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sábado, 21 de abril de 2018

Compreendendo o mecanismo da ação

Compreendendo o mecanismo da ação

Desejo prosseguir do ponto em que ficamos outro dia. Considero importante compreender a questão da ação; e não estou empregando essa palavra em sentido abstrato, ou meramente ideativo. Refiro-me ao fato concreto da ação, do “fazer alguma coisa”. Se estais cavando num jardim, ou a caminho do escritório, ou contemplando uma árvore, ou seguindo o movimento de um rio, ou simplesmente caminhando pela estrada, sem nada pensar, observando tranquilamente as coisas — o que quer que estejais fazendo é parte da ação. Mas, em regra, nessa ação gera conflito. Ela, por profunda que seja considerada, ou por mais superficial, torna-se mecânica, cansativa, fastidiosa, mera atividade sem significação. Eis porque muito importa compreender o que é “ação”.

Fazer qualquer coisa — andar, falar, olhar, pensar, sentir — requer energia; e a energia se dissipa quando, na sua mesma expressão, existe conflito. Como se pode observar, nossas atividades, em todos os níveis, geram conflito; criam em nós uma consciência de esforço, certa resistência, negação, defesa. E é possível, de alguma maneira, agir sem conflito, sem resistência — e, até, sem esforço? É sobre isto que desejo falar-vos nesta manhã.

Vê-se o que está acontecendo no mundo. Os computadores, os cérebros eletrônicos, e várias formas de “automação” vão proporcionar ao homem cada vez mais folga, e essa folga vai ser monopolizada pelas religiões e diversões organizadas.

Não sei se há muita diferença entre essas duas coisas, mas, por ora, deixemo-las separadas. Quando o homem dispõe de maior lazer, tem também mais energia — bastante energia — e a sociedade exige que ele utilize essa energia de maneira correta, e não anti-social.

Para controlar o sentimento anti-social, entrega-se o homem à religião organizada ou a divertimentos de todo gênero. Ou irá cultivar a literatura, a arte, a música — outra forma de divertimento. E o resultado é que o homem se tornará cada vez mais superficial. Poderá ler todos os livros do mundo e procurar entender as complicações da teologia, da filosofia, da ciência; poderá familiarizar-se com certos fatos e verdades da literatura, mas tudo será exterioridade, tal como as diferentes formas de religião e de entretenimento. Afirmam as religiões organizadas que estão buscando as coisas interiores da vida, porém elas exigem crença, dogma, ritual, conformismo, como todos sabemos.

Ora, a menos que estejamos conscientizados de todas essas condições inerentes à moderna civilização, nossas energias serão por elas consumidas e nossa atenção, por conseguinte, permanecerá superficial; e, por causa dessa superficialidade, continuaremos a ter conflito interior e com outras pessoas, com a sociedade. Em todas as formas da atividade humana — artística, científica, matemática, industrial — e em nossas relações com esposa ou marido, com os filhos, com o próximo, continuará a haver conflito; e todo conflito é desperdício de energia. Para se conseguir a extinção do conflito e, por conseguinte, a conservação da energia, cabe-nos compreender o que é ação; pois, sem essa compreensão, nossa vida se tornará mais e mais exterior, e estaremos cada vez mais vazios interiormente. Isto não é um ponto passível de discussão ou de dúvida, não está em questão minha opinião contra a vossa. Trata-se de fatos reais.

Assim, em primeiro lugar, que é ação, como a conhecemos? Todas as nossas ações têm algum móvel, sutil ou óbvio, não é verdade? Ou estamos visando a uma recompensa, ou atuando por medo, ou procurando ganhar alguma coisa. Nossa ação é sempre um ajustamento a algum padrão, a alguma ideia, ou aproximação a algum ideal. Conformismo, ajustamento, aproximação, resistência, renúncia — eis tudo o que sabemos a respeito de ação, e tudo isso implica uma série de conflitos.

Como já mencionei, comungar com alguma coisa com a qual não nos relacionamos profundamente é sempre um tanto difícil. Eu desejo estar em comunhão convosco, em referência a um estado de espírito que é a verdadeira antítese desse conflito que comumente chamamos “ação”. Há uma ação total, ação sem conflito, e desejo dizer-vos algo sobre ela — mas não para vós o aceitardes ou rejeitardes, ou serdes hipnotizado por minhas palavras. Uma das coisas mais difíceis (quando um homem está sentado num estrado, a falar, e outros escutando — se de fato o escutais) é estabelecer a relação correta entre o ouvinte e o orador. Aqui não estais para serdes mesmerizados com uma série de palavras, a tampouco de nenhuma forma desejo influenciar-vos. Não estou fazendo propaganda de uma ideia, nem é minha intenção instruir-vos. Como várias vezes tenho frisado, não há instrutor nem discípulo, há só um “estado de aprender”; e vós e eu nenhuma possibilidade temos de aprender, se esperamos ser instruídos, ser informados sobre o que devemos fazer. Não nos interessam opiniões. Eu não tenho opiniões. O que estou tentando é apenas expor certos fatos, e podeis olhá-los, examiná-los por vós mesmos, ou deixar de fazê-lo. Isso significa que vós e eu temos de estabelecer a relação correta, de modo que haja não apenas uma comunhão intelectual, mas a percepção total de um fato que ambos examinamos. Não estamos em comunhão um com o outro, porém, antes, em comunhão com o fato e, por conseguinte, o fato se torna mais importante do que vós e eu. Só o fato, e o percebê-lo mutuamente, criará o ambiente ou clima adequado, que não pode deixar de influir profundamente em nós. Assim, eu acho que o escutar uma coisa — aquela corrente, ou o sussurro das árvores, ou nossos próprios pensamentos e sentimentos — se torna sobremodo importante quando estamos considerando o fato em si, e não uma ideia ou opinião sobre ele.

Todos sabemos que nossa ação gera conflito. Toda ação baseada em ideia, conceito, fórmula, ou visando a um ideal, deve inevitavelmente gerar conflito. Isto é óbvio. Se atuo em conformidade com uma fórmula, um padrão, um conceito, estou sempre dividido entre o fato — o que sou — e o que penso que deveria fazer a seu respeito; assim, não há ação completa. Há sempre “aproximação” a uma ideia ou ideal, e por conseguinte o conflito é inerente a toda ação que conhecemos, e é um desperdício de energia, um fator de deterioração mental. Observai o estado e a atividade de vossa mente, e vereis que isso é verdadeiro.

Pergunto, agora, a mim mesmo: existe ação sem ideia e consequentemente sem conflito? Ou, por outras palavras: deve a ação sempre gerar esforço, luta, conflito? Por exemplo, eu estou falando, e isso é uma forma de ação. Por certo, nesta ação só há conflito se estou tentando impor-me, procurando tornar-me importante, procurando convencer-vos. Assim, é de suma relevância descobrir, cada um por si, se há possibilidade de viver e fazer coisas sem o mais leve conflito — isto é, se pode haver ação em que a mente permaneça intacta, livre de deterioração, de qualquer forma de distorção. E não pode deixar de haver distorção, se a mente de alguma maneira está sendo influenciada ou envolvida em conflito, que é desperdício de energia. Descobrir o que ocorre verdadeiramente é para mim de real interesse, e também para vós o deve ser; porque o que estamos tentando é averiguar se podemos viver sem sofrimento, sem medo, sem desespero, sem nenhuma forma de atividade que mentalmente nos deteriora. Se é possível, que nos acontece, então? Que acontece à pessoa que não é influenciada pela sociedade, que não teme, que não é ávida, invejosa, ambiciosa, desejosa de poder?

Para o averiguarmos, precisamos começar por aperceber-nos do atual estado de nossa mente, cheia de conflitos, aflições, frustrações, perversões, desespero. Temos de estar plenamente apercebidos e, assim, acumular energia; e essa própria acumulação de energia é a ação que purificará a mente de todas as inutilidades que o homem veio amontoando no curso dos séculos.

A ação em si não nos interessa. Nós queremos averiguar se existe uma ação que não gere contradição em nenhuma forma. Como vimos, as ideias, os conceitos, as fórmulas, os padrões, os métodos, dogmas, ideais — são os criadores das ações contraditórias. E é possível viver sem a ideia — isto é, sem nenhum padrão, nenhum ideal, nenhum conceito ou crença? Muito importa que nós mesmos o descubramos, pois facilmente se pode ver que o amor não é uma ideia, um padrão, um conceito. Em geral temos um conceito do que é o amor, mas esse conceito, evidentemente, não é o próprio amor. Ou amamos, ou não amamos.

É possível uma pessoa viver neste mundo e ir para o escritório todos os dias, cozinhar, lavar pratos, dirigir seu carro, e executar todas as outras ações da vida cotidiana — que no presente se tornaram maquinais e causadoras de conflito — é possível fazer todas essas coisas, viver e agir, sem ideação e dessa maneira libertar a ação de toda contradição?

Não sei se já algumas vezes percorrestes uma rua movimentada ou uma estrada solitária, olhando apenas para as coisas, sem pensar. Há um estado de observação sem a interferência do pensamento. Embora estejamos a par de tudo que nos cerca, e reconheçamos outra pessoa, a montanha, a árvore, ou o carro que se aproxima, nossa mente não funciona no costumeiro padrão de pensamento. Não sei se isso alguma vez já vos sucedeu.

Experimentai-o, numa ocasião em que estiverdes passeando, de carro ou a pé. Olhai, apenas; observai sem a reação criada pelo pensamento. Embora reconheçais as cores e as formas, conquanto vejais o rio, o carro, o animal, o ônibus, não há reação alguma, porém, tão só observação; e esse próprio estado, da assim chamada observação negativa, é ação. A mente, então, pode utilizar o conhecimento para executar o que for necessário, mas se acha isenta de pensamento, quer dizer, não atua por reação. Com essa total atenção, sem reagir — podeis executar todas as tarefas de cada dia.

Em geral, estamos sempre pensando em nós mesmos, da manhã à noite, e funcionando dentro do padrão desta atividade egocêntrica. Toda atividade dessa ordem, que é apenas reação, leva inevitavelmente a várias formas de conflito e deterioração. Mas, é possível não funcionar dentro desse padrão e, todavia, viver neste mundo? Não quero dizer “viver sozinho numa caverna, entre as montanhas”, ou coisa semelhante; pode-se viver neste mundo e funcionar como ente humano total, pela ação desse estado de vazio (se não interpretais erroneamente o uso que estou fazendo desta palavra)? Pintando ou escrevendo poesia, ou caminhando para o escritório, ou falando, podeis conservar sempre um espaço vazio, interiormente, e, pela ação desse espaço, trabalhar? Porque, quando existe esse espaço vazio, a ação não gera contradição.

Isso é uma coisa que muito importa descobrir e vós mesmo é que tendes de descobri-la, porquanto ela não pode ser ensinada ou explicada. Para descobrirdes, deveis primeiramente compreender que toda ação egocêntrica gera conflito e, a seguir, interrogar-vos se a mente pode em algum tempo contentar-se com tal ação. Ela poderá satisfazer-se momentaneamente; mas, ao perceberdes que, em toda ação dessa natureza, é inevitável o conflito, passais a averiguar se existe outra espécie de ação, ação não conducente a conflito; e, então inevitavelmente descobrireis que ela existe.

Surge, assim, a questão: porque é que estamos sempre à procura de satisfação? Em todas as nossas relações, e em tudo o que fazemos, existe sempre o desejo de preenchimento, a busca de prazer, e o desejo de conservar esse estado de prazer. O que chamamos “descontentamento” só se apresenta quando as coisas não nos satisfazem; e esse descontentamento só serve para gerar outra série de reações.

O indivíduo que encara os fatos com seriedade e que percebe tudo isto — como há milênios vivem os homens em completa confusão e aflição e sem nunca haver uma ação integral — deve por si mesmo descobrir se é capaz de viver sem se deixar contaminar pela sociedade. E isso ele só poderá descobrir quando estiver livre da influência social. Refiro-me a um estado livre da estrutura psicológica da sociedade, constituída de avidez, inveja, ambição e desejo de importância pessoal. Uma vez compreendida e posta de lado essa estrutura, o homem acha-se livre da sociedade. Poderá continuar a ir para o escritório, trajar calças, etc., mas já estará livre daquela estrutura psicológica que tanto lhe deforma o espírito.

Atinge, em suma, um ponto em que descobre por si próprio que a libertação da influência social é uma completa inação. Esta inação significa ação total, que não engendra contradição e, por conseguinte, deterioração.

Krishnamurti, Saanen, 26 de julho de 1964,
A mente sem medo

sexta-feira, 20 de abril de 2018

Que ação pode transformar a mente embotada?

Que ação pode transformar a mente embotada?

Na moderna civilização, onde tudo se vai tornando altamente organizado, observa-se um contínuo diminuir da liberdade na ação. Estamos perdendo a espontaneidade e a paixão, em nosso agir. Para a maioria de nós, a ação se tornou rotina. No ir para o escritório todos os dias, no lavar pratos na cozinha, no escrever, no pintar, no que quer que seja, nossa ação se está tornando cada vez mais "canalizada", moldada por uma série de padrões. E, quando tudo o que fazemos é, dessa maneira, reduzido a rotina, não há então nenhum problema relativo à ação, nenhuma vontade de investigar o que é ação. A questão sobre o que é correto fazer só se apresenta quando temos problemas; mas, então, só cuidamos de analisar os problemas, ou ficamos a tatear no escuro, na esperança de uma solução. Tal é a única ação que conhecemos. Mas, parece-me haver uma ação de qualidade completamente diferente, a qual, com efeito, é inação; e desejo, se possível, examinar isso um tanto profundamente, nesta manhã.

Nunca perguntamos a nós mesmos ou tentamos investigar o que é a ação independente de nossa rotineira "resposta" (reação) às diárias exigências da sociedade, ou de nosso esforço para resolver um certo problema de especial urgência. Dentro dessa estreita esfera, tentamos descobrir o que é correto fazer. Mas, penso que há uma mais ampla esfera de investigação, e possibilidade de busca mais profunda para se descobrir o que é ação; e, se pudéssemos descobri-lo, então, nossas limitadas ações em "resposta" às exigências de uma dada sociedade — capitalista ou socialista — seriam muito mais significativas.

Que é, pois, ação? Não tencionamos averiguar o que se deve fazer num dado conjunto de circunstâncias; isso ficará para mais tarde. Se nos restringimos ao que se deve fazer num dado caso, a ação se torna superficial, limitada e pouco significativa. O que se pergunta não é "Que fazer?" porém, antes, "Que é ação?".

A ação, para a maioria de nós, tem motivos vários, ou visa a ajustar-nos a um ideal. Nosso comportamento é guiado por um conceito, uma fórmula, uma ideia, e há, assim, um intervalo entra a ação e a ideia. Esse intervalo, essa separação, gera conflito, e com este perdemos energia; e, sem energia, não pode haver a verdadeira ação. A ação requer a energia da liberdade, da espontaneidade; e, se a ação estiver condicionada, limitada por uma ideia, moldada em conformidade com uma fórmula ou sistema racional de pensamento, perderá seu ímpeto próprio, sua espontânea força propulsora.

Espero ter a possibilidade de explicar o que quero dizer, à medida que formos avançando. Não estou falando teoricamente. Como tenho acentuado repetidas vezes, eu não acalento teorias, meras ideias. Em todas estas palestras o que nos interessa são os fatos, a ação.

Ora, enquanto a ação for limitada, restringida por uma ideia, ela não só cria conflito, perdendo, assim, energia, mas também se ressentirá da falta da espontaneidade geradora de energia. Só conhecemos a limitada energia que em nós é gerada pelo conflito, pela competição, pelo atrito. Nossa "resposta a desafio" depende de um conceito, uma ideia, uma fórmula, e isso significa que a "resposta" é limitada — perdendo-se, assim, parece-me, a extraordinária vitalidade da ação.

Por outras palavras, se observardes a vós mesmo, vereis que há um conceito, uma imagem, uma ideia, de acordo com a qual estais vivendo. Estais sempre ajustando vossa ação a essa ideia, criando assim atrito, conflito, e perdendo energia. Mas, para podermos pensar muito claramente, ser altamente sensíveis, sentir apaixonadamente a respeito de qualquer coisa, necessitamos de extraordinária energia. Parece-me, portanto, que para a maioria de nós o problema é a falta de energia interior, embora exteriormente nos mostremos muitos ativos — frequentando assiduamente o escritório, fazendo trabalhos caseiros, etc. Interiormente, não temos energia suficiente para atacar um problema diretamente e resolvê-lo instantaneamente. "Transportamos" o problema de dia para dia, de maneira que ficamos carregados de problemas.

Ora, é possível atuar sem ideia? Isto é, pode um homem viver completamente no presente? Como vimos outro dia, viver completamente no presente, dar toda a atenção ao presente, significa morrer para o passado. Isso requer percebimento não só dos movimentos conscientes da mente, mas também de seus movimentos inconscientes. Temos de estar apercebidos de todos os nossos pensamentos e sentimentos, de todas as nossas ações, não em conformidade com alguma ideia ou fórmula, porém simplesmente apercebidos de todos eles, sem interpretação — estar tão totalmente vivos no presente que a ação seja imediata e não um ajustamento a certa ideia ou ideal.

Se estiverdes deveras apercebido do funcionamento de vossa mente, sabereis que estais constantemente observando com uma conclusão, e em conformidade com ela aprovando, condenando, interpretando ou tentando modificar o que vedes. Ora, se nenhuma conclusão houver, nenhuma interpretação, porém, tão só, observação pura, então, essa mesma observação é ação sem ideia. Afinal de contas, o cultivo do pensamento, ainda que necessário, não é amor. O amor, assim me parece, é ação direta, e não ação deliberada, idealizada.

Não sei se estou transmitindo bem o que desejo transmitir.

Vede, cada um de nós está necessitado de uma mutação total; necessita-se de completa transformação nas profundezas, nas raízes de nossa consciência, pois de outra maneira somos meros autômatos, vivendo num mundo insípido, superficial, cheio de conflitos, pesares, aflições, e "respondendo" ou reagindo apenas às mais superficiais exigências e solicitações. Para realizar essa fundamental revolução interior, precisamos investigar o que é ação; precisamos averiguar se existe ação não ditada pelas circunstâncias, pela ambição, pelas exigências sociais, pelas ideias reformadoras, pelas pressões nacionalistas ou outras. Para descobrir se existe tal ação, acho que a pessoa precisa penetrar muito fundo em si mesma — tão fundo que a mente possa atuar sem ser de acordo com ideias, conclusões, lembranças, e seja, portanto, capaz de viver naquele presente total que, por si só, modifica a natureza mesma da ação.

Quer-me parecer que não estou conseguindo transmitir-vos nada.

Que é comunhão? Eu desejo transmitir-vos algo que sinto ser muito importante; e para que isso possa ser transmitido é evidentemente necessário haver cooperação entre nós, entre o ouvinte e o orador. Assim sendo, de que maneira cooperais? De que maneira escutais o que se está dizendo? Escutais apenas com o fito de "pegar" a ideia, o significado das palavras? Ou estais escutando e ao mesmo tempo observando vossas próprias reações e "respostas", tanto conscientes como inconscientes? Isto é, estais escutando no presente ativo, ou apenas comparando vosso pensamento com o que se está dizendo? Eu desejo dizer algo, que é o seguinte: A pessoa pode viver completamente no presente, sem nenhuma ideia fixa, nenhum pensamento preconcebido, e esse viver completo no presente proporciona a tremenda energia de que se necessita para promover uma revolução total na mente. É isso o que quero transmitir, e não com meras palavras. Desejo transmiti-lo de maneira tal, que sintais a sua realidade, de modo que, ao sairdes daqui, se tenha efetuado uma mutação, uma tremenda revolução.

Como estive dizendo outro dia, o pensamento se tornou para a maioria de nós sobremodo importante, — sendo o pensamento ideia, racional ou irracional, neurótica ou "normal". O pensamento guia nossas vidas, molda os nossos fins, e controla as nossas ações. Ora, para este orador, o que chamamos "pensamento" nenhuma importância tem, porquanto é mera reação da memória, a voz da tradição, das experiências passadas, acumuladas; e o passado não pode enfrentar o sempre mutável presente. Para enfrentar o presente, deve a mente estar de todo livre do pensamento, para que haja a observação sem ideia; e é essa observação sem ideia que proporciona a tremenda energia necessária para realizar-se a mutação. Isto é, a mente deve estar livre de tudo o que a memória nela depositou. Necessitamos da memória para podermos funcionar, obrar, fazer coisas; necessitamos do passado, como conhecimento, mas sem deixá-lo interferir de modo nenhum no presente, que é ação, que é energia.

Pois bem; escutastes o que se acaba de dizer. E de que maneira o escutastes? Escutastes e observastes de maneira que pudestes ver o fato por vós mesmo? Ou escutastes meramente com a ideia de que "é preciso viver no presente" e apreender o seu significado? A pessoa ou percebe o fato, ou tem uma ideia a respeito do fato e, a seguir, interpreta o fato em conformidade com essa ideia.

Vede, há muito pouco amor em nossas vidas; com efeito, não sabemos o que isso significa. Conhecemos o chamado "amor", sempre acompanhado de ciúme, inveja, irritação, confusão, aflição. Esse, todos nós conhecemos bastante. Mas, não sabemos de fato o que significa achar-se num estado de amor, não é verdade? Podemos amar alguém em particular, mas não conhecemos aquele "estado de ser" extraordinariamente vivo e lúcido, que é o amor. A maioria de nós tem muito pouco amor no coração, e é por isso que o pedimos a outrem. Por não termos amor, encontramos em geral um meio de aliviar-nos, seguindo uma certa via de "autopreenchimento", que pode ser sexual, intelectual, ou de ordem neurótica; de maneira que nossos problemas crescem e se tornam mais e mais agudos.

Ora, eu me estou referindo à mente que nenhum problema tem; ou, melhor, à mente que, ao surgir um problema, é capaz de compreendê-lo e resolvê-lo de pronto, de modo que o problema não deixa resíduo ou marca. Isto é ação; é viver no presente. Teremos problemas constantemente, problemas de várias espécies; e não poderemos, logo que surgir cada problema, resolvê-lo tão completamente, que ele não deixe marca — a memória de algo aprendido, com a qual nos abeiramos do novo problema? Se nos abeiramos do problema novo com uma lembrança, não podemos resolvê-lo. O que estou tentando transmitir-vos é que existe uma ação, que nenhuma ideia inclui, ação que, por conseguinte, é direta e não o produto de uma memória mecânica. Tal ação liberta considerável energia; e vós necessitais de "possante" energia, para descobrirdes o que é verdadeiro, descobrirdes o que existe além dos padrões que o homem estabeleceu para si próprio, além das coisas construídas pela mente.

Deixai-me formular a questão de diferente maneira. A maioria de nós vive vida muito superficial, e temporariamente nos satisfaz viver dessa maneira vulgar, estreita. Depois, compreendendo que estamos vivendo superficialmente, sentimo-nos descontentes e procuramos um modo de nos tornarmos profundos. Mas a mente superficial que quer tornar-se profunda, continua superficial. A mente superficial poderá buscar Deus, mas será sempre superficial e seu Deus será também inferior. Ora, como transformar completamente a mente embotada, superficial, estúpida, de modo que ela se torne totalmente viva? — Esta é que é a questão.

As terríveis condições em que se acha o mundo exigem uma mente nova, fresca, pois, do contrário, os problemas irão aumentar. Haverá mais morticínios, mais guerras, mais confusão, mais rivalidades, mais progresso (assim chamado) e mais escravização às coisas. Se vossa mente não é nova, será colhida pelas circunstâncias. E, mais, necessitais de uma mente fresca, uma mente nova, para poderdes descobrir se algo existe além do mensurável, além das coisas criadas pela sociedade, além das crenças e dogmas inventados pelos sacerdotes. Para tanto, necessita-se de vigorosa energia — energia que não seja produto de conflito, energia isenta de motivo. E só pode ser despertada essa energia demolidora, libertadora, clarificadora, depois de terdes compreendido e resolvido, em vós mesmo, todas as formas de conflito. Só termina o conflito quando há autoconhecimento — o conhecimento da totalidade de vossa consciência. Já tratamos desta matéria — a autoinvestigação — e, portanto, não há necessidade de a examinarmos de novo.

Sem amor, vivemos no sofrimento, na aflição, em conflito perene. E o amor, por certo, é sem conflito. Direis, porventura: "Isto é apenas uma ideia, um ideal, um estado teoricamente perfeito" — mas estais enganado. Nasce o amor ao começarmos a compreender realmente a totalidade de nosso próprio ser. Assim, o importante é o indivíduo descobrir por si mesmo, que se acha enredado em palavras, em ideias. Somos escravos das fórmulas, dos conceitos, e a percepção desse fato altera a própria natureza da ação. Na mutação da ação, há paixão, que é energia; e, com essa energia, que faz parte do amor, que faz parte da criação, tem a mente a possibilidade de ingressar num estado jamais concebido ou formulado por ela própria, num estado desconhecido.

Krishnamurti, Saanen, 25 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho

segunda-feira, 9 de abril de 2018

A ação que não é mera reação


A ação que não é mera reação

Em nossa última reunião, estivemos dizendo que se torna necessária uma grande revolução, não só em virtude da terrível situação mundial, mas também porque é indispensável que a mente humana seja livre para descobrir o que é verdadeiro. Parece-me de essencial importância que se crie uma mente nova, mente não limitada pela nacionalidade, pelas religiões organizadas, pela crença, por um dado dogma ou pelas limitações da experiência. Urge, por certo, fazer nascer um estado criador — não a mera capacidade de inventar, de pintar, de escrever, etc.; criador num sentido muito mais profundo e amplo. Indagamos como seria possível promover uma tal revolução e qual a ação necessária. E espero possamos prosseguir nesta mesma ordem de investigação.

Já se tem tentado, não é verdade? — aderindo a diferentes grupos, frequentando várias escolas de pensamento e de imitação — descobrir o que cumpre fazer. Sentimos esta necessidade de descobrir o que impende fazer, não apenas em nossa vida diária; desejamos também saber se há um modo de ação — tomada esta palavra num sentido muito mais amplo — de natureza total, não apenas num dado momento. Parece-me bastante óbvio que a maioria de nós anseia por descobrir o que se deve fazer; e talvez seja por esta razão que aqui estais, pois pertenceis a tantos grupos, corporações e sociedades religiosas: desejais descobrir o que se deve pensar e o que se deve fazer.

Para mim, o problema não é este, absolutamente. A exigência de “o que fazer”, a exigência de uma norma de conduta, determinada maneira de vida, é, na realidade, muito prejudicial à ação. Implica um sistema para seguir, dia a dia, até se alcançar determinado alvo, determinado “estado de ser”. Vivendo, como vivemos, neste mundo insano, caótico, impiedoso, procuramos, em meio a toda esta confusão, uma norma de ação que não crie novos problemas. E creio que para se compreender esta matéria profundamente é necessário compreender o esforço, o conflito e a contradição.

Vivemos, em geral, num estado de autocontradição, tanto coletiva como individualmente. Não quero fazer asserções absolutas, mas acho que é mais ou menos exata a asserção de que muito raramente conhecemos momentos livres de conflito, de contradição interior. Não conhecemos um estado mental perfeitamente tranquilo, em que essa tranquilidade, por si só, é ação. Em maioria, vivemos em contradição, e dessa contradição resulta conflito. E interessa-nos saber como nos libertarmos desse conflito, não só exteriormente, mas também interiormente. Se, partindo daqui, pudermos prosseguir nossa investigação, talvez consigamos encontrar a ação que não é mera reação.

Para a maioria de nós, toda ação é reação. E é possível agirmos sem ser em reação e, consequentemente, sem criarmos contradição em nós mesmos? Espero que me esteja fazendo claro. Gostaria que examinássemos juntos esta questão, penetrando-a completamente. Porque, para mim, o conflito, em qualquer forma que seja, é — expressando-o delicadamente — prejudicial à penetração, à compreensão. Somos criados, educados no conflito e na competição; toda a nossa sociedade aquisitiva se baseia nisso. É possível, pois, a mente libertar-se do conflito e, em consequência, esclarecer todo esse processo de autocontradição? Talvez possamos examinar este ponto com inteligência, para alcançarmos aquela mente que se acha num estado de revolução e compreendermos, assim, o que é atuar sem os efeitos condicionadores da experiência e do conhecimento.

PERGUNTA: Isso não seria agir sem pensar?

KRISHNAMURTI: Isso (agir sem pensar) seria algo caótico, não achais? Talvez seja preferível examinarmos primeiramente o processo do pensar, o mecanismo do pensar. Permiti-me, pois, perguntar: Que é pensar?

APARTE: Eu diria que pensar é uma reação nervosa a algo que se experimentou. Não podemos reagir ao que não experimentamos.

KRISHNAMURTI: Ora, há máquinas que pensam: os cérebros eletrônicos, os computadores. Nosso pensar se processa de maneira semelhante? É ele reação da memória, que são as experiências armazenadas, individuais e coletivas; reação à qual se junta a reação nervosa? Pergunto-vos: Que é pensar? Antes de responder, não deveis estar apercebido do processo, do mecanismo que opera no responder? No intervalo entre a pergunta e a resposta está em movimento o “mecanismo” pensante, não é exato? O desafio constituído pela pergunta põe em ação o mecanismo do pensamento e vem então a reação. Não é assim mesmo? Se vos perguntam qual é vossa religião ou nacionalidade, vós respondeis — não é verdade? — em conformidade com vossa educação, vossa criação, de acordo com vossa crença ou não-crença. Ora, de que fundo (background) procede a vossa resposta?

APARTE: Da memória.

KRISHNAMURTI: Exatamente, não é? Se nasci em certo lugar e lá fui educado, moldado pela sociedade, pela tradição de que vivo, tenho então um certo reservatório de experiências, lembranças, e minha reação a qualquer desafio procede desse fundo. Eis o mecanismo, eis o que chamamos “pensar”. De acordo com essa experiência, herdada ou adquirida, eu vivo e atuo. Meu pensar, portanto, é sempre muito limitado; por conseguinte, não há liberdade no pensar.

PERGUNTA: Não é possível um homem ter pensamento criador: por exemplo, fazer novas descobertas na ciência ou na Matemática? O pensar é todo ele resultado de condicionamento?

KRISHNAMURTI: Quando descobrimos realmente alguma coisa? Quando percebemos algo novo, subjetiva ou objetivamente?

APARTE: Eu diria: quando se esgotaram os meios conhecidos.

KRISHNAMURTI: Examinemos isso. Tenho um problema de Matemá­ tica e trabalho para o resolver; ataco-o de muitas e diferentes maneiras, até ficar exausto; deixo-o então de lado e eis que na manhã seguinte, ou em dado momento posterior, a solução se apresenta subitamente. Assim, depois de a mente ocupar-se amplamente com o problema, e de abandoná-lo por não encontrar a solução, sobrevém uma certa quietude em relação ao problema e, posteriormente, a solução vem por si.

PERGUNTA: Direis que isso não é pensar?

KRISHNAMURTI: Estamos investigando, não? Há muitas coisas aí compreendidas. O pensar não se acha num único nível mental; é preciso também considerar o todo inconsciente. Estamos investigando o que é pensar. E vemos que nosso pensar procede, pela maior parte, de nosso fundo de memória, experiência, conhecimento etc. E há momentos em que, num rápido clarão, percebemos uma dada coisa aparentemente não relacionada com o passado; e isso que vemos pode ser falso ou pode ser verdadeiro, conforme a maneira como o traduzimos, e conforme o nosso fundo. Quando a mente superficial está tranquila, pode haver descobrimento, entendido como uma nova invenção ou uma ideia nova; mas todos os descobrimentos novos são da mesma natureza? Pois temos de considerar a mente em sua totalidade, não achais? — não só a mente superficial, mas também a mente inconsciente.

Pela maior parte do tempo funcionamos num nível superficial, não é verdade? As atividades a que nos entregamos são muito superficiais: não exigem a reação integral de nosso ser total. É óbvio que toda a nossa educação e todo o nosso cabedal mental (background) estão ajustados para a reação superficial; vivemos na superfície da mente. Mas existe também a mente inconsciente, profunda e inexplorada, a qual está sempre fornecendo alusões, avisos, sonhos etc.; e estas coisas, por sua vez, são traduzidas pela mente consciente segundo o seu condicionamento. E a consciência inteira não está condicionada? O inconsciente, decerto, é o reservatório das memórias raciais: recordações, reflexões, tradições, memórias, todos os conhecimentos acumulados do homem. Mas a mente consciente, a mente superficial é educada para as técnicas do mundo moderno. Por isso, evidentemente, existe uma contradição entre o inconsciente e o consciente. A mente consciente pode ser educada para não ter crença em Deus, para ser ateísta, comunista ou o que quer que seja, mas o inconsciente foi exercitado durante séculos na crença; e quando sobrevém a crise, o inconsciente reage muito mais fortemente do que a mente consciente. Sabeis disso muito bem, não? Vemos, pois, que a totalidade da consciência, não apenas a parte superficial, mas também a parte inconsciente, está condicionada; e qualquer reação oriunda do inconsciente não é fator de libertação. Pensai nisso, por favor, e investigai junto comigo; não vos limiteis a concordar ou discordar. Se um matemá­tico tem um problema e, depois de investigá-lo, de estudá-lo, o resolve sem a ajuda do pensamento, constitui esta solução coisa totalmente nova, não nascida, não resultante do inconsciente?

PERGUNTA: Se procede do inconsciente, então é coisa velha; não é realmente nova, é?

KRISHNAMURTI: Se permitis dizê-lo, temos de ser muito cautelosos, para não ficarmos no terreno da especulação pura e simples. Ou falamos por compreensão direta, depois de investigarmos toda a matéria, ou, ainda, podemos estar simplesmente repetindo o que alguém disse ou o que lemos. Se pudermos, por ora, ou mesmo para sempre, pôr de parte tudo o que outros disseram — os íogues, os swamis, os analistas, os psicólogos, e quem mais seja — estaremos então capacitados para descobrir por nós mesmos, diretamente, se é possível a consciência total libertar-se do condicionamento. Se não é possível, então o que se pode fazer é só continuarmos o velho trabalho de aperfeiçoar a consciência total — torná-la mais digna, melhor, mais nobre etc. Isto é o mesmo que viver numa prisão a decorar-lhe as paredes. Não importa se o intelecto foi “banhado” pelos comunistas, os católicos, os protestantes, os anglicanos ou outra seita qualquer... tudo é a mesma coisa. E é realmente importante, de vital importância, considerarmos se é possível ultrapassar a consciência limitada e condicionada; se a mente pode ficar livre, no sentido mais profundo desta palavra. Há quem diga que a mente, sendo resultado do tempo e do ambiente, permanecerá necessariamente escrava dessas influências; mas nós estamos perguntando se podemos transcender a mente, o tempo.

PERGUNTA: Como seria possível tal coisa?

KRISHNAMURTI: Estamos examinando o problema inteiro, não? Ou a mente é capaz de libertar-se de todas as influências e, por conseguinte, de todos os ambientes passados, presentes e futuros, ou isso não é possível. Os comunistas não o creem possível, tampouco o creem os católicos ou qualquer dentre as pessoas religiosas. Falam a respeito de liberdade, mas não creem nela, pois quem deles discorda é considerado herético — excomungado, queimado vivo, liquidado etc. É possível, pois, manifestar-se uma ação não procedente da esfera da consciência, da limitação, do condicionamento? Percebeis a questão, senhores?

APARTE: A experiência da maioria nos mostra que isso não é possível, mas ao mesmo tempo pressentimos essa possibilidade, mas não sabemos como consegui-lo.

APARTE: Eu sinto que não é possível.

KRISHNAMURTI: Estais só esperando que eu diga alguma coisa? Ora, eu não sei até que ponto penetrastes por vós mesmos nesta questão.

APARTE: Tenho certeza de que a mente consciente pode ser livre, mas a mente inconsciente parece-me um problema tremendo.

KRISHNAMURTI: É possível, mediante análise, penetrar passo a passo no inconsciente, esclarecê-lo e, assim, transcendê-lo? É possível?

Ora, o inconsciente é um “mecanismo” positivo, não? E podeis abeirar-vos de um processo positivo com uma exigência positiva? Tanto o consciente como o inconsciente estão sujeitos à mesma limitação, pois não? A mente consciente tem seus motivos próprios para desejar investigar o inconsciente. O motivo existe: ela quer ser livre. O motivo é positivo; e o inconsciente não é uma coisa vaga, é também positivo. Mas, embora o inconsciente seja positivo — com todas as suas alusões, avisos, sonhos etc. — não conheceis diretamente o seu conteúdo; não sabeis o que ele é realmente. Pode, pois, a mente consciente investigar uma coisa que desconhece? Por favor, não ponhais isso de lado; é assunto muito importante. A análise, feita por outro ou por vós mesmo, poderá revelar todo o conteúdo dessa coisa chamada inconsciente, a qual desconheceis totalmente?

APARTE: O inconsciente parece-me vasto demais.

KRISHNAMURTI: Não, não vos limiteis a dizer que ele é vasto demais; pois, nesse caso, não estais dando atenção à verdadeira questão: estais escapando por uma tangente. Parece que nunca examinastes bem o processo do pensar. Existe pensamento sem a palavra, a imagem, a ideia, o símbolo? Pois o símbolo se encontra também no inconsciente, tal como no consciente, não é verdade? E o mecanismo de investigar o inconsciente por meio de análise me parece falho. Desejo sugerir-vos um caminho certo: o percebimento direto. Em primeiro lugar, deve ficar bem claro para nós que todo pensar é mecânico. Pensar é reação da memória, reação do conhecimento, da experiência; e todo pensar proveniente desse fundo é condicionado. Por conseguinte, o pensamento nunca pode ser livre: e sempre mecânico.

APARTE: Sim, percebo isso.

Krishnamurti: Que entendeis, ao dizerdes: “Percebo”? Vede, por favor, isto é muito importante.

APARTE: Algo, dentro em mim, me faz percebê-lo.

KRISHNAMURTI: Quer dizer, então, que “algo dentro em vós” vos faz também perceber que deveis ser nacionalista, não é verdade? Algo vos faz crer que existe Deus, que deveis ter uma religião. Se dependeis de “algo” que vos fala “de dentro”, estais então também sujeito a ter ilusões, não? Assim, que entendeis por “Percebo”? Se digo que o nacionalismo é um veneno, percebeis a verdade desta asserção?

APARTE: Ela é óbvia.

KRISHNAMURTI: E quando digo que ter qualquer crença, pertencer a qualquer sociedade, qualquer religião organizada, é prejudicial ao descobrimento, percebeis também isto?

APARTE: Não muito claramente, porque pertenço a um grupo que trabalha para as Nações Unidas, e acho que isso é uma boa coisa. Aparte: Ele queria dizer “nações desunidas”.

KRISHNAMURTI: Desunidas, não há dúvida; mas estamo-nos afastando da matéria. Dissestes muito claramente que percebeis que o nacionalismo é um veneno. Vós todos concordastes. Mas, inconscientemente, sois todos nacionalistas, não é verdade? Sentis-vos inglês, francês, ou o que quer que seja. Esse sentimento existe, profundamente arraigado, não? E dizeis não perceber com a mesma clareza que a crença é destrutiva do descobrimento. Mas considerai a coisa desta maneira: Desejo descobrir se existe Deus. Desejo realmente descobrir por mim mesmo se Ele existe ou não. Portanto, preciso, em primeiro lugar, eliminar tanto do consciente como do inconsciente todos os conceitos relativos a Deus, não? Para descobri-lo realmente, tenho primeiro de arrancar todas as raízes da cultura em que fui criado, educado; não deve haver abrigo nem refúgio, onde eu ache que estou prestando bons serviços. Uma vez que minha intenção é descobrir, devo livrar-me sem dó nem piedade de tudo quanto aceitei, de modo que fique completamente desabrigado, física, verbal, intelectual ou emocionalmente; então, já não pertenço a coisa alguma.

Iniciamos esta investigação com a questão relativa ao que se deve fazer neste mundo insano. Uma nova maneira de considerar a vida, uma mentalidade inteiramente nova — isso é necessário; e esse novo “caminho” deve resultar de uma revolução completa, de uma total abjuração do passado. E o passado é tanto o inconsciente como o consciente. Assim, pertencer a qualquer grupo organizado de pensamento é coisa venenosa.

E todo esforço que façamos para sermos novos pertence também ao passado, não é verdade? Porque toda a atual estrutura da sociedade se assenta na aquisição, que significa esforço. Todo o processo baseado no “devo ser isto” ou “ não devo ser aquilo” implica esforço, conflito; percebo isso. E quando digo “percebo”, quero dizer que o percebo realmente e não emocional, sentimental, intelectual ou verbalmente. Vejo-o, assim como estou vendo este microfone. E o próprio percebimento do fato eliminou completamente aquele condicionamento. Não sei se vos estou comunicando alguma coisa. Por favor, não vos limiteis a concordar comigo. Isto não é um entretenimento social. Porque, se o estais vendo pela mesma maneira, estais então livres de tudo, completamente, instantaneamente.

APARTE: Sentimo-nos agrilhoados ao nosso condicionamento, em virtude de nossos deveres para com a sociedade e a família.

KRISHNAMURTI: Diz este cavalheiro, com toda a razão, que estamos agrilhoados pelos nossos deveres para com a família, a sociedade, nosso emprego, nossa pátria, a religião em que fomos criados, etc. etc. É assim que, quando nos vemos frente a frente com a necessidade de termos uma mente de todo nova, contrapomos a família, a sociedade, ao fato. E, por essa razão, há conflito entre o fato e aquilo que concebeis como vosso dever, não é? E é assim que, para fugir desse conflito, um homem ingressa num mosteiro, torna-se monge, ou isola-se interiormente; constrói um hábito em torno de si e aí fica vivendo. Ora, senhores, quando empregais as palavras “dever”, “responsabilidade”, estais-vos pondo em oposição à liberdade. Mas, se percebêsseis o fato sobre o qual estivemos falando, teríeis então uma maneira de agir completamente diferente, em relação a vossa família e à sociedade.

Como vedes, estou voltando à questão da ação e talvez forçando um pouco as conclusões. É bem de ver que todos desejamos “fazer alguma coisa” de nossa vida. Conheço pessoas, pelo mundo inteiro, que se disciplinaram rigorosamente, por desejarem descobrir o que é correto fazer. Essas pessoas se isolaram, renunciaram a tudo, obedeceram a preceitos religiosos e fizeram esforços tremendos; e o resultado final é que são entes humanos mortos, estiolados. Foi o constante esforço para ser alguma coisa, tornar-se alguma coisa, que os destruiu. E quando pomos a sociedade e a família em oposição à liberdade, o que fazemos é apenas introduzir o fator de conflito. E eu vos digo: não introduzais o elemento de conflito. Vede a verdade aí existente, e esse próprio percebimento se encarregará das relações. Como disse, para a maioria de nós ação é puramente reação. Eu vos lisonjeio, e vós reagis; ou vos insulto, e reagis. Nossa ação é sempre reação. E eu estou falando a respeito de coisa diferente, da ação que não é reação, porém ação total. Isto não é nenhuma ideia singular, extravagante, fantástica, de minha própria cabeça. Mas, se observásseis diretamente a coisa, na sua totalidade, se observásseis o mundo, as pessoas, estudando-as, olhando-as realmente — os grandes, os pequenos, os chamados santos e os chamados pecadores — veríeis que todos edificaram suas vidas no conflito, na luta, na repressão e no temor, e veríeis os horrores que daí resultam. Para ficardes livres de tudo isso, tendes de primeiramente vê-lo.

APARTE: Há tanto condicionamento inconsciente!

KRISHNAMURTI: Considerai isso, por favor. Todos vivemos em nossa mente consciente, superficial, e como podeis clarear todas as camadas, todas as seções do inconsciente, sem perder uma única? É possível a mente consciente penetrar em algo inconsciente, oculto? Ora, sem dúvida, o que posso fazer é só observar, permanecer completamente desperto, vigilante, o dia inteiro — quando trabalho, quando descanso, quando passeio, quando falo — para que tenha uma noite sem sonhos.

Começamos falando sobre uma revolução que não é resultado de cálculo e pensamento; porque o pensamento é mecânico, o pensamento é reação. O comunismo é reação ao capitalismo; se eu abandonar o catolicismo e me tornar outra coisa, isso é ainda uma reação. Mas, sê percebo a verdade de que pertencer a qualquer coisa, crer em qualquer coisa significa estar apegado a uma certa forma de segurança e impedindo, por consequência, o percebimento do que é verdadeiro, não há então conflito, nem esforço.

Estou vendo, pois, que a ação que é reação, não é ação, de modo nenhum. Desejo descobrir o que é a liberdade. Percebo a imperiosa e urgente necessidade de ter uma mente nova, e não sei o que faça para ter. Assim, fico preocupado acerca do que “devo fazer”; por conseguinte, estou dando toda a importância ao que “devo fazer” e não à mente nova. “O que devo fazer” tornou-se, pois, de suma importância, e rogo: “Tende a bondade de me dizer” — e deste modo cria-se a autoridade, a coisa mais perniciosa deste mundo.

Assim sendo, podemos perceber interiormente, ver este fato real: que toda ação é reação; que toda ação nasce do impulso para realizar, alcançar, tornar-se algo, chegar a alguma parte? Posso perceber este fato realmente, sem introduzir “o que devo fazer”, “minha família”, “meu emprego” e outras coisas que tais? Porque, se a mente percebe o fato, sem traduzi-lo nos termos do velho, há então percepção imediata; compreender-se-á então a ação que não é reação; e essa compreensão é uma qualidade essencial da mente nova. 

Krishnamurti, Londres, 04 de maio de 1961, O Passo Decisivo

sábado, 7 de abril de 2018

A criadora libertação da mente verdadeira

A criadora libertação
da mente verdadeira

Nas últimas quatro vezes em que aqui nos reunimos, estive falando sobre quanto é importante para o indivíduo libertar-se das numerosas influências sociais, culturais e religiosas, porque é só então que se torna possível a criadora libertação da mente verdadeira. Parece-me importantíssimo compreender a qualidade da mente, para que possa surgir a mente verdadeira. Em geral não nos interessa dar existência à mente verdadeira, mas, tão só, o que se deve fazer; a ação se tornou muito mais importante do que a qualidade da mente. A ação, para mim, é coisa secundária. Se se me permite dizê-lo, a ação não tem importância nenhuma. Porque, quando existe a mente verdadeira, a mente criadoramente "explosiva", então, dessa "explosividade" criadora resulta a ação correta. A frase correta não é "agir é existir", porém "existir é agir".

Para a maioria de nós a ação parece de vital importância e é por isso que a ela nos entregamos inteiramente; mas o problema não é a ação, embora o pareça. Muito importa à maioria de nós o como viver, o que fazer em certas circunstâncias, que partido tomar na política, etc. Se observardes, vereis que, geralmente, a nossa busca visa à maneira correta de agir e, por essa razão, existe ansiedade, sede de saber, a busca do guru. Indagamos, porque desejamos saber o que se deve fazer; e quer-me parecer que uma tal maneira de considerar a vida deverá conduzir, inevitavelmente, a muitos sofrimentos e angústias, a contradições não só interiores mas também na esfera social, contradições que invariavelmente acarretam frustrações. Para mim, a ação é a consequência inevitável do existir. Isto é, o próprio estado de atenção representa um ato de humildade. Se a mente é capaz de prestar atenção, essa própria atenção dá existência à mente verdadeira, da qual pode nascer a ação. Mas se, ao contrário, não existe a mente verdadeira, não existe essa extraordinária, impetuosa qualidade criadora, a mera busca da ação leva à vulgaridade, à superficialidade do coração e da mente.

Não sei se já notastes quanto vivemos ocupados em relação ao que se deve fazer, e provavelmente nunca tivemos uma mente de qualidade tal que perceba de pronto a totalidade. A própria percepção da totalidade, em si, representa ação, e acho importante compreender isto, porque nossa civilização nos tornou muito superficiais. Somos imitadores, tradicionalmente limitados, incapazes de uma visão ampla e profunda, porque os nossos olhos foram cegados pela ação imediata e seus resultados. Observai vossa própria mente, para verdes quanto vos importa o que se deve fazer; e esta constante ocupação da mente em relação ao que fazer pode levar a um pensar muito superficial. Mas se, ao contrário, a mente se interessa pelo percebimento do todo — não em como perceber o todo, que método empregar, para tal, — o que, mais uma vez, significa enredar-se na ação imediata — vereis que dessa intenção resulta ação, e não por outro meio.

Em que é que está interessada a maioria de nós atualmente? Na violência e na não violência, no adquirir um pouco de virtude, na casta ou nação a que pertencemos, na existência ou inexistência de Deus, na espécie de meditação que se deve praticar, etc. — e tudo isso é de limitado valor, insignificante. A mente, pois, se perde no meio de pequenas coisas; mas isso não significa que não se deva investigar o que é meditação. Descobrir o que é meditação é coisa inteiramente diversa. Mas a mente se mostra muito interessada no sistema de meditação que deve usar para chegar a seus fins, e essa preocupação a respeito de um sistema torna a mente inferior, superficial, vazia — sendo isso o que está acontecendo à maioria de nós. Repetimos o que diz o Gita, a Bíblia, ou Alcorão ou certos livros budistas, ou citamos Lenine ou Marx, e pensamos ter resolvido todas as questões. Mas, parece-me, o mais importante é dar existência à mente verdadeira, àquela extraordinária qualidade mental que apreende instantaneamente a totalidade do sentir, a totalidade do ser; e penso que essa mente verdadeira não poderá existir enquanto houver esforço. Enquanto o indivíduo estiver a lutar numa dada direção, a esforçar-se para ser ou não ser isto ou aquilo, a mente verdadeira, a mente que é capaz de perceber a totalidade, não pode existir. Só a mente que se liberta do esforço, da luta, pode compreender a totalidade do ser.

Por que fazemos esforço? Peço-vos atenção, porque esta é uma grave questão; pensemos nela profundamente, juntos. O esforço é evidentemente necessário, num certo nível de nossa existência — o esforço para adquirir conhecimentos, na escola, o esforço para aprender uma técnica, etc. Mas, por que razão a mente faz esforço para ser algo, ser não violenta, ser pacífica? Não é porque, reconhecendo-se violenta, ávida, estúpida, a mente deseja transformar tal estado noutra coisa? O desejo de passar de o que é para o que deveria ser, provoca um processo de esforço, não é verdade? Sou ignorante, e preciso adquirir conhecimentos; sou invejoso, e devo tornar-me não-invejoso. E, assim, o desejo de ser não-invejoso gera o esforço, a luta para ser algo. Para mim, esse esforço, em que quase todas as pessoas se acham empenhadas é o fator deteriorador. Como disse, o próprio ato de escutar é humildade; mas nós não escutamos. Perguntamos para nós mesmos: "Que está ele dizendo? Que me sucederá, se nenhum esforço fizer para ser algo? Como viverei? Como obter emprego ou ser promovido? A vida toda, como a conhecemos, é só de luta, de esforço, de incitamento, de compulsão; estamos habituados a esse ritmo, esse modo de pensar, e por isso nunca escutamos. Escutamos o que se diz, opondo-lhe nossas próprias opiniões.

Mas, podemos afastar de nós tudo isso e ficar, tão somente, escutando? Quando estamos somente escutando, que acontece? Esse próprio ato de escutar é humildade. Nenhum esforço se fez, a mente nada fez para se tornar humilde; ela é humilde e, portanto, capaz de escutar. Entendeis? Porque desejo compreender o que outro diz, não lhe oponho minha opinião, minhas objeções, meus argumentos; tudo isso é posto de parte, para escutar o que se está dizendo. Esse próprio escutar é humildade; a mente é humilde, nesse próprio ato; por conseguinte, não há esforço para se ser humilde. A mente arrogante não pode escutar. A mente que está repleta de conhecimentos, de argumentos, a mente que adquiriu, que experimentou — essa mente é incapaz de escutar, porque está cheia de vaidade, de presunção. O problema, por conseguinte, não é de saber como libertar-nos da presunção mas, sim, se a mente é capaz de escutar. Quando é capaz de escutar, a mente se acha num estado de humildade e é, então, capaz de percepção total, do que resulta ação. Mas, que é que nos importa agora? A maioria de nós importa acumular um pouco de virtude, um pouco de saber e multiplicá-lo, torná-lo cada vez maior e mais amplo. Mas isso é ainda um processo aditivo. Temos conhecimento, sabemos o que diz o Gita, o que diz o nosso guru, mas a mente verdadeira não existe; por isso nossa mente é incapaz de perceber, de compreender o todo, libertada desta luta interminável.

Parece-me, portanto, que o principal fator da deterioração da mente, é esta luta para ser algo. Afinal de contas, quando o indivíduo deseja ser alguma coisa, quando tem um alvo, um fim em vista, luta para atingir esse fim e sua vida é toda moldada por ele; por conseguinte, à sua mente não interessa sua própria realidade e profundeza, mas tão só o resultado de seus esforços.

Refleti sobre isso, para verdes como somos estéreis, não-criadores, por este mundo afora. Somos apenas imitadores, moldados pelo padrão da sociedade, pelos planos de uma determinada cultura; e pode a mente, em tais condições, ser criadoramente "explosiva"? Naturalmente, não pode. Entretanto, o que mais importa a todos nós é o que cumpre fazer. Há miséria no mundo, angústias, sofrimentos, tanto interior como exteriormente, e o que nos interessa é apenas saber como pôr fim a tudo isso. E, assim, a mente se deixa enredar no "como" — a solução, a explicação: como encontrar Deus, como meditar, se há ou não continuidade depois da morte, qual a ação correta, quem é o guru verdadeiro, qual o livro verdadeiro, etc.. É só isso que vos interessa, a todos, não é verdade? Não vos interessa a qualidade da mente mas, tão só, os muitos "comos", que evidentemente tornam a mente superficial. Podeis ter o melhor dos gurus, ler todos os livros sagrados, ser extremamente virtuoso; mas se não possuís essa qualidade criadoramente impetuosa da mente verdadeira, vossa virtude se torna muito superficial, respeitável e, portanto, sem valia, porque a virtude não é um fim em si.

Parece-me, pois, que o importante é que se investigue, deveras, a qualidade da mente verdadeira, que é uma mente não imitadora, não mera seguidora, mas, sim; verdadeiramente, "explosivamente" criadora; porque, sem essa qualidade, que valor tem vossa virtude, vosso saber, vossa busca da verdade? E pode a mente superficial, medíocre, a mente que foi educada apenas para se ajustar à sociedade, a mente derrotada, alquebrada, sofredora — pode essa mente encontrar aquela qualidade "explosivamente" criadora?

Senhores, em primeiro lugar devemos reconhecer que nossa mente é superficial, vazia; podemos enchê-la de palavras, do saber dos livros, porém ela continuará vazia. E pode uma mente inferior, superficial, pôr termo à sua inferioridade, sua superficialidade? Pode fazer-se vasta, profunda? Ora, ao fazerdes esta pergunta, com que intenção a fazeis? É com o fim de alcançar um resultado, encontrar um método? Ou o perguntais, simplesmente, assim como o jardineiro que planta uma semente, e a irriga, e a deixa medrar? Não sei se estou esclarecendo bem a questão. Para mim, o explicar porque a mente e inferior, nenhuma importância tem; o importante é que a mente descubra porque faz esta pergunta.

Ao reconhecer que está vazia, que faz a mente? Trata de adquirir mais conhecimentos, esforça-se para encher-se, enriquecer-se. Sentindo-se superficial, a mente quer ser profunda, e surge então o problema de como se tornar profunda; e, assim, começa a mente a praticar um método que lhe promete o que ela deseja, ficando, pois, aprisionada no método. Esse mecanismo, para mim, é totalmente errôneo, extremamente destrutivo, porquanto leva a uma superficialidade, a um vazio, piores ainda. A mente que está aprisionada num método, continua a ser inferior, porquanto só está cuidando de seu próprio enriquecimento e não compreendeu a si mesma. Mas se, ao contrário, a mente reconhecer que é superficial, sem buscar nenhuma explicação ou resposta, põe-se então em movimento um "processo" completamente diferente. Como disse, esse processo é semelhante à ação do jardineiro que planta uma semente e á irriga. Se a água e o solo forem bons e a semente tiver vitalidade, ela brotará. De modo idêntico, se a mente perguntar a si mesma por que razão é superficial e não buscar nenhuma resposta nem procurar meios e modos de enriquecer-se, então, a própria pergunta provoca uma explosão. Vereis, então, surgir um estado todo diferente, em que a mente já não luta para realizar, acumular; e essa mente não conhece deterioração.

Atualmente, a nossa mente está a deteriorar-se e, por certo, o que mais importa é pôr fim a essa deterioração. Isso não pode ser feito pela mera investigação da causa da deterioração, e pela sua explicação. Mas se estivermos apercebidos dessa deterioração interior e, sem procurarmos uma solução, perguntarmos a nós mesmos por que motivo ela existe, então essa própria pergunta é um ato de escutar. Para escutar, requer-se humildade, e a humildade purifica a mente do passado; a mente fica, então, nova, purificada, tornando-se, portanto, capaz de perceber a totalidade, o todo. Só essa mente pode implantar a ordem e criar uma nova sociedade com valores de todo diferentes dos atualmente existentes.

Krishnamurti, Quinta Conferência em Bombaim
18 de março de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana

O mecanismo da busca da “ação correta”

O mecanismo da busca da “ação correta”

Teórica ou verbalmente, pode-se convir em que é muito importante que o indivíduo se desprenda do coletivo, mas parece-me que não se dispensa atenção suficiente a este problema; porque, só quando ocorre a criadora libertação do indivíduo existe a possibilidade de descobrir e viver uma vida totalmente diferente da que atualmente vivemos. Na atualidade, nossa vida, nosso pensar é coletivo; fazemos parte do coletivo; e se se deseja criar uma sociedade de ordem diferente, com valores diferentes, acho que é necessário o indivíduo começar a compreender todas as impressões coletivas que a mente acumulou através dos séculos. E, como disse, só quando existe liberdade exatamente no começo, pode o indivíduo libertar-se. Não se pode negar que quase todos nós somos resultado do ambiente; nossos pensamentos, atividades, crenças, nossos vários interesses, tudo está condicionado pelas numerosas influências existentes ao redor de nós; e para descobrir o que é a verdade, o indivíduo tem de libertar a mente desse conglomerado de influências, empresa essa extremamente árdua e difícil. Não me parece que estamos dando, atenção suficiente a este assunto. Mas é só quando a mente se liberta dessas muitas influências, que se torna incorrupta, e só então existe a possibilidade de descobrir algo inteiramente novo — algo que não foi premeditado, que não é uma autoprojeção, nem resultado de qualquer meio cultural, sociedade ou religião.

Propaganda é cultivo de preconceitos; e todos nós somos dominados por preconceitos, porque fomos educados para aceitar ou rejeitar, porém nunca para investigar o problema da influência. Dizemos estar em busca da verdade; mas que é que está a buscar a maioria de nós? Se ficardes um pouco vigilante, a auto-observação revelará que estais a buscar um certo resultado; desejais uma certa satisfação, uma estabilidade ou permanência interior, que chamais por diferentes nomes, conforme o ambiente em que fostes criado. E não estais também buscando sucesso? Desejais sucesso, não apenas neste mundo mas também no outro. Quer-me parecer que esse desejo de sucesso, de chegar a alguma parte, de tornar-se algo, é resultado de uma educação errônea. E pode a mente libertar-se totalmente desse desejo?

Não me parece que costumamos fazer esta pergunta a nós mesmos, porquanto o que nos interessa é, tão-só, seguir um método, um sistema ou um ideal, que esperamos produzirá um resultado, nos conduzirá à certeza, ao sucesso, à final e permanente felicidade, bem-aventurança, ou seja o que for. Nossa mente, por conseguinte, está sempre empenhada no esforço para alcançar algo; e enquanto a mente estiver a visar um alvo, um fim, um resultado que lhe dê satisfação completa, será inevitável a criação da autoridade e a obediência a ela. Não é exato isso? Enquanto penso que a bem-aventurança, a felicidade, Deus, a Verdade, ou o que quiserdes, é um fim que se deve alcançar, haverá o desejo de alcançá-lo; portanto, preciso de um guru, uma autoridade que me ajude a conseguir o que ambiciono. Por conseguinte, me torno um seguidor, dependente de outra pessoa; e enquanto houver dependência, não se pode pensar na possibilidade de o indivíduo desligar-se do coletivo e encontrar por si mesmo a Verdade, ou descobrir qual é a coisa correta que cumpre fazer.

Assim, se observardes, vereis que estamos sempre procurando alguém que nos indique o que devemos fazer. Vendo-nos confusos, dirigimo-nos a outro, em busca de conselho. O resultado é que estamos sempre a seguir e, portanto, psicologicamente, instaurando a autoridade, a qual, invariavelmente, cega-nos o pensar, impedindo-nos a tão essencial ação criadora. Exteriormente, nesta nossa sociedade de competição, aquisição, temos de ser ambiciosos, cruéis, para não sermos expulsos ou exterminados. Interiormente, isto é, psicologicamente, somos também ambiciosos; aí também está o desejo de atingirmos uma certa culminância e, assim, vivemos a perseguir um objetivo, de nós mesmos "projetado" ou criado por outro. Percebido esse fato, que se deve fazer? Como descobrir a ação correta?

Positivamente, este problema concerne a todos nós. Vemos que há confusão dentro em nós e ao redor de nós; os velhos valores e crença e dogmas, os guias que temo seguido, não mais nos satisfazem, perderam toda a sua força; e se percebemos esse caos em que nos encontramos, que devemos fazer? Como descobrir qual é a ação correta? Para penetrarmos este problema, temos de perguntar a nós mesmos o que entendemos por "busca", não achais? Todos dizemos que estamos a buscar — pelo menos o dizem os que sentem verdadeiro interesse e empenho; mas antes de prosseguirmos em nossa busca, por certo devemos descobrir o que entendemos por essa palavra e o que é que cada um de nós está a buscar.

Senhores, pode-se encontrar alguma coisa nova, me diante busca? Ou só se pode achar, nessa busca, o que já se conheceu antes e, que foi "projetado" no futuro? Acho muito importante esta questão. Que é que estamos buscando? E pode a mente que está a buscar, encontrar uma coisa que transcende o tempo, que transcende suas próprias projeções? Isto é, digo que estou a buscar a verdade, Deus, a felicidade; mas para achar isso, preciso ser capaz de reconhecê-lo, não é verdade? E para ser capaz de reconhecê-lo, preciso tê-lo experimentado antes. A experiência anterior é indispensável ao reconhecimento e, portanto, se sou capaz de reconhecer uma coisa, ela já existia em minha mente e, por conseguinte, não pode ser a Verdade; é apenas uma "projeção", uma coisa saída de mim mesmo. Todavia, é isso o que está fazendo a maioria de nós. Quando buscamos, estamos a demandar uma coisa já experimentada pela mente e que ela quer de novo agarrar; por conseguinte, o que verdadeiramente nos interessa é a permanência de uma experiência que nos deu prazer, que nos deleitou. Enquanto a mente estiver buscando, é bem evidente que não poderá descobrir o que é a Verdade. Só quando já não está a buscar — e isso não significa tornar-se embotada, distraída — e compreende a totalidade do "mecanismo" da busca, é só então que se encontra a possibilidade de descobrir algo que não foi "projetado", que não é cálculo da mente.

Por exemplo, ledes no Gita ou no Upanishads a descrição de uma certa coisa que é permanente, de uma perene bem-aventurança, ou o que quer que seja; e porque esta nossa vida é transitória, porque o vosso pensar, as vossas atividades, as vossas relações se acham num estado de confusão, transtornando-vos, tornando-vos infelizes, começais a aspirar àquele outro estado, a cujo respeito lestes. É isso o que estais buscando. Na busca desse estado, estais cultivando a aceitação da autoridade, pondo-vos na dependência de alguém que promete levar-vos àquilo que ambicionais. Por conseguinte, vos tornastes um seguidor; e enquanto um homem está seguindo, é parte integrante do coletivo, da massa. Já reconhecestes, já fixastes na mente uma imagem daquele outro estado e agora o estais buscando, apoiado num guru, na meditação, na prática de várias disciplinas, etc. O que estais realmente buscando é uma coisa que já conheceis, ou que vos ensinaram, um estado a cujo respeito lestes alguma coisa ou que vagamente experimentastes; a vossa busca, pois, visa à continuação de uma experiência aprazível ou ao descobrimento de um estado deleitável que, esperançosamente, supondes existir. Não é exato isso? Eu vos digo que esta busca nunca vos revelará o desconhecido; ela, portanto, tem de cessar.

Por favor, escutai com um pouco de atenção o que estou dizendo. Nossa vida, como a vivemos atualmente, é contraditória, superficial, vazia, e nos vemos muito confusos. Andamos de um guru para outro, de um livro para outro; ao redor de nós se movimentam os especialistas disso que chamamos espiritualidade, cada um deles a oferecer um método especial de meditação, de disciplina; e vemo-nos obrigados a escolher o que é "correto" fazer. Mas, onde há escolha, há sempre confusão; e eu acho que, antes de começarmos a escolher, a buscar, é absolutamente necessário descubramos por nós mesmos o que é liberdade. Porque só a mente livre é capaz de investigar, e não a mente que está aprisionada na tradição, que está condicionada, influenciada; nem aquela que busca um resultado; nem aquela que está toda entregue à atividade, no presente, em relação com um futuro "projetado".

Ora, por certo, precisamos descobrir por nós mesmos o significado pleno da liberdade, não como alvo, não como fim — descobri-lo imediatamente. Que significa, para todos nós, liberdade? Enquanto a mente estiver condicionada pela sociedade, pelo meio cultural, enquanto levar a carga de sua solidão, de seu vazio, não será livre. Pode, pois, a mente conservar-se plenamente apercebida das influências existentes fora e dentro dela própria, que a estão obrigando a pensar numa certa direção e tornando-a, assim, incapaz de pensar corretamente? Enquanto existir qualquer pressão a influenciar o pensamento, este nunca será correto. E pode a mente eliminar inteiramente tal pressão? Isto é, pode a mente ficar livre de qualquer "motivo", qualquer impulso a ser isto ou aquilo? Podemos não estar apercebidos da pressão que está influenciando o nosso pensar, da coerção do medo, do motivo, do dogma, da crença; mas tudo isso lá está. Ora, podemos tornar-nos plenamente apercebidos dessas influências, para permitirmos à nossa mente pensar harmoniosamente, corretamente, por si mesma? Este é sem dúvida um dos nossos maiores problemas, não achais? Temos a possibilidade de descobrir quais são as pressões exteriores e as existentes na própria mente, que nos estão levando a pensar e a agir num certo sentido? Consideremos o problema de maneira diferente.

Vós viveis aqui, em Bombaim. Deveis tomar o partido da Maharashtra ou do Gularat? A que Estado Bombaim deve pertencer? Vejo-vos a endireitar-vos em vossas cadeiras, mostrando muito interesse por este assunto, não é verdade? (risos) Isso é muito surpreendente. Ora, que vos cumpre fazer? Se disserdes: "Como cidadão tenho o dever de escolher" e passardes a agir como Maharastriano ou Gujarathiano, tal ação necessariamente irá produzir mais desgraças. Mas se, ao contrário, não agirdes como Maharastriano nem como Gujarathiano, porém como ente humano que não se deixa envolver em tais movimentos — com sua inerente estupidez, seus estreitos preconceitos, seu apego à casta, e demais contra-sensos — então, de toda evidência, vossa ação será totalmente diferente.

Cumpre-nos, pois, investigar quais são as pressões, os "motivos" que nos estão impelindo a agir desta ou daquela maneira; porque, a menos que compreendamos tais influências e delas nos libertemos, a nossa ação levará, invariavelmente, à confusão e a sofrimentos piores ainda. Eis a razão por que é tão importante possuir autoconhecimento, que consiste em compreender o fundo, o condicionamento da mente, e dele libertar-se a todos os momentos. Deveis saber que, quando estamos interessados apenas na ação imediata, somos por ela arrastados, sem termos investigado o problema do condicionamento, de como a mente foi moldada para ser hinduísta, cristã, etc. E, a menos que a mente se liberte a cada momento de seu condicionamento, toda ação que empreender há de ser desintegradora e produtiva de mais caos. O que interessa, portanto, não é escolhermos tal ou qual norma de ação, mas, sim, compreendermos como a mente está condicionada. Porque, do libertar da mente de seu condicionamento resulta uma ação sã, racional, inteligente.

O importante, por conseguinte, é descobrirmos, por nós mesmos, o que cada um de nós está a buscar e se o que buscamos tem valia ou se representa apenas uma fuga. É de toda necessidade possuir o autoconhecimento — conhecer a si mesmo, não como Atman, etc., porém saber, cada um, o que ele próprio é, de dia em dia; e isso significa observar o seu próprio modo de pensar, as influências que lhe servem de base ao pensar, e estar apercebido dos movimentos conscientes e inconscientes da mente. Então, a mente é capaz de tornar-se muito tranquila; e só nessa tranquilidade é possível acontecer algo real.

Krishnamurti, Quarta Conferência em Bombaim
14 de março de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana


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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill