Como fazer nascer a mente nova, criadora?
A maioria de nós parece considerar a ação individual como coisa sem importância, quando há tanta necessidade de ação coletiva. Supomos que a ação individual está geralmente em oposição à ação coletiva. Consideramos a ação coletiva bem mais importante e de maior significação para a sociedade do que a ação individual. Para nós, a ação individual a nenhuma parte conduz, não sendo suficientemente expressiva ou bastante criadora para produzir uma positiva alteração da ordem vigente, uma revolução real na sociedade. Desse modo, cremos ser a ação coletiva muito mais relevante, mais urgente do que a individual. Do ponto de vista técnico, mecânico, principalmente, num mundo em que prevalece cada vez mais a mentalidade técnica, mecânica, a ação individual tem pouca razão de ser; e, assim, gradualmente, decresce o valor do indivíduo e o “coletivo” se toma sobremodo importante.
Pode-se observar esse fato hoje em dia, quando a mente humana está sendo controlada, “coletivizada” — se assim me posso expressar — e mais do que nunca forçada a ajustar-se. A mente já não é livre. Está sendo moldada pela política, pela educação, pela crença organizada, pelos dogmas religiosos. Em todas as partes do mundo a liberdade e o indivíduo se estão tornando cada vez menos significativos. Já deveis ter observado — não só em vossas vidas, mas também geralmente — que a liberdade feneceu, liberdade para pensar com independência, liberdade para descobrir, duvidar, investigar.
Os guias se estão tornando cada vez mais importantes, porque queremos ser ensinados, queremos ser dirigidos e, infelizmente, quando isso ocorre, é inevitável a corrupção, a deterioração da mente — não da mente técnica, da capacidade de construir pontes, reatores atômicos, etc.; porém deterioração da mente criadora. Estou empregando a palavra “criadora” num sentido completamente diferente do usual. Não digo “criadora”, com a significação de escrever poemas, construir pontes, talhar no mármore ou numa pedra uma certa visão que se está captando — pois tudo isso são meras expressões do pensamento ou sentimento pessoal. Falamos de “mente criadora” num sentido todo diferente; referimo-nos à mente que é livre e, por isso, capaz de criar. A mente não sujeita aos dogmas, às crenças; a mente que não se refugiou dentro dos limites da experiência; a que rompeu todas as barreiras da tradição, da autoridade, da ambição, que já não está presa na rede da inveja — eis a mente criadora. Num mundo sobre o qual paira a ameaça de guerra, onde se observa geral deterioração — não tecnologicamente, mas a todos os outros respeitos — nesse mundo, parece-me, há necessidade dessa mente criadora.
É absolutamente necessário e urgente alterar de todo o curso do pensamento humano, da existência humana, que se está tornando cada vez mais mecanizada. E não vejo como operar essa completa revolução a não ser individualmente. O “coletivo” não pode ser revolucionário; o “coletivo” só é capaz de seguir, ajustar-se, imitar, submeter-se. Mas só o indivíduo — vós — pode romper as muralhas, destroçar todos esses condicionamentos, e se tornar, assim, criador. É a crise na consciência que exige essa mente nova. Mas, aparentemente, conforme se observa, ninguém pensa nisso; o que sempre se pensa é que, com mais melhoramentos — no campo técnico ou mecânico — se criará, como que miraculosamente, a mente criadora, a mente sem medo.
Assim, nestas palestras não nos iremos ocupar da melhoria dos processos técnicos, necessários no mundo da ação mecânica, coletiva, porém, tão só, de como fazer nascer aquela mente criadora, aquela mente nova. Porque, neste país, estamos assistindo a um declínio geral, à exceção, talvez, no setor industrial — possibilidades de ganhar mais dinheiro, construção de ferrovias, dragagem de rios e canais, usinas siderúrgicas, produção de mais mercadorias, tudo isso, naturalmente, necessário. Mas nada disso pode criar uma nova civilização. Trará progresso; mas o progresso, conforme se observa, não dá liberdade ao homem. Coisas e mercadorias são necessárias; mais casas, mais roupas, tudo isso é indispensável; mas há outra coisa que é igualmente necessária: o ato de “negar”.
Dizer “Não” é muito mais importante do que dizer “Sim”. Todos dizemos “Sim”; nunca dizemos “Não” e nos mantemos firmes no “Não”. É muito difícil negar, e muito fácil submeter-se; e a maioria de nós se submete, porque nada mais fácil do que resvalar para o conformismo, impelido pelo medo, pelo desejo de segurança e ser levado, assim, à gradual estagnação e desintegração. Mas o dizer “Não” exige a mais alta forma de pensar, porquanto dizer “Não” implica pensamento negativo — isto é, ver o que é falso. O próprio percebimento do falso, a clareza com que o percebemos, é ação criadora. O negar uma coisa, o pô-la em dúvida — por mais sagrada, por mais poderosa que seja essa coisa, ou por mais firmemente estabelecida — exige profunda penetração, exige a total demolição de nossas próprias ideias e tradições. E um indivíduo assim é absolutamente necessário no mundo moderno, onde a propaganda, onde a religião organizada, onde o embuste estão assumindo o controle de tudo. Não sei se vós também percebeis a importância disso — não verbalmente, não teoricamente, porém de fato.
Como sabeis, há uma maneira de olhar as coisas. Ou olhamos diretamente, “experimentando” a coisa que vemos, ou consideramo-la verbalmente, intelectualmente, tecendo teorias em torno do que é e procurando explicações para o que é. Mas o perceber diretamente (sem se procurarem explicações, sem se emitirem juízos — assuntos de que mais adiante tratarei), o perceber diretamente uma coisa como falsa requer atenção, requer toda a vossa capacidade. Mas, ao que parece, principalmente neste desafortunado país, onde a tradição, a autoridade, a chamada “sabedoria antiga”, imperam e dominam, há completa falta daquela enérgica qualidade, necessária para se ver o que é falso e rejeitá-lo resolutamente. Mas o investigar o que é falso requer mente livre. Não podeis investigá-lo se estais ligado a uma dada forma de crença, uma dada forma de experiência, uma certa norma de ação. Se estais ligado a um certo padrão de governo, não podeis nem ousais controlar nada, para não perderdes vosso emprego, vossa posição, vossa influência, as coisas que tendes medo de perder. E, também, quando estais ligado a uma certa forma de religião, quando sois hinduísta, budista, etc., não ousais contestar, não ousais romper as muralhas, destruir tudo, a fim de descobrir. Mas, infelizmente, em geral estamos bem comprometidos, política, econômica, social ou religiosamente; e, por causa desse “compromisso”, nunca pomos em dúvida o próprio centro, a própria coisa com que estamos comprometidos. Por conseguinte, estamos sempre a buscar a liberdade nas ideias, nos livros, em palavras e mais palavras.
Assim sendo, eu desejaria sugerir que, enquanto estiverdes a escutar, não vos limiteis a ouvir palavras, que são apenas um meio de comunicação, um símbolo que precisa ser interpretado por cada um; mas também que, por meio das palavras, procureis descobrir o estado de vossa própria mente, descobrir as coisas com que estais “comprometido”, descobrir, por vós mesmos, as coisas que vos atam de pés e mãos, de mente e de coração. Deveis descobrir realmente tudo isso e ver se há possibilidade de deitar abaixo as coisas a que estais ligados, a fim de descobrirdes o que é verdadeiro. Pois não vejo de que outra maneira realizar a regeneração do mundo. Haverá comoções sociais — comunistas ou de outra natureza — haverá mais prosperidade, mais alimentos, mais fábricas, mais fertilizantes, mais motores, etc., mas isso, por certo, não constitui a totalidade da vida, porém tão só uma parte dela. E, se veneramos o fragmento, se nele ficamos “vivendo”, não resolveremos os problemas humanos. Continuarão existentes a morte, o sofrimento, a ansiedade, a culpa, as torturas de numerosas ideias, esperanças, desesperos — tudo isso continuará.
Assim, ao escutardes, desejo sugerir-vos que o façais com uma mente mais interessada em examinar a si própria — os seus próprios “mecanismo” — do que em ouvir palavras, para concordar ou discordar — pois isso pouco importa. Porque só os fatos nos devem interessar: o fato de que os entes humanos se estão tornando cada vez mais mecanizados; o fato de que há cada vez menos liberdade; o fato de que, sempre que nos vemos em confusão, apelamos para a autoridade; e o fato de que há conflito, externamente, na forma de guerra, e internamente, na forma de sofrimento, desespero, medo. Tudo isso são fatos, e temos de dar-lhes atenção, não teórica, porém realmente. Dessa forma, o que nos interessa é como operar uma transformação, uma revolução radical no indivíduo, no ouvinte, pois só ele é capaz de criar, e não o político, o líder, o homem importante; estes estão “comprometidos” e estabilizados numa rotina; e necessitam de fama, necessitam de poder, posição. Vós também, porventura, desejais essas mesmas coisas, mas ainda estais tateando o caminho para alcançá-las; por conseguinte, ainda vos resta alguma esperança, já que ainda não estais comprometidos, como os homens importantes da Terra. Ainda sois gente insignificante, ainda não sois líderes, não controlais formidáveis organizações; ainda sois simples homens comuns. Assim, achando-vos mais ou menos livres de compromissos, ainda há para vós um pouco de esperança.
Por conseguinte, talvez ainda seja possível, mesmo na undécima hora, operar a transformação em vós mesmos. Só uma coisa nos interessa aqui; como realizar essa extraordinária revolução em nós mesmos.
Em geral, só nos modificamos sob compulsão, atuados por alguma influência externa, pelo medo, pela ameaça de punição ou promessa de recompensa — só isso nos faz mudar. Nunca mudamos voluntariamente; só o fazemos quando há um motivo. Mas toda mudança impulsionada por motivo não é mudança nenhuma. E estar apercebido dos motivos, das influências, das compulsões que nos forçam a mudar — estar apercebido de tudo isso e rejeitá-lo é operar transformação. As circunstâncias nos fazem mudar; a família, a lei, nossas ambições, nossos temores produzem mudanças. Mas uma mudança dessas é apenas reação e, consequentemente, resistência psicológica à compulsão; e essa resistência cria a respectiva modificação, alteração e, deste modo, não é efetiva transformação. Se eu mudo, ou me ajusto à sociedade porque dela espero alguma coisa, isso é transformação? Ou a transformação só é possível quando percebo as coisas que me estão impelindo a mudar e percebo a sua falsidade? Porque todas as influências, boas ou más, condicionam a mente; e a mera aceitação desse condicionamento cria uma resistência interior a qualquer espécie de mudança, de transformação radical.
Sendo assim, considerando-se a situação mundial — não apenas a deste país, mas a do mundo inteiro — onde o progresso constitui uma negação da liberdade; onde a prosperidade está tornando a mente cada vez mais dependente das coisas para a própria segurança — havendo, por isso, cada vez menos liberdade; onde as organizações religiosas se estão arrogando cada vez mais a fórmula de crença que impelirá o homem a crer ou a não crer em Deus; considerando-se, ainda, que a mente se está tornando cada vez mais mecanizada e, também, que os cérebros eletrônicos e os modernos conhecimentos técnicos estão proporcionando ao homem mais lazeres, considerando-se tudo isso, cabe-nos descobrir o que é liberdade, o que é realidade.
Estas perguntas não podem ser respondidas pela mente mecanizada. Temos de fazê-las a nós mesmos — fundamental, profunda, interiormente — e também por nós achar as respostas, se existem; e isso, com efeito, significa contestar toda e qualquer autoridade. Esta, aparentemente, é uma das coisas mais difíceis. Jamais consideramos a sociedade como nossa inimiga. Consideramo-la como o meio em que temos de viver, a que devemos submeter-nos e ajustar-nos; não a consideramos nunca como o real inimigo do homem, o inimigo da liberdade, o inimigo da virtude. Refleti sobre isso, olhai-o. O ambiente, que é a sociedade, está destruindo a liberdade. Ele não precisa de homens livres: quer santos, reformadores, para modificarem, ampararem, manterem de pé as instituições sociais. Mas religião é coisa de todo diferente, O homem religioso é o inimigo da sociedade. Não é religioso aquele que frequenta a igreja ou o templo, que lê o Gita, que pratica puja diariamente; este não é religioso. Verdadeiramente religioso é quem se libertou de toda ambição, inveja, avidez, temor, a fim de investigar, de descobrir o que existe além das coisas que o homem criou e a que chama “religião”. Mas tudo isso requer exame individual, investigação própria; sem essa base, não é possível ir muito longe.
Como vemos, faz-se mister uma revolução completa — não simples modificação, porém inteira transformação da mente. Como produzi-la? Eis o problema. Percebemos que ela é necessária. Todo homem que refletiu nisso, que observou as condições mundiais, que é sensível ao que se está passando dentro e fora de si próprio, há de exigir essa mutação. Mas, como operá-la?
Ora, antes de mais nada, existe algum “como” — sendo “como” o método, o sistema, a maneira, a prática? Se há uma maneira, se existe um método, se existe um sistema, e vós o praticais com o fim de promover a mutação, vossa mente se torna mera escrava desse sistema, é moldada por ele, pelo método, pela prática e, por conseguinte, nunca poderá ser livre. É o mesmo que uma pessoa se disciplinar para ser livre. Liberdade e disciplina nunca andam juntas — e isso não significa que devais tornar-vos indisciplinados. A busca da liberdade traz sua disciplina própria. Mas a mente que se disciplinou num sistema, numa fórmula, numa crença, em ideias, essa mente nunca poderá ser livre. Devemos, pois, ver, desde o começo, que o “como” — que supõe prática, disciplina, observância de uma fórmula — impede a realização da mudança. Essa é a primeira coisa que se deve perceber; porque a prática, o sistema, se torna a autoridade que nega a liberdade e, portanto, a transformação. Impende perceber realmente esse fato, perceber sua verdade. Dizendo “perceber” não quero significar “perceber intelectualmente, verbalmente” mas, sim, “estar emocionalmente em contato com o fato”. Ficamos em contato emocional com o fato ao vermos uma serpente; não há, então, dúvida nenhuma: trata-se de um desafio direto e de uma direta reação. Do mesmo modo, devemos ver que todo sistema, ainda o melhor concebido, e por quem quer que seja, atua profundamente, destruindo a liberdade, pervertendo a criação — “pervertendo” não, pondo fim à criação — porque todo sistema supõe ganho, realização, chegada, recompensa, e, por conseguinte, é a verdadeira negação da liberdade. Eis a razão por que estais disposto a seguir uma certa pessoa: desejais um meio de conseguir um certo ganho, e esse meio é sempre alguma espécie de disciplina.
Mas é preciso perceber o fato de que a mente deve ser inteiramente livre (se isso é possível ou não, é outra questão), o fato de que a liberdade é necessária, porque, sem ela, vos tornais meros autômatos, semelhantes a qualquer máquina. Devemos perceber com toda a clareza que a liberdade é essencial. E só quando há liberdade pode-se descobrir se há, ou não há, Deus ou algo imenso, além das dimensões do homem. Começareis, então, a contestar todos os sistemas, todas as autoridades, todas as estruturas da sociedade. E a presente crise exige essa mente. Só ela, por certo, pode descobrir o verdadeiro. Apenas essa mente pode descobrir se algo existe ou não, que transcende o tempo, que transcende as coisas criadas com o pensar humano.
Tudo isso exige intensa energia, e a essência da energia está na negação do conflito. A mente envolvida em conflito não tem energia — quer se trate de conflito interior, quer de conflito exterior, com o mundo. Tudo isso exige ampla investigação e compreensão. Espero possamos fazê-lo nas seis reuniões vindouras — isto é, ficarmos apercebidos do fato e observarmos o fato do princípio ao fim, para vermos se a mente — nossa mente, vossa mente — pode realmente ser livre.
Krishnamurti, Varanasi, 01 de janeiro de 1961, A mutação Interior