Existe uma energia que é incorruptível?
[...]A mente recebe energia da resistência, do conflito, da contradição. Todos nós conhecemos essa forma de energia. Mas há uma energia que se manifesta quando não há conflito de espécie alguma e que, por conseguinte, é incorruptível. Vou explicar isso. Por “mente”, entendo a totalidade da consciência, e ainda mais. O cérebro é uma coisa, e a mente outra coisa. O cérebro, que é resultado do tempo, que é sensação, que tem conhecimento acumulado através de séculos de experiência — esse cérebro é condicionado, assim como também é condicionada a consciência total. Estas palavras, “consciência” e “condicionamento” são muito simples. É o que sois; a mente educada, a mente inconsciente, a mente acumulada, a consciência acumulada do tempo — tudo isso sois vós. O que pensais, o que sentis, quando vos denominais hinduísta, quando vos denominais muçulmano, cristão, isto ou aquilo — toda essa vossa “história pessoal” constitui a consciência total. Se pensais ser o Supremo-Ser, o Atman por excelência, ou o que mais seja — isso está ainda dentro da esfera da consciência, dentro da esfera do pensamento. E o pensamento é condicionado.
Agora, nesse estado de condicionamento, de resistência à vida, vós gerais energia. Quanto maior a resistência maior o conflito e maior a energia que tendes; e essa energia é de natureza a mais destrutiva. É isso o que está realmente sucedendo no mundo. Essa energia se dissipa. Ela é sempre corruptora. Requer estímulo constante, necessita sempre de uma certa forma de apego, de onde lhe venha poder, força, expansão. Prestai atenção a tudo isso, por favor. Ao reconhecerdes esse fato, ao verdes esse fato — isto é, que nossa energia nasce da resistência — e quando tiverdes compreendido toda a “história” de vossa contradição interior, então, desse percebimento do fato nasce uma energia de espécie diferente.
A energia a que me refiro não é a energia pregada pela religião; não é a energia do bramachari, do celibatário que rejeita o sexo porque aspira à “suprema experiência”. Porque todo esse processo de viver — a vida do sannyasi, a vida do monge — é uma forma de resistência; e isso, de fato, vos dá energia — uma energia bem limitada, estreita, destrutiva; é o que nos oferece a maioria das religiões. Mas nós nos estamos referindo a uma energia de qualidade totalmente diversa. Essa energia nasce da liberdade, e não da resistência, não da renúncia, não de atividades e discussões no nível das ideias.
Se compreendestes tudo o que estive dizendo, e enfrentardes esses fatos, daí virá, por certo, uma energia incorruptível — porque essa energia é paixão. Não a paixão do sexo, de vossa identificação com a pátria, com uma ideia, pois tal paixão é destrutiva; ela também vos dá uma certa espécie de energia. Já não notastes que as pessoas, que se identificaram com sua nação, seu país, seu emprego, têm uma peculiar energia? Assim também a maioria dos políticos, dos chamados “missionários”, de todos os que se identificaram com uma ideia, uma crença, um dogma, como os comunistas — são dotados de uma peculiar energia, que é altamente destrutiva? Mas a energia criadora no mais alto grau, essa não tem identificação; ela vem com a liberdade; essa energia é criação.
O homem, através das idades, tem buscado Deus, tem-no negado ou aceitado. Tem-no negado, como o fazem aqueles que são educados como ateístas ou comunistas; e tem-no aceito, como vós hinduístas o fazeis, por terdes sido educados na crença. Mas não sois mais religiosos do que o homem educado na descrença. Sois todos mais ou menos iguais. A vós convém crer em Deus, a eles não convém. É tudo questão de educação, de influência do ambiente ou cultural. Mas o homem tem estado empenhado nesta busca através de séculos. Há algo imenso, não mensurável pelo homem, não compreensível pela mente que está toda entregue à resistência, à ambição, à inveja, à avidez. Essa mente não pode compreender aquela energia criadora.
Existe essa energia que é incorruptível. Ela pode viver e atuar neste mundo. Pode operar diariamente em vossos escritórios, em vossas famílias — porque essa energia é amor; não o amor de vossa mulher e de vossos filhos, que, em absoluto, não é amor. Aquela criação, aquela energia é destrutiva. Vede o que fizestes para descobrir essa energia! Tudo destruístes em torno de vós, psicologicamente; interior mente, deitastes abaixo tudo o que a sociedade, a religião, os políticos edificaram.
Essa energia, pois, é morte. A morte é totalmente destrutiva. Essa energia é amor, e o amor, por consequência, é destrutivo, e não aquela coisa mansa de que é constituída a família, não aquela coisa mansa que as religiões têm nutrido. Assim, aquela energia é criação — não o poema que escreveis, não a estátua que esculpis no mármore; isso é apenas uma capacidade e um talento para expressar algo que se sente. Mas a coisa a que nos referimos transcende o sentimento, transcende o pensamento. A mente que, no sentido psicológico, não se liberta de todo da sociedade — sendo a sociedade: ambição, inveja, avidez, aquisição, poder — essa mente, o que quer que faça, nunca a achará. E nós temos de achá-la, porque ela é a única salvação do homem, porque só nela há ação real; e ela própria, quando atua, é ação.
Krishnamurti, Nova Déli, 14 de fevereiro de 1962, A mutação Interior