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sábado, 21 de abril de 2018

A silenciosa mente iluminada

Nesta manhã desejo falar sobre um assunto talvez estranho para os ouvintes. Afigura-se-me uma das coisas mais importantes da vida o clarificar a mente, o esvaziá-la de toda experiência e pensamento, de modo que ela se torne fresca, nova, sã; porque só a mente sã pode, com sua liberdade, descobrir o verdadeiro. Esta sanidade não é um estado permanente. Não significa que a mente alcançou um resultado e aí se deixa ficar. É o estado da mente que, achando-se desimpedida, é capaz de renovar-se a todo instante, sem esforço. E essa renovação, essa liberdade para descobrir, é de imenso significado, já que a maioria das pessoas vive superficialmente; vive com os seus conhecimentos e informações e os julga suficientes. Mas, sem a meditação, nossa vida é bem superficial. Por “meditação” não entendo contemplação ou oração. Para a pessoa achar-se no “estado de meditação”, ou, melhor, para nele entrar naturalmente, sem esforço, deve primeiro compreender a mente superficial, a mente vulgar, aquela que em regra se satisfaz com informações. Tendo acumulado conhecimentos ou adquirido uma certa capacidade técnica, que nos habilita a exercer determinada especialidade, para vivermos neste mundo com leviandade, contentamo-nos em viver nesse nível, sem nenhuma compreensão de qualquer problema psicológico que acaso se apresente. Parece-me, pois, sobremodo relevante observar a superficialidade da mente, e investigar se ela pode transcender a si própria.

Quanto mais conhecimento e preparo uma pessoa tem, tanto maior a sua capacidade na vida diária; e é óbvio que necessitamos desses conhecimento, desse preparo, dessa capacidade, pois não podemos “jogar fora” as máquinas e a ciência e volver ao estado primitivo. Isso seria proceder como algumas pessoas ditas “religiosas” que querem retornar a uma tradição ou ressuscitar antigos conceitos e fórmulas filosóficas, destruindo, dessa maneira, a si próprias e ao mundo em que vivem. A Ciência, a Matemática, as técnicas atualmente à disposição do homem, são coisas absolutamente necessárias. Mas o viver neste mundo tecnológico, de conhecimentos e ilustração que rapidamente se avolumam, tende a tornar-nos superficiais; e, em geral, contentamo-nos em permanecer nesta superficialidade, visto que o conhecimento e a tecnologia nos fazem ganhar mais dinheiro, mais confortos, mais da chamada “liberdade” — coisas essas bem respeitadas numa sociedade degradada e em desintegração. Assim, para poder ultrapassar a si própria, deve a mente compreender as limitações da tecnologia, do conhecimento e da ilustração, e ficar livre dessas limitações.

Como se pode observar, as nossas atividades, as nossas emoções, as nossas reações neurológicas são pouco profundas, superficiais. Vivendo, como vive a maioria, na superfície, procuramos alcançar as profundezas, penetrando cada vez mais, porquanto depressa nos cansamos dessa maneira leviana de viver. Quanto mais inteligentes, mais intelectuais, e apaixonados formos, tanto mais perceberemos a superficialidade de nossa existência; ela se torna cansativa, aborrecida, e sem significação. Assim, trata a mente superficial de descobrir a finalidade da vida ou de procurar uma fórmula que lhe dê sentido. Luta essa mente para viver consoante uma ideia por ela própria concebida, ou uma crença que aceitou; eis porque age sempre de maneira superficial. É necessário perceber com toda a clareza esse fato.

O que nesta manhã vamos fazer é tirar, uma por uma, as camadas superficiais, para penetrarmos até à origem, até à última profundeza das coisas. A superficialidade se perpetua pela experiência, e por esta razão releva compreender o inteiro significado da experiência.

Em primeiro lugar, vemos quanto a especialização tecnológica de toda espécie tende a tornar a mente estreita, vulgar, limitadaqualidades que constituem a verdadeira essência do burguês. Então, superficial que é, ela busca o que chama “significado da vida”, projetando, ao mesmo tempo, um padrão que lhe é grato, lucrativo, aprazível, e a esse padrão se ajusta. Esse mecanismo lhe confere uma certa determinação, certo ímpeto, um senso de realização.

Cumpre também compreender profundamente essa coisa chamada experiência. Vivendo uma vida superficial, estamos sempre em busca de experiências mais amplas e profundas. Por esta razão é que tantos frequentam as igrejas, tomam Mescalina, experimentam LSD, ácido lisérgico e várias outras drogas, em busca de novas excitações, estímulos e sensações. Buscamos também experiência através da arte, da música, de novas, mais modernas formas de expressão.

Pois bem; a mente que deseja achar-se numa grande profundidade — achar-se, e não produzir esse estado — deve compreender todas essas coisas. “Compreender” não é entender apenas intelectualmente uma comunicação verbal, porém, antes, perceber incontinenti a verdade relativa à questão. Essa percepção imediata é compreensão. Pode-se argumentar e discutir interminavelmente a propósito de opiniões, mas isso não fará nascer a compreensão. Requer-se, isto sim, sensibilidade, percebimento, uma certa hesitação, uma atitude experimental, que nos dão a capacidade de aprender com rapidez.

Assim, qual é a natureza da experiência? Todos desejamos novas experiências, não é verdade? Estamos cansados do “velho”, das coisas que nos têm causado dor ou sofrimento. A rotina do escritório, dos rituais religiosos, dos rituais do culto do Estado — de tudo isso estamos fartos, cansados, exaustos, daí desejarmos novas experiências, novas diretrizes e em diferentes planos. Mas, por certo, só a pessoa que não busca nem acumula experiência poderá viver em profundidade.

Resulta a experiência de um desafio e uma “resposta”. A reação pessoal a um desafio pode ser adequada ou inadequada, conforme nossa maneira de ser, nosso condicionamento. Isto é, “respondemos” a cada desafio conforme o nosso fundo, nossa própria limitação. Essa “resposta” a desafio é experiência; e toda experiência deixa um resíduo, que chamamos conhecimento.

Por outras palavras, no passar por várias experiências, a mente atua como uma peneira, na qual cada experiência deixa um certo sedimento. Esse sedimento é memória, e com essa memória vamos ao encontro da próxima experiência. Assim, cada experiência — por mais ampla e profunda e vital que seja — deixa novo depósito de sedimento, ou memória, tornando, assim, mais forte o nosso condicionamento.

Por certo, isto não é uma opinião, não é questão de crerdes no que dizemos. Se vos observardes, vereis ser isso o que realmente sucede. Este orador descreve como é peculiar à mente o acumular experiência, e observais esse “mecanismo” em vós mesmos. Portanto, não há nada para crer, nem estais sendo hipnotizados por palavras.

Assim, pois, cada experiência, de qualquer natureza que seja, deixa um sedimento que se torna o passado, convertido em memó­ria, e nesse sedimento vivemos. Esse sedimento é o “eu”, a verdadeira estrutura da atividade egocêntrica. Percebendo a natureza limitada dessa atividade egocêntrica, buscamos novas e mais amplas experiências, ou perguntamos como se pode romper essa limitação, a fim de encontrar algo superior. Mas, toda busca dessa natureza é ainda atividade de acumulação, e só vai aumentar os restos, o sedimento da experiência, seja a experiência de um minuto, de um dia, seja a de dois milhões de anos.

Ora, vós tendes de ver esse fato com toda a clareza. Deveis ter consciência dele, assim como tendes consciência de estar com fome. Quando sentis fome, ninguém precisa dizer-vos nada — trata-se de uma experiência pessoal, vossa. Analogamente, deveis perceber claramente, por vós mesmos, que toda experiência — de afeto, de compaixão, de orgulho, de ciúme, de inspiração, de medo, qualquer uma — deixa na mente um resíduo; e que a constante repetição e a sobreposição de novas camadas a esse resíduo ou sedimento constituem a totalidade do mecanismo de nosso pensar, de nosso existir. Toda atividade nascida desse mecanismo, em qualquer nível que seja, há de ser inevitavelmente superficial; e a mente que deseja investigar a possibilidade de descobrir um estado de originalidade, ou um mundo não contaminado pelo passado, deve compreender esse processo de experiência.

Surge, assim, a questão: é possível ficar-se livre de toda atividade egocêntrica, sem nenhum esforço, sem se tentar dissolvê-la e, dessa maneira, convertê-la num problema?

Espero estar esclarecendo bem a questão; se não, o que direi mais adiante ficará completamente obscuro.

Agora, a palavra “meditação” significa, em geral, pensar a respeito de uma coisa, investigá-la, refletir profundamente nela; ou pode significar um estado mental contemplativo, independente do mecanismo de pensamento. É uma palavra de pouca significação nesta parte do mundo, porém sobremodo significativa no Oriente. Muito se tem escrito sobre o assunto, e há escolas que advogam diferentes métodos ou sistemas de meditação.

A meditação, para mim, não é nenhuma dessas coisas. Meditação é o total “esvaziamento” da mente — e não se pode esvaziar a mente à força, de acordo com um certo método, escola ou sistema. Mais uma vez é necessário perceber a extrema falácia de todos os sistemas. A prática de um sistema de meditação é busca de experiência; é esforço para alcançar uma experiência mais elevada, ou a experiência final; e quem compreende a natureza da experiência rejeita tudo isso, que se acaba para sempre, porque sua mente já não está seguindo ninguém; ela não busca experiência, e nenhum desejo tem de visões. A busca de visões, o intento de aumentar a sensibilidade por meios artificiais, — drogas, disciplinas, rituais, adoração, oração — constitui atividade egocêntrica.

Nossa questão, pois, é a seguinte: Como pode a mente que se tornou superficial por influência da tradição, pela ação do tempo, da memória, da experiência — como pode essa mente libertar-se, sem esforço, de sua superficialidade? Como pode tornar-se tão desperta que a busca de experiência nada mais signifique? Compreendeis? A mente iluminada não pede mais luz — ela própria é luz; e toda influência, toda experiência que penetra nessa luz, nela se consome de instante a instante, de modo que a mente está sempre clara, imaculada, indene. Só a mente iluminada, a mente sã, pode ver o que está fora dos limites do tempo. E como pode nascer esse estado de espírito?

Tornei clara a questão? Esta não é uma questão minha; é, ou deve ser, uma questão de interesse geral, e, portanto, eu não a estou impondo. Se eu vos impusesse esta questão, vós a tornaríeis um problema, dizendo: “Como fazer isso?” É uma questão que deve nascer de vosso percebimento, porque tendes vivido, tendes observado, e também visto o que é este mundo, e bem conheceis a vossa maneira de agir. Tendes lido, acumulado conhecimentos, progredido em vosso saber. Tendes visto pessoas, com mente semelhante a computadores, professores capazes de “desenrolar” uma espantosa quantidade de conhecimentos, e haveis conhecido teólogos de ideias fixas, em torno das quais desenvolveram maravilhosas teorias. Conscientizando-vos de tudo isso, inevitavelmente deveis ter feito a vós mesmos a pergunta: como pode a mente, prisioneira do tempo, produto do passado, “jogar fora” o passado, completamente, com facilidade, sem nenhum esforço? Como pode ficar livre do tempo, sem ter nenhuma diretiva ou motivo, de modo que possa achar-se na fonte da vida?

Ora, quando esta pergunta vos é feita, por vós mesmo ou por outro, qual a vossa reação? Não me respondais, por favor; escutai, apenas. Trata-se de uma pergunta de grande significado. Não é uma simples pergunta retórica, a que se pode responder prontamente ou pô-la de lado. É uma pergunta de extraordinária importância para a pessoa que penetrou as futilidades da religião organizadas e “varreu” todos os sacerdotes e gurus, templos, igrejas, rituais, incensos — atirou tudo isso aos ventos. E se já atingistes este ponto, a vós mesmos deveis ter interrogado: Como pode a mente ultrapassar a si própria?

Que fazeis quando vos vedes diretamente em presença de um imenso problema, quando algo de tremendo e imediato vos sucede? É tão vital e exigente a experiência, que completamente vos absorve, não é verdade? Vossa mente é tomada por esse singular acontecimento, de modo que se aquieta. Esta é uma qualidade de silêncio A mente “reage” como uma criança a quem se deu um brinquedo interessante. O brinquedo absorve a criança, fazendo-a concentrar-se e, assim, momentaneamente, ela se esquece de suas travessuras o correrias. E o mesmo acontece com os adultos ao verem-se diante de um “caso” incomum, especial. Não compreendendo o verdadeiro significado dessa experiência, a mente fica sob o seu domínio e se torna entorpecida, chocada, paralisada, de modo que transitoriamente silencia. Isso é uma coisa que já deveis ter experimentado.

E há, também, uma espécie de silêncio mental que se apresenta ao considerar-se um problema com inteira concentração. Nesse estado não há distração, porque, momentaneamente, não temos outro pensamento, outro interesse. Não olhamos para nenhum outro lado, porque só estamos interessados nessa coisa; intensifica-se a concentração, que tudo o mais exclui, e nesse esforço há uma vitalidade, uma exigência, uma premência que também produz certa qualidade de silêncio.

Quando a mente se absorve num brinquedo ou imerge de todo num problema, está apenas fugindo. Quando imagens, símbolos palavras como “Deus”, “Salvador”, etc. — dela se apoderam, isso também é uma fuga profunda, uma fuga à realidade, e nessa fuga há um determinado silêncio. Se a mente se sacrifica, ou de si mesma se esquece, pela identificação completa com uma coisa, poderá ficar tranquila — mas acha-se num estado neurótico. O desejo de identificação com um objetivo, uma ideia, um símbolo, uma nação, uma raça — denuncia um estado neurótico, tal como o da maioria das pessoas pretensamente religiosas. Estas estão identificadas com o Salvador, com o Mestre, com isto ou aquilo, identificação que lhe dá invulgar impetuosidade e lhes traz determinada visão beatifica da vida — e isso é uma atitude totalmente neurótica.

E há também aquela que aprendeu a concentrar-se, que a si própria ensinou a nunca desviar a atenção da ideia, da imagem, do símbolo que ela própria “projetou” à sua frente. E que acontece nesse estado de concentração? Toda concentração é esforço, e todo esforço é resistência. É como um homem edificar em torno de si uma muralha defensiva, com uma pequena abertura pela qual olha uma única ideia ou pensamento, de modo que nunca possa ser abalado, posto num estado de incerteza. Nunca estais “aberto”, porém vivendo sempre dentro de vossa concha de concentração, atrás das muralhas de vossa inspirada busca de alguma coisa, e disso vos vem um sentimento de grande vitalidade, uma impetuosidade que vos habilita a fazer coisas extraordinárias — socorrer os “favelados”, viver no deserto, praticar toda a sorte de “boas obras”; mas, trata-se ainda da atividade egocêntrica da mente, que se concentrou numa só coisa, com exclusão de tudo o mais. E também isso lhe confere uma certa serenidade tornando-a silenciosa.

Ora, há uma espécie de silêncio que nenhuma relação tem com esses estados neuróticos, e é aí que se nos apresenta a dificuldade; porque, infelizmente — e digo-o sem ofensa — em regra somos neuróticos. Assim, para podermos compreender o que é esse silêncio, devemos antes de tudo libertar-nos completamente de todo e qualquer estado neurótico. Nesse silêncio não existe autopiedade, nem desejo de resultado, nem “projeção” de imagens; não há visões, nem luta para nos concentrarmos. Vem esse silêncio, sem ser solicitado, uma vez compreendida a absorção da mente numa ideia, e as várias formas de concentração que a pessoa pratica; e, também, quando se compreende todo o mecanismo do pensar. Dessa observação, dessa vigilância da atividade mental egocêntrica, vem um senso de disciplina bem flexível; e essa disciplina é necessária. Não é uma disciplina defensiva, reacionária; nada tem que ver com o ficar sentado a um canto, de pernas cruzadas, e outras infantilidades. Nela, não há imitação, nem ajustamento, nem esforço para alcançar resultado. O observar todos os movimentos do pensamento e do desejo, a fome de novas experiências, o mecanismo de identificação com uma certa coisa — apenas observar e compreender tudo isso produz, naturalmente, uma facilidade de disciplina em inteira liberdade. Disciplinada a compreensão, surge um percebimento próprio e imediato, um estado de atenção completa. Nessa atenção, há virtude — e esta é a única virtude. A moralidade social, o caráter desenvolvido pela resistência e segundo a respeitabilidade e a ética social — isso não é virtude nenhuma. Virtude é a compreensão de toda a estrutura social que o homem levantou em torno de si; e é, também, a compreensão do chamado “auto-sacrifício” mediante identificação e controle. Dessa compreensão nasce a atenção, e só na atenção se encontra a virtude.

Deveis ter uma mente virtuosa; mas aquela que apenas procura ajustar-se aos padrões sociais e religiosos de determinada sociedade, quer comunista, quer capitalista, não é virtuosa. É necessária a virtude porque sem virtude não há liberdade; mas, como a humildade, ela não é cultivável. Não podemos cultivá-la, assim como não podemos cultivar o amor. Mas, havendo plena atenção, há também virtude e amor. Dessa atenção vem o silêncio total, não só no nível da mente consciente, mas também no nível do inconsciente. Tanto o consciente como o inconsciente são em verdade triviais, e a percepção dessa trivialidade liberta-nos do passado e do presente. Dando-se total atenção ao presente, surge-nos interiormente uma certa tranquilidade, indicativa de que já não buscamos experiência. Todo experimentar terminou, porque nada mais há para experimentar. Estando sempre desperta, a mente é a luz de si própria. Nessa quietude, nesse silêncio, encontra-se a paz. Não a paz dos políticos, não a paz entre duas guerras. Paz não nascida de reação. E quando a mente está, assim, sobremodo tranquila, pode então prosseguir. A atuação da tranquilidade difere inteiramente do movimento da atividade egocêntrica. O atuar da tranquilidade é criação. Quando a mente é capaz de mover-se com essa placidez, ela conhece a morte e o amor; e pode, então, viver neste mundo e ao mesmo tempo estar livre do mundo.

PERGUNTA: Desejo ardentemente o silêncio, mas vejo que minhas tentativas para alcançá-lo se tornam cada vez mais lamentáveis.

KRISHNAMURTI: Em primeiro lugar, não podeis desejar ardentemente o silêncio; não sabeis nada, absolutamente nada, a seu respeito. Ainda que algo soubésseis, isso não seria o silêncio, porque, então, não se trataria da realidade. Por isso, é preciso ter muito cuidado ao dizer-se: “Sei”.

Vede, senhor! O que conheceis, reconheceis. Eu vos reconheço porque ontem vos encontrei. Após ouvir o que então dissestes, e tendo visto vosso modo de ser, digo que vos conheço. O que sei já é coisa do passado, e daquele passado eu vos reconheço. Mas o silêncio não pode ser reconhecido; nele não há nenhum mecanismo de reconhecimento. Eis o que, antes de tudo, importa compreender. Para reconhecermos uma coisa, já devemos tê-la experimentado, conhecido antes, ou lido a seu respeito, ou ter-lhe ouvido a descrição, mas o que se pode reconhecer, descrever, não é aquele silêncio.

Por ele ansiamos porque nossa vida é superficial, vazia, monótona, estúpida, e por isso desejamos fugir de suas detestáveis lides. Mas, não podemos fugir da vida; temos de compreendê-la. E para compreendermos uma coisa, não devemos dar-lhe pontapés, nem evitá-la. Cumpre ter grande amor, verdadeira afeição por aquilo que queremos compreender. Se desejamos compreender uma criança, não podemos coagi-la, forçá-la, ou compará-la com seu irmão mais velho. Devemos olhar a criança, observá-la com carinho, ternura, afeição, com tudo o que de bom possuímos. Analogamente, devemos compreender essa coisa vulgar que chamamos “nossa vida”, com seus ciúmes, conflitos, aflições, canseiras, pesares. Dessa compreensão provém uma diferente tranquilidade, que não pode ser procurada às apalpadelas.

Há uma interessante história de um discípulo que foi ter com o Mestre. Encontrava-se este num belo e bem irrigado jardim, e o discípulo sentou-se perto dele — não bem à sua frente, porque sentar-se diretamente à frente do Mestre não seria respeitoso. Assim, sentando-se ao lado, o discípulo cruza as pernas e fecha os olhos. Então, pergunta o Mestre: “Meu amigo, que estais fazendo?” Abrindo os olhos, o discípulo responde: “Mestre, estou tentando alcançar a consciência do Buda” — e torna a fechar os olhos. Daí a momentos, o Mestre apanha duas pedras e começa a esfregar uma na outra, com muito barulho; então o discípulo desce das alturas em que andava e pergunta: “Mestre, que estais fazendo?” Ao que o Mestre responde: “Estou esfregando estas duas pedras, para fazer que uma delas se torne um espelho.” Diz então o discípulo: “Mas, Mestre, isso jamais conseguireis, ainda que fiqueis um milhão de anos a esfregá-las.” Sorri, então, o Mestre e responde: “De modo idêntico, meu amigo, podeis ficar aí sentado um milhão de anos, que nunca alcançareis o que estais tentando alcançar.” — E é isso o que todos nós estamos fazendo. Estamos tomando posições; estamos desejando alguma coisa, buscando algo, às apalpadelas — o que exige esforço, luta, disciplina. Mas sinto dizer-vos que nenhuma dessas coisas vos abrirá a porta. O que o fará é a compreensão sem esforço; apenas olhar, observar, com afeição, com amor. Mas não podeis ter amor se não sois humilde; e só é possível a humildade quando nada desejais, nem dos deuses nem de nenhum ente humano.

Krishnamurti, Saanen, 30 de julho de 1964,
A mente sem medo

quinta-feira, 19 de abril de 2018

É possível o cérebro tornar-se silencioso?

É possível o cérebro tornar-se silencioso?

[...] PERGUNTA: A deterioração mental que se está processando em cada um de nós não resulta de distração?

KRISHNAMURTI: Ora, senhor, por que razão somos distraídos? E porque não devemos ser distraídos? Enquanto vos falo, é distração escutar aquela corrente, escutar os pássaros, ver as folhas reluzindo ao sol? Isso, por certo, só se torna distração, se desejais afastar tudo mais para o lado, a fim de vos concentrardes no que estou dizendo. Distração denota conflito, não achais? Desejais prestar atenção ao que estou dizendo, mas a mente se desvia para o pássaro, o rio, o trem, a folha. Resistis a essas fugas da mente, desejais detê-las, obrigar a mente a voltar e, daí, por conseguinte, resulta distração, conflito. Mas, se, ao contrário, puderdes escutar ao mesmo tempo a corrente e o que se está dizendo, não há distração, não há contradição. Porque estais atento, não estais lutando contra a distração. No momento em que se luta contra a distração, há conflito e, por conseguinte, deterioração.

Assim, para a mente que está atenta não há distração. Experimentai o que estou dizendo. Escutai a corrente, ficai apercebido do pássaro que canta, notai aquela folha — se a estais vendo como eu a vejo, daqui — reluzindo ao sol, vede todas estas pessoas aqui presentes, vestidas de diferentes cores, olhando em direções várias, escutando em diferentes posturas, e não vos irriteis com a importunação destas moscas. Vereis então que não haverá distração alguma, e a mente estará, por conseguinte, sobremaneira vigilante. Mas a mente que está sempre a lutar contra a distração, porque deseja concentrar-se numa dada coisa, acha-se em conflito e, por conseguinte, num estado de deterioração.

PERGUNTA: É possível o cérebro ficar quieto, alguma vez?

KRISHNAMURTI: Este é com efeito um problema tremendo, uma vez que o cérebro é produto do tempo; ele vem à existência pela associação, por meio de reações nervosas, e acumulou durante séculos um cabedal de memória ou conhecimento instintivo, mediante o qual reage. Isto é um fato, e não uma explicação pessoal de cunho especulativo. O cérebro humano desenvolveu-se, do macaco ao homem primitivo e deste ao homem civilizado. Aprendeu, acumulou vastíssima experiência. Sabe quando há perigo, busca o prazer e procura evitar a dor. Tem inumeráveis desejos, ambições, impulsos, exigências, todos a solicitá-lo em diferentes direções.

Ora bem, em vista de tudo isso, a questão é se é possível ao cérebro — que acumulou tão extraordinária soma de experiência, na forma de memória, e que, neurologicamente é sensível, está sempre à escuta, observando, sentindo, interpretando — se é possível ao cérebro, em tais condições, ficar completamente quieto. Pode ele manter-se ativo, sensível, e ao mesmo tempo completamente tranquilo? Digo que pode, não teoricamente, porém de fato; e é só então que a mente, o cérebro, é capaz de meditação. O ato da meditação é uma coisa maravilhosa — mas não tratarei disto nesta manhã.

O interrogante, pois, deseja saber se é possível ao cérebro tornar-se quieto — esse cérebro tão altamente desenvolvido, com seu enorme cabedal de memória, mediante o qual está constantemente reagindo. Sendo produto de associação, experiência, de memória, resultado do tempo, pode, em algum tempo, o cérebro ficar quieto? A maioria das pessoas se acha em conflito, dividida por inumeráveis desejos: desejo de preencher-se, pintando, escrevendo, fazendo isto ou aquilo. Desejam tornar-se conhecidas, tornar-se alguém, neste mundo monstruoso e estúpido. E, nessas condições, pode o cérebro — que tanto é o consciente como o inconsciente — ficar totalmente silencioso? Se pode, de que maneira poderá saltar de um estado para o outro? Iremos examinando esse problema enquanto formos prosseguindo.

Krishnamurti, Saanen, 7 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho

terça-feira, 10 de abril de 2018

Como fazer nascer a mente nova, criadora?


Como fazer nascer a mente nova, criadora?

A maioria de nós parece considerar a ação individual como coisa sem importância, quando há tanta necessidade de ação coletiva. Supomos que a ação individual está geralmente em oposição à ação coletiva. Consideramos a ação coletiva bem mais importante e de maior significação para a sociedade do que a ação individual. Para nós, a ação individual a nenhuma parte conduz, não sendo suficientemente expressiva ou bastante criadora para produzir uma positiva alteração da ordem vigente, uma revolução real na sociedade. Desse modo, cremos ser a ação coletiva muito mais relevante, mais urgente do que a individual. Do ponto de vista técnico, mecânico, principalmente, num mundo em que prevalece cada vez mais a mentalidade técnica, mecânica, a ação individual tem pouca razão de ser; e, assim, gradualmente, decresce o valor do indivíduo e o “coletivo” se toma sobremodo importante.

Pode-se observar esse fato hoje em dia, quando a mente humana está sendo controlada, “coletivizada” — se assim me posso expressar — e mais do que nunca forçada a ajustar-se. A mente já não é livre. Está sendo moldada pela política, pela educação, pela crença organizada, pelos dogmas religiosos. Em todas as partes do mundo a liberdade e o indivíduo se estão tornando cada vez menos significativos. Já deveis ter observado — não só em vossas vidas, mas também geralmente — que a liberdade feneceu, liberdade para pensar com independência, liberdade para descobrir, duvidar, investigar.

Os guias se estão tornando cada vez mais importantes, porque queremos ser ensinados, queremos ser dirigidos e, infelizmente, quando isso ocorre, é inevitável a corrupção, a deterioração da mente — não da mente técnica, da capacidade de construir pontes, reatores atômicos, etc.; porém deterioração da mente criadora. Estou empregando a palavra “criadora” num sentido completamente diferente do usual. Não digo “criadora”, com a significação de escrever poemas, construir pontes, talhar no mármore ou numa pedra uma certa visão que se está captando — pois tudo isso são meras expressões do pensamento ou sentimento pessoal. Falamos de “mente criadora” num sentido todo diferente; referimo-nos à mente que é livre e, por isso, capaz de criar. A mente não sujeita aos dogmas, às crenças; a mente que não se refugiou dentro dos limites da experiência; a que rompeu todas as barreiras da tradição, da autoridade, da ambição, que já não está presa na rede da inveja — eis a mente criadora. Num mundo sobre o qual paira a ameaça de guerra, onde se observa geral deterioração — não tecnologicamente, mas a todos os outros respeitos — nesse mundo, parece-me, há necessidade dessa mente criadora.

É absolutamente necessário e urgente alterar de todo o curso do pensamento humano, da existência humana, que se está tornando cada vez mais mecanizada. E não vejo como operar essa completa revolução a não ser individualmente. O “coletivo” não pode ser revolucionário; o “coletivo” só é capaz de seguir, ajustar-se, imitar, submeter-se. Mas só o indivíduo — vós — pode romper as muralhas, destroçar todos esses condicionamentos, e se tornar, assim, criador. É a crise na consciência que exige essa mente nova. Mas, aparentemente, conforme se observa, ninguém pensa nisso; o que sempre se pensa é que, com mais melhoramentos — no campo técnico ou mecânico — se criará, como que miraculosamente, a mente criadora, a mente sem medo.

Assim, nestas palestras não nos iremos ocupar da melhoria dos processos técnicos, necessários no mundo da ação mecânica, coletiva, porém, tão só, de como fazer nascer aquela mente criadora, aquela mente nova. Porque, neste país, estamos assistindo a um declínio geral, à exceção, talvez, no setor industrial — possibilidades de ganhar mais dinheiro, construção de ferrovias, dragagem de rios e canais, usinas siderúrgicas, produção de mais mercadorias, tudo isso, naturalmente, necessário. Mas nada disso pode criar uma nova civilização. Trará progresso; mas o progresso, conforme se observa, não dá liberdade ao homem. Coisas e mercadorias são necessárias; mais casas, mais roupas, tudo isso é indispensável; mas há outra coisa que é igualmente necessária: o ato de “negar”.

Dizer “Não” é muito mais importante do que dizer “Sim”. Todos dizemos “Sim”; nunca dizemos “Não” e nos mantemos firmes no “Não”. É muito difícil negar, e muito fácil submeter-se; e a maioria de nós se submete, porque nada mais fácil do que resvalar para o conformismo, impelido pelo medo, pelo desejo de segurança e ser levado, assim, à gradual estagnação e desintegração. Mas o dizer “Não” exige a mais alta forma de pensar, porquanto dizer “Não” implica pensamento negativo — isto é, ver o que é falso. O próprio percebimento do falso, a clareza com que o percebemos, é ação criadora. O negar uma coisa, o pô-la em dúvida — por mais sagrada, por mais poderosa que seja essa coisa, ou por mais firmemente estabelecida — exige profunda penetração, exige a total demolição de nossas próprias ideias e tradições. E um indivíduo assim é absolutamente necessário no mundo moderno, onde a propaganda, onde a religião organizada, onde o embuste estão assumindo o controle de tudo. Não sei se vós também percebeis a importância disso — não verbalmente, não teoricamente, porém de fato.

Como sabeis, há uma maneira de olhar as coisas. Ou olhamos diretamente, “experimentando” a coisa que vemos, ou consideramo-la verbalmente, intelectualmente, tecendo teorias em torno do que é e procurando explicações para o que é. Mas o perceber diretamente (sem se procurarem explicações, sem se emitirem juízos — assuntos de que mais adiante tratarei), o perceber diretamente uma coisa como falsa requer atenção, requer toda a vossa capacidade. Mas, ao que parece, principalmente neste desafortunado país, onde a tradição, a autoridade, a chamada “sabedoria antiga”, imperam e dominam, há completa falta daquela enérgica qualidade, necessária para se ver o que é falso e rejeitá-lo resolutamente. Mas o investigar o que é falso requer mente livre. Não podeis investigá-lo se estais ligado a uma dada forma de crença, uma dada forma de experiência, uma certa norma de ação. Se estais ligado a um certo padrão de governo, não podeis nem ousais controlar nada, para não perderdes vosso emprego, vossa posição, vossa influência, as coisas que tendes medo de perder. E, também, quando estais ligado a uma certa forma de religião, quando sois hinduísta, budista, etc., não ousais contestar, não ousais romper as muralhas, destruir tudo, a fim de descobrir. Mas, infelizmente, em geral estamos bem comprometidos, política, econômica, social ou religiosamente; e, por causa desse “compromisso”, nunca pomos em dúvida o próprio centro, a própria coisa com que estamos comprometidos. Por conseguinte, estamos sempre a buscar a liberdade nas ideias, nos livros, em palavras e mais palavras.

Assim sendo, eu desejaria sugerir que, enquanto estiverdes a escutar, não vos limiteis a ouvir palavras, que são apenas um meio de comunicação, um símbolo que precisa ser interpretado por cada um; mas também que, por meio das palavras, procureis descobrir o estado de vossa própria mente, descobrir as coisas com que estais “comprometido”, descobrir, por vós mesmos, as coisas que vos atam de pés e mãos, de mente e de coração. Deveis descobrir realmente tudo isso e ver se há possibilidade de deitar abaixo as coisas a que estais ligados, a fim de descobrirdes o que é verdadeiro. Pois não vejo de que outra maneira realizar a regeneração do mundo. Haverá comoções sociais — comunistas ou de outra natureza — haverá mais prosperidade, mais alimentos, mais fábricas, mais fertilizantes, mais motores, etc., mas isso, por certo, não constitui a totalidade da vida, porém tão só uma parte dela. E, se veneramos o fragmento, se nele ficamos “vivendo”, não resolveremos os problemas humanos. Continuarão existentes a morte, o sofrimento, a ansiedade, a culpa, as torturas de numerosas ideias, esperanças, desesperos — tudo isso continuará.

Assim, ao escutardes, desejo sugerir-vos que o façais com uma mente mais interessada em examinar a si própria — os seus próprios “mecanismo” — do que em ouvir palavras, para concordar ou discordar — pois isso pouco importa. Porque só os fatos nos devem interessar: o fato de que os entes humanos se estão tornando cada vez mais mecanizados; o fato de que há cada vez menos liberdade; o fato de que, sempre que nos vemos em confusão, apelamos para a autoridade; e o fato de que há conflito, externamente, na forma de guerra, e internamente, na forma de sofrimento, desespero, medo. Tudo isso são fatos, e temos de dar-lhes atenção, não teórica, porém realmente. Dessa forma, o que nos interessa é como operar uma transformação, uma revolução radical no indivíduo, no ouvinte, pois só ele é capaz de criar, e não o político, o líder, o homem importante; estes estão “comprometidos” e estabilizados numa rotina; e necessitam de fama, necessitam de poder, posição. Vós também, porventura, desejais essas mesmas coisas, mas ainda estais tateando o caminho para alcançá-las; por conseguinte, ainda vos resta alguma esperança, já que ainda não estais comprometidos, como os homens importantes da Terra. Ainda sois gente insignificante, ainda não sois líderes, não controlais formidáveis organizações; ainda sois simples homens comuns. Assim, achando-vos mais ou menos livres de compromissos, ainda há para vós um pouco de esperança.

Por conseguinte, talvez ainda seja possível, mesmo na undécima hora, operar a transformação em vós mesmos. Só uma coisa nos interessa aqui; como realizar essa extraordinária revolução em nós mesmos.

Em geral, só nos modificamos sob compulsão, atuados por alguma influência externa, pelo medo, pela ameaça de punição ou promessa de recompensa — só isso nos faz mudar. Nunca mudamos voluntariamente; só o fazemos quando há um motivo. Mas toda mudança impulsionada por motivo não é mudança nenhuma. E estar apercebido dos motivos, das influências, das compulsões que nos forçam a mudar — estar apercebido de tudo isso e rejeitá-lo é operar transformação. As circunstâncias nos fazem mudar; a família, a lei, nossas ambições, nossos temores produzem mudanças. Mas uma mudança dessas é apenas reação e, consequentemente, resistência psicológica à compulsão; e essa resistência cria a respectiva modificação, alteração e, deste modo, não é efetiva transformação. Se eu mudo, ou me ajusto à sociedade porque dela espero alguma coisa, isso é transformação? Ou a transformação só é possível quando percebo as coisas que me estão impelindo a mudar e percebo a sua falsidade? Porque todas as influências, boas ou más, condicionam a mente; e a mera aceitação desse condicionamento cria uma resistência interior a qualquer espécie de mudança, de transformação radical.

Sendo assim, considerando-se a situação mundial — não apenas a deste país, mas a do mundo inteiro — onde o progresso constitui uma negação da liberdade; onde a prosperidade está tornando a mente cada vez mais dependente das coisas para a própria segurança — havendo, por isso, cada vez menos liberdade; onde as organizações religiosas se estão arrogando cada vez mais a fórmula de crença que impelirá o homem a crer ou a não crer em Deus; considerando-se, ainda, que a mente se está tornando cada vez mais mecanizada e, também, que os cérebros eletrônicos e os modernos conhecimentos técnicos estão proporcionando ao homem mais lazeres, considerando-se tudo isso, cabe-nos descobrir o que é liberdade, o que é realidade.

Estas perguntas não podem ser respondidas pela mente mecanizada. Temos de fazê-las a nós mesmos — fundamental, profunda, interiormente — e também por nós achar as respostas, se existem; e isso, com efeito, significa contestar toda e qualquer autoridade. Esta, aparentemente, é uma das coisas mais difíceis. Jamais consideramos a sociedade como nossa inimiga. Consideramo-la como o meio em que temos de viver, a que devemos submeter-nos e ajustar-nos; não a consideramos nunca como o real inimigo do homem, o inimigo da liberdade, o inimigo da virtude. Refleti sobre isso, olhai-o. O ambiente, que é a sociedade, está destruindo a liberdade. Ele não precisa de homens livres: quer santos, reformadores, para modificarem, ampararem, manterem de pé as instituições sociais. Mas religião é coisa de todo diferente, O homem religioso é o inimigo da sociedade. Não é religioso aquele que frequenta a igreja ou o templo, que lê o Gita, que pratica puja diariamente; este não é religioso. Verdadeiramente religioso é quem se libertou de toda ambição, inveja, avidez, temor, a fim de investigar, de descobrir o que existe além das coisas que o homem criou e a que chama “religião”. Mas tudo isso requer exame individual, investigação própria; sem essa base, não é possível ir muito longe.

Como vemos, faz-se mister uma revolução completa — não simples modificação, porém inteira transformação da mente. Como produzi-la? Eis o problema. Percebemos que ela é necessária. Todo homem que refletiu nisso, que observou as condições mundiais, que é sensível ao que se está passando dentro e fora de si próprio, há de exigir essa mutação. Mas, como operá-la?

Ora, antes de mais nada, existe algum “como” — sendo “como” o método, o sistema, a maneira, a prática? Se há uma maneira, se existe um método, se existe um sistema, e vós o praticais com o fim de promover a mutação, vossa mente se torna mera escrava desse sistema, é moldada por ele, pelo método, pela prática e, por conseguinte, nunca poderá ser livre. É o mesmo que uma pessoa se disciplinar para ser livre. Liberdade e disciplina nunca andam juntas — e isso não significa que devais tornar-vos indisciplinados. A busca da liberdade traz sua disciplina própria. Mas a mente que se disciplinou num sistema, numa fórmula, numa crença, em ideias, essa mente nunca poderá ser livre. Devemos, pois, ver, desde o começo, que o “como” — que supõe prática, disciplina, observância de uma fórmula — impede a realização da mudança. Essa é a primeira coisa que se deve perceber; porque a prática, o sistema, se torna a autoridade que nega a liberdade e, portanto, a transformação. Impende perceber realmente esse fato, perceber sua verdade. Dizendo “perceber” não quero significar “perceber intelectualmente, verbalmente” mas, sim, “estar emocionalmente em contato com o fato”. Ficamos em contato emocional com o fato ao vermos uma serpente; não há, então, dúvida nenhuma: trata-se de um desafio direto e de uma direta reação. Do mesmo modo, devemos ver que todo sistema, ainda o melhor concebido, e por quem quer que seja, atua profundamente, destruindo a liberdade, pervertendo a criação — “pervertendo” não, pondo fim à criação — porque todo sistema supõe ganho, realização, chegada, recompensa, e, por conseguinte, é a verdadeira negação da liberdade. Eis a razão por que estais disposto a seguir uma certa pessoa: desejais um meio de conseguir um certo ganho, e esse meio é sempre alguma espécie de disciplina.

Mas é preciso perceber o fato de que a mente deve ser inteiramente livre (se isso é possível ou não, é outra questão), o fato de que a liberdade é necessária, porque, sem ela, vos tornais meros autômatos, semelhantes a qualquer máquina. Devemos perceber com toda a clareza que a liberdade é essencial. E só quando há liberdade pode-se descobrir se há, ou não há, Deus ou algo imenso, além das dimensões do homem. Começareis, então, a contestar todos os sistemas, todas as autoridades, todas as estruturas da sociedade. E a presente crise exige essa mente. Só ela, por certo, pode descobrir o verdadeiro. Apenas essa mente pode descobrir se algo existe ou não, que transcende o tempo, que transcende as coisas criadas com o pensar humano.

Tudo isso exige intensa energia, e a essência da energia está na negação do conflito. A mente envolvida em conflito não tem energia — quer se trate de conflito interior, quer de conflito exterior, com o mundo. Tudo isso exige ampla investigação e compreensão. Espero possamos fazê-lo nas seis reuniões vindouras — isto é, ficarmos apercebidos do fato e observarmos o fato do princípio ao fim, para vermos se a mente — nossa mente, vossa mente — pode realmente ser livre.

Krishnamurti, Varanasi, 01 de janeiro de 1961, A mutação Interior


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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill