada e está apta a exercer influência psicológica mediante a educação, a adoração de imagens, a atemorização, e o condicionamento da mente. Em todo o Oriente, também, as pessoas estão fortemente condicionadas por suas crenças, seus dogmas, suas superstições, e por uma tradição que remonta a dez mil anos ou mais.
Ora, a menos que a mente esteja livre, não terá possibilidade de descobrir o que é verdadeiro — e estar em liberdade é achar-se livre de qualquer influência. Tendes de livrar-vos da influência da nacionalidade, e da influência de vossa igreja, com suas crenças e dogmas; e deveis também libertar-vos da avidez, da inveja, do medo, do sofrimento, da ambição, da competição, da ansiedade. Se não estamos livres de todas essas coisas, as numerosas pressões exteriores e interiores criarão um estado contraditório, neurótico, e, em tais condições, não podemos, em circunstância nenhuma, descobrir o que é verdadeiro ou se existe alguma coisa que transcenda o tempo.
Vemos, pois, o quanto é necessário que a mente se livre de toda influência. Será isso possível? Se não é possível, não pode então haver descobrimento do que é eterno, do Supremo. Para uma pessoa descobrir se isso é possível ou não, terá de conscientizar-se dessas numerosas influências, não só aqui, neste pavilhão, mas também em sua vida de cada dia. Terá de observar como estão elas contaminando, moldando, condicionando a mente. É óbvio que não se pode estar apercebido a todas as horas das inúmeras e diferentes influências que se precipitam na mente; mas pode-se perceber a importância — e este me parece o ponto crucial da questão — de nos livrarmos de todas influências; e, uma vez compreendida essa necessidade, o inconsciente percebe a influência, ainda que a mente consciente possa, muitas vezes, não percebê-la.
Está claro?
O que estou tentando assinalar é o seguinte: Há influências sobremodo sutis a moldar a mente; e a mente que está sendo moldada por influências, as quais se encontram sempre na esfera do tempo, não pode de modo nenhum descobrir o eterno, ou se tal coisa existe. A questão, pois, é esta: se a mente consciente não tem possibilidade de perceber todas as influências, que deverá fazer? Se, seriamente, vos fizerdes esta pergunta, de modo que ela exija vossa total atenção, vereis que a parte inconsciente de vós mesmos, que não se acha inteiramente ocupada quando as camadas superficiais da mente estão funcionando, toma as coisas a seu cuidado, e observa as influências que vão surgindo.
Considero importante compreender isso; porque, se cuidardes meramente de resistir às influências ou delas vos defender, essa resistência, que é uma reação, criará na mente mais um condicionamento. A compreensão do mecanismo total da influência deve ocorrer sem esforço algum, ter o caráter de percepção imediata. O que sucede é isto: se perceberdes realmente a imensa importância de não vos deixardes influenciar, então, uma certa parte de vossa mente se encarregará desse trabalho, sempre que conscientemente estiverdes ocupado com outras coisas — e essa parte é muito vigilante, ativa e desperta. Impede, pois, ver de pronto a enorme importância de não se ser influenciado por nenhuma circunstância ou pessoa. Este é o ponto essencial — e, não, como resistir à influência, ou o que cumpre fazer quando se está sendo influenciado. Uma vez tenhais compreendido esse fato central, vereis que há uma parte da mente que está sempre desperta e vigilante, sempre pronta a eximir-se de qualquer influência, ainda a mais sutil. Desse estado não influenciado provém uma solidão completamente diferente do isolamento. E há necessidade de solidão, porquanto a beleza se encontra fora da esfera do tempo, e só a mente que está só pode saber o que é a beleza.
Para a maioria, a beleza é questão de proporções, forma, tamanho, contorno, cor. Vemos um edifício, uma árvore, uma montanha, um rio, e dizemos que é belo; mas aí está ainda a “entidade exterior”, o experimentador que observa essas coisas e, por conseguinte, o que chamamos “beleza” acha-se ainda na esfera do tempo. Mas, eu sinto que a beleza está fora do tempo e que, para conhecê-la, o experimentador deve deixar de existir. O experimentador não é mais do que uma simples acumulação de experiência, que serve para julgar, avaliar, pensar. Quando a mente contempla um quadro, ou ouve música, ou observa a correnteza de um rio, ela geralmente o faz apoiada naquele fundo de experiência acumulada; olha do passado, da esfera do tempo — e, para mim, isso não é conhecer a beleza. Conhecer a beleza, ou seja descobrir o eterno, só é possível quando se está totalmente só — e isso nada tem que ver com o que dizem os sacerdotes, com o que dizem as religiões organizadas. A pessoa deve estar livre de influência, de contaminação da sociedade, dessa estrutura psicológica de avidez, inveja, ansiedade, medo. Deve estar liberta de tudo isso. Dessa liberdade provém a solidão, e só no estado de solidão pode a mente conhecer o que existe fora da esfera do tempo.
A beleza e aquilo que é eterno não podem ser separados. Podeis pintar, escrever, observar a natureza, mas se há qualquer forma de atividade do “eu” — qualquer atividade egocêntrica do pensamento — então o que percebeis deixa de ser beleza, porque ainda compreendido na esfera do tempo; e, se não compreenderdes a beleza, de modo nenhum descobrireis o que é eterno; porque essas duas coisas estão unidas. Para descobrir o eterno, o imortal, deve a pessoa estar livre do tempo — sendo o tempo tradição, conhecimento acumulado e a experiência do passado. Não é questão de “crer” ou de “não crer” — pois tais coisas são “imaturas”, extremamente infantis, e nenhuma relação têm com o caso. Mas quem tem sério interesse e deseja realmente descobrir, abandonará totalmente a atividade egocêntrica do isolamento e alcançará, dessa maneira, um estado no qual se verá completamente só; e apenas nesse estado de solidão total podemos compreender a beleza, o eterno.
As palavras iludem, porquanto, símbolos que são, não constituem a realidade. Elas encerram um significado, um conceito, porém não são a própria coisa. Assim, quando falo do eterno, deveis averiguar se estais meramente sendo influenciados por minhas palavras ou enredados numa crença — o que seria uma infantilidade.
Pois bem; para se averiguar se existe tal coisa — o eterno — é preciso compreender o que é o tempo. O tempo é algo verdadeiramente extraordinário; mas não me refiro ao tempo cronológico, ao tempo cronométrico, que é tão evidente quanto necessário. Aludo ao tempo como continuidade psicológica. E é possível vivermos sem essa continuidade? O que dá a continuidade é, obviamente, o pensamento. Se penso numa coisa constantemente, ela tem continuidade. Se alguém olha diariamente para o retrato da própria esposa, com isso lhe dá continuidade. Mas, é possível viver-se neste mundo sem se dar continuidade à ação, de modo que a ação seja sempre nova? Isto é, posso morrer para cada ação, em todo o correr do dia, de maneira que a mente jamais acumule e, por conseguinte, nunca se deixe contaminar pelo passado, mantendo-se, assim, perenemente nova, fresca, indene? Eu digo que isto é possível, que podemos viver assim, o que não significa que tal coisa é para vós uma realidade. Vós mesmos é que deveis descobri-lo.
Começamos, dessa forma, a perceber que a mente deve estar completamente só, mas não isolada. Nesse estado de total solitude surge a percepção de uma extraordinária beleza, de algo não criado pela mente. Isso nada tem que ver com o juntar algumas notas musicais, ou espalhar tintas para pintar um quadro; mas, achando-se só, a mente está imersa na beleza e, em consequência, é sobremodo sensível; e, sendo sensível, é inteligente. Sua inteligência não é a inteligência da sagacidade ou do saber, nem tampouco a capacidade de fazer determinada coisa. É inteligente, no sentido de não estar sendo dominada, nem influenciada, de ser sem medo. Mas, para achar-se nesse estado, a mente deve ser capaz de renovar-se todos os dias — e isso significa morrer, cada dia, para o passado, para tudo o que conheceu.
Ora, como disse, a palavra, o símbolo, não é a realidade. A palavra “árvore” não é a árvore, e devemos, pois, estar atentos para não nos deixarmos enredar em palavras. Estando a mente livre da palavra, do símbolo, torna-se bem sensível e apta a investigar e fazer descobrimentos.
Afinal, busca o homem essa coisa há longo tempo, dos tempos mais antigos à atualidade. Deseja encontrar algo que não seja de concepção humana. Embora as religiões organizadas nada signifiquem para o ser inteligente, contudo elas sempre proclamaram existir algo transcendente; e o homem nunca deixou de procurar essa coisa, porque sempre viveu no sofrimento, na aflição, na confusão, no desespero. Vendo-se em incessante estado de transitoriedade, deseja encontrar algo permanente, perdurável, que tenha continuidade, e sua busca, por consequência, sempre esteve confinada na esfera temporal. Mas, como se pode observar, não há nada permanente. Nossas relações, nossos empregos — tudo é transitório. Dado o nosso medo a essa transitoriedade, estamos sempre em busca de algo permanente, que chamamos “o imortal”, “o eterno”, ou como preferirdes. Mas, essa busca do permanente, do imortal, do eterno, é mera reação e, por conseguinte, sem validade. Só quando a mente está livre desse desejo de certeza, pode começar a descobrir se tal coisa existe — o eterno — algo que transcende o espaço, o tempo, o pensador e a coisa em que pensa ou a que busca. O observar e compreender tudo isso requer plena atenção e a flexibilidade da disciplina resultante de tal atenção. Nessa atenção, não há distração, não há tensão, não há movimento em nenhum sentido; porque todo movimento, todo motivo dessa natureza, resulta de influência, quer do passado, quer do presente. Nesse estado de atenção livre de esforço apresenta-se uma extraordinária consciência de liberdade, e só então — achando-se totalmente vazia, quieta, serena — está a mente capacitada a descobrir o eterno.
Talvez desejeis fazer perguntas a respeito do que foi dito nesta manhã.
PERGUNTA: Como pode uma pessoa ficar livre do desejo de certeza?
KRISHNAMURTI: A palavra “como” supõe método, não achais? Se sois arquiteto e eu vos pergunto como se constrói uma casa, podeis dizer-me o que se tem de fazer, porque há um método, um sistema, uma maneira de executar esse trabalho. Mas a observância de um método ou sistema condiciona a mente; vede, pois, o obstáculo que suscita o emprego da palavra “como”.
E, também, precisamos compreender o desejo. Que é desejo? Outro dia estive examinando isso, e espero que aqueles que então estiveram presentes tenham apreendido o significado do que eu disse e não se sintam enfadados com o que agora estou dizendo. Porque, com efeito, a pessoa pode ouvir estas palestras numerosas vezes, é cada vez perceber algo novo.
Que é o desejo? Como disse naquele dia, há o ver ou perceber, depois o contato e ainda a sensação e, por fim, o aparecimento do que chamamos “desejo”. É isto, por certo, o que acontece. Prestai toda a atenção. Vejo, por exemplo, um belo carro. Desse próprio ato de ver, mesmo sem tocar o carro, há sensação, que cria o desejo de conduzi-lo, de possuí-lo. Não nos interessa, aqui, o como resistir ou livrar-se do desejo, porque o homem que resistiu ao desejo e pensa ter ficado livre dele está em verdade paralisado, morto. O importante é compreender todo o mecanismo do desejo, quer dizer, compreender tanto a sua importância como sua total insignificância. Nós temos de saber, não como extinguir o desejo, mas, sim, descobrir aquilo que lhe dá continuidade.
Ora, que é que dá continuidade ao desejo? O pensamento, pois não? Primeiro vê-se o carro, vem depois a sensação, seguida do desejo; e se o pensamento não intervém e não dá prosseguimento ao desejo, dizendo: “Preciso possuir este carro; como poderei adquiri-lo?” — então o desejo termina. Entendeis? Não estou acentuando a necessidade de ficarmos livres do desejo; muito ao contrário! Mas é preciso compreender a natureza do desejo; porque veremos então que não haverá a sequência do desejo, senão outra coisa completamente diferente.
Assim, o importante não é o desejo em si, porém o fato de lhe darmos continuidade. Por exemplo, damos continuidade ao sexo por meio do pensamento, de imagens, de fotografias, da sensação, da lembrança; mantemos viva a memória dessas coisas pensando nelas, e isso faz vibrar a sexualidade e os próprios sentidos. Bem sei que os prazeres sensuais têm real importância, mas nós lhes atribuímos, pelo desejo de repetição, um exagerado valor em nossa vida. Consequentemente, o relevante não é que nos livremos do desejo, porém que lhe compreendamos a estrutura, e como o pensamento lhe dá vitalidade; isso basta. A mente é então livre e ninguém precisa procurar um meio de libertar-se do desejo. No momento em que o procuramos, envolvemo-nos em conflito. Sempre que vedes um carro, uma mulher, uma casa, ou o que quer que vos atraia, o pensamento interfere e desperta o desejo, e tudo se torna um problema interminável.
O essencial é vivermos uma vida sem esforço, sem um só problema; e pode-se viver sem problema algum quando se compreende a natureza do esforço e se percebe claramente a inteira estrutura do desejo. Temos, em geral, inúmeros problemas; e para estarmos isentos de problemas cumpre pôr fim a cada problema tão logo ele surja. Já consideramos suficientemente este assunto, e não pretendo examiná-lo de novo. Todavia, é absolutamente necessário não ter a mente problema algum e, assim, a pessoa viver uma vida sem esforço. Por certo, esta é a única mente religiosa, porquanto terá compreendido o sofrimento e a terminação do sofrimento; ela é sem medo e, por conseguinte, a luz de si própria.
Krishnamurti, Saanen, 2 de agosto de 1964,
A mente sem medo