A criadora libertação
da mente verdadeira
da mente verdadeira
Nas últimas quatro vezes em que aqui nos reunimos, estive falando sobre quanto é importante para o indivíduo libertar-se das numerosas influências sociais, culturais e religiosas, porque é só então que se torna possível a criadora libertação da mente verdadeira. Parece-me importantíssimo compreender a qualidade da mente, para que possa surgir a mente verdadeira. Em geral não nos interessa dar existência à mente verdadeira, mas, tão só, o que se deve fazer; a ação se tornou muito mais importante do que a qualidade da mente. A ação, para mim, é coisa secundária. Se se me permite dizê-lo, a ação não tem importância nenhuma. Porque, quando existe a mente verdadeira, a mente criadoramente "explosiva", então, dessa "explosividade" criadora resulta a ação correta. A frase correta não é "agir é existir", porém "existir é agir".
Para a maioria de nós a ação parece de vital importância e é por isso que a ela nos entregamos inteiramente; mas o problema não é a ação, embora o pareça. Muito importa à maioria de nós o como viver, o que fazer em certas circunstâncias, que partido tomar na política, etc. Se observardes, vereis que, geralmente, a nossa busca visa à maneira correta de agir e, por essa razão, existe ansiedade, sede de saber, a busca do guru. Indagamos, porque desejamos saber o que se deve fazer; e quer-me parecer que uma tal maneira de considerar a vida deverá conduzir, inevitavelmente, a muitos sofrimentos e angústias, a contradições não só interiores mas também na esfera social, contradições que invariavelmente acarretam frustrações. Para mim, a ação é a consequência inevitável do existir. Isto é, o próprio estado de atenção representa um ato de humildade. Se a mente é capaz de prestar atenção, essa própria atenção dá existência à mente verdadeira, da qual pode nascer a ação. Mas se, ao contrário, não existe a mente verdadeira, não existe essa extraordinária, impetuosa qualidade criadora, a mera busca da ação leva à vulgaridade, à superficialidade do coração e da mente.
Não sei se já notastes quanto vivemos ocupados em relação ao que se deve fazer, e provavelmente nunca tivemos uma mente de qualidade tal que perceba de pronto a totalidade. A própria percepção da totalidade, em si, representa ação, e acho importante compreender isto, porque nossa civilização nos tornou muito superficiais. Somos imitadores, tradicionalmente limitados, incapazes de uma visão ampla e profunda, porque os nossos olhos foram cegados pela ação imediata e seus resultados. Observai vossa própria mente, para verdes quanto vos importa o que se deve fazer; e esta constante ocupação da mente em relação ao que fazer pode levar a um pensar muito superficial. Mas se, ao contrário, a mente se interessa pelo percebimento do todo — não em como perceber o todo, que método empregar, para tal, — o que, mais uma vez, significa enredar-se na ação imediata — vereis que dessa intenção resulta ação, e não por outro meio.
Em que é que está interessada a maioria de nós atualmente? Na violência e na não violência, no adquirir um pouco de virtude, na casta ou nação a que pertencemos, na existência ou inexistência de Deus, na espécie de meditação que se deve praticar, etc. — e tudo isso é de limitado valor, insignificante. A mente, pois, se perde no meio de pequenas coisas; mas isso não significa que não se deva investigar o que é meditação. Descobrir o que é meditação é coisa inteiramente diversa. Mas a mente se mostra muito interessada no sistema de meditação que deve usar para chegar a seus fins, e essa preocupação a respeito de um sistema torna a mente inferior, superficial, vazia — sendo isso o que está acontecendo à maioria de nós. Repetimos o que diz o Gita, a Bíblia, ou Alcorão ou certos livros budistas, ou citamos Lenine ou Marx, e pensamos ter resolvido todas as questões. Mas, parece-me, o mais importante é dar existência à mente verdadeira, àquela extraordinária qualidade mental que apreende instantaneamente a totalidade do sentir, a totalidade do ser; e penso que essa mente verdadeira não poderá existir enquanto houver esforço. Enquanto o indivíduo estiver a lutar numa dada direção, a esforçar-se para ser ou não ser isto ou aquilo, a mente verdadeira, a mente que é capaz de perceber a totalidade, não pode existir. Só a mente que se liberta do esforço, da luta, pode compreender a totalidade do ser.
Por que fazemos esforço? Peço-vos atenção, porque esta é uma grave questão; pensemos nela profundamente, juntos. O esforço é evidentemente necessário, num certo nível de nossa existência — o esforço para adquirir conhecimentos, na escola, o esforço para aprender uma técnica, etc. Mas, por que razão a mente faz esforço para ser algo, ser não violenta, ser pacífica? Não é porque, reconhecendo-se violenta, ávida, estúpida, a mente deseja transformar tal estado noutra coisa? O desejo de passar de o que é para o que deveria ser, provoca um processo de esforço, não é verdade? Sou ignorante, e preciso adquirir conhecimentos; sou invejoso, e devo tornar-me não-invejoso. E, assim, o desejo de ser não-invejoso gera o esforço, a luta para ser algo. Para mim, esse esforço, em que quase todas as pessoas se acham empenhadas é o fator deteriorador. Como disse, o próprio ato de escutar é humildade; mas nós não escutamos. Perguntamos para nós mesmos: "Que está ele dizendo? Que me sucederá, se nenhum esforço fizer para ser algo? Como viverei? Como obter emprego ou ser promovido? A vida toda, como a conhecemos, é só de luta, de esforço, de incitamento, de compulsão; estamos habituados a esse ritmo, esse modo de pensar, e por isso nunca escutamos. Escutamos o que se diz, opondo-lhe nossas próprias opiniões.
Mas, podemos afastar de nós tudo isso e ficar, tão somente, escutando? Quando estamos somente escutando, que acontece? Esse próprio ato de escutar é humildade. Nenhum esforço se fez, a mente nada fez para se tornar humilde; ela é humilde e, portanto, capaz de escutar. Entendeis? Porque desejo compreender o que outro diz, não lhe oponho minha opinião, minhas objeções, meus argumentos; tudo isso é posto de parte, para escutar o que se está dizendo. Esse próprio escutar é humildade; a mente é humilde, nesse próprio ato; por conseguinte, não há esforço para se ser humilde. A mente arrogante não pode escutar. A mente que está repleta de conhecimentos, de argumentos, a mente que adquiriu, que experimentou — essa mente é incapaz de escutar, porque está cheia de vaidade, de presunção. O problema, por conseguinte, não é de saber como libertar-nos da presunção mas, sim, se a mente é capaz de escutar. Quando é capaz de escutar, a mente se acha num estado de humildade e é, então, capaz de percepção total, do que resulta ação. Mas, que é que nos importa agora? A maioria de nós importa acumular um pouco de virtude, um pouco de saber e multiplicá-lo, torná-lo cada vez maior e mais amplo. Mas isso é ainda um processo aditivo. Temos conhecimento, sabemos o que diz o Gita, o que diz o nosso guru, mas a mente verdadeira não existe; por isso nossa mente é incapaz de perceber, de compreender o todo, libertada desta luta interminável.
Parece-me, portanto, que o principal fator da deterioração da mente, é esta luta para ser algo. Afinal de contas, quando o indivíduo deseja ser alguma coisa, quando tem um alvo, um fim em vista, luta para atingir esse fim e sua vida é toda moldada por ele; por conseguinte, à sua mente não interessa sua própria realidade e profundeza, mas tão só o resultado de seus esforços.
Refleti sobre isso, para verdes como somos estéreis, não-criadores, por este mundo afora. Somos apenas imitadores, moldados pelo padrão da sociedade, pelos planos de uma determinada cultura; e pode a mente, em tais condições, ser criadoramente "explosiva"? Naturalmente, não pode. Entretanto, o que mais importa a todos nós é o que cumpre fazer. Há miséria no mundo, angústias, sofrimentos, tanto interior como exteriormente, e o que nos interessa é apenas saber como pôr fim a tudo isso. E, assim, a mente se deixa enredar no "como" — a solução, a explicação: como encontrar Deus, como meditar, se há ou não continuidade depois da morte, qual a ação correta, quem é o guru verdadeiro, qual o livro verdadeiro, etc.. É só isso que vos interessa, a todos, não é verdade? Não vos interessa a qualidade da mente mas, tão só, os muitos "comos", que evidentemente tornam a mente superficial. Podeis ter o melhor dos gurus, ler todos os livros sagrados, ser extremamente virtuoso; mas se não possuís essa qualidade criadoramente impetuosa da mente verdadeira, vossa virtude se torna muito superficial, respeitável e, portanto, sem valia, porque a virtude não é um fim em si.
Parece-me, pois, que o importante é que se investigue, deveras, a qualidade da mente verdadeira, que é uma mente não imitadora, não mera seguidora, mas, sim; verdadeiramente, "explosivamente" criadora; porque, sem essa qualidade, que valor tem vossa virtude, vosso saber, vossa busca da verdade? E pode a mente superficial, medíocre, a mente que foi educada apenas para se ajustar à sociedade, a mente derrotada, alquebrada, sofredora — pode essa mente encontrar aquela qualidade "explosivamente" criadora?
Senhores, em primeiro lugar devemos reconhecer que nossa mente é superficial, vazia; podemos enchê-la de palavras, do saber dos livros, porém ela continuará vazia. E pode uma mente inferior, superficial, pôr termo à sua inferioridade, sua superficialidade? Pode fazer-se vasta, profunda? Ora, ao fazerdes esta pergunta, com que intenção a fazeis? É com o fim de alcançar um resultado, encontrar um método? Ou o perguntais, simplesmente, assim como o jardineiro que planta uma semente, e a irriga, e a deixa medrar? Não sei se estou esclarecendo bem a questão. Para mim, o explicar porque a mente e inferior, nenhuma importância tem; o importante é que a mente descubra porque faz esta pergunta.
Ao reconhecer que está vazia, que faz a mente? Trata de adquirir mais conhecimentos, esforça-se para encher-se, enriquecer-se. Sentindo-se superficial, a mente quer ser profunda, e surge então o problema de como se tornar profunda; e, assim, começa a mente a praticar um método que lhe promete o que ela deseja, ficando, pois, aprisionada no método. Esse mecanismo, para mim, é totalmente errôneo, extremamente destrutivo, porquanto leva a uma superficialidade, a um vazio, piores ainda. A mente que está aprisionada num método, continua a ser inferior, porquanto só está cuidando de seu próprio enriquecimento e não compreendeu a si mesma. Mas se, ao contrário, a mente reconhecer que é superficial, sem buscar nenhuma explicação ou resposta, põe-se então em movimento um "processo" completamente diferente. Como disse, esse processo é semelhante à ação do jardineiro que planta uma semente e á irriga. Se a água e o solo forem bons e a semente tiver vitalidade, ela brotará. De modo idêntico, se a mente perguntar a si mesma por que razão é superficial e não buscar nenhuma resposta nem procurar meios e modos de enriquecer-se, então, a própria pergunta provoca uma explosão. Vereis, então, surgir um estado todo diferente, em que a mente já não luta para realizar, acumular; e essa mente não conhece deterioração.
Atualmente, a nossa mente está a deteriorar-se e, por certo, o que mais importa é pôr fim a essa deterioração. Isso não pode ser feito pela mera investigação da causa da deterioração, e pela sua explicação. Mas se estivermos apercebidos dessa deterioração interior e, sem procurarmos uma solução, perguntarmos a nós mesmos por que motivo ela existe, então essa própria pergunta é um ato de escutar. Para escutar, requer-se humildade, e a humildade purifica a mente do passado; a mente fica, então, nova, purificada, tornando-se, portanto, capaz de perceber a totalidade, o todo. Só essa mente pode implantar a ordem e criar uma nova sociedade com valores de todo diferentes dos atualmente existentes.
Krishnamurti, Quinta Conferência em Bombaim
18 de março de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana