É possível morrer para o conhecido?
[...] Há a morte — um fato inegável. Vós a vedes todos os dias. Em toda casa ela entra. Todo ser humano a conhece. Ela é um fim — absoluto, definitivo, irrevogável. Podeis tecer uma porção de teorias em torno dela — dizer que há continuidade, que há o “além”, que há uma vida futura, etc. etc. Mas o fato é um fato. Se compreendeis o fato, descobrireis o que há além. Mas, se não compreendeis o fato, se não enfrentais o fato, não podeis passar além. O fato é que há a morte; e contra esse fato não há argumentos. Não podeis argumentar com a morte. Não podeis dizer-lhe “vem amanhã”. Que é, pois, morrer? Há, decerto, um morrer fisiológico, em que o corpo se acaba. A morte virá, inevitavelmente, para o corpo, porque o corpo é uma máquina, um organismo que se gasta pelo mau uso que dele se faz pelo conflito, por pressões, lutas, pela alimentação inadequada, etc.; assim, todo esse processo chega a seu fim. Podemo-lo admitir muito fácil e prontamente. Mas isso é tudo?
Em vivi, lutei, adquiri experiência, tornei-me muito poderoso — para que? Se eu morrer, tudo isso desaparecerá ou terá continuidade? Como descobri-lo? Compreendeis, senhores? Não me estais escutando, para receberdes novas ideias. Não vos estou fornecendo argumentos, não estou refutando o que credes e oferecendo, como substituto, minha crença particular. Nesta matéria, não tenho crença alguma; só tenho fatos. Desejo saber o que é a morte, e não poderei sabê-lo se não sei morrer. Fisicamente, vosso corpo tem continuidade — como sabeis — até chegardes ao fim, até a máquina morrer.
Ora, é possível morrer psicologicamente? Sabeis o que significa morrer, findar? Entendeis minha pergunta? Faço-a com clareza? Vede, senhores, há a morte, algo que não conheceis. E aquilo que desconheceis, temeis. Pelo menos pensais que temeis aquilo que desconheceis. Não é verdade? Como podeis ter medo de uma coisa que desconheceis? Tendes medo é de perder algo que já conheceis. Esta a causa real do medo; o medo não é ao desconhecido. Temeis perder algo que acumulastes. Temeis perder o conhecido, e não o desconhecido.
Ora, pode-se morrer para o desconhecido? Podeis morrer para a lembrança de ontem, para todas as vossas realizações, para todas às coisas que tendes acumulado? Podeis morrer livre e facilmente, e ditosamente, para as coisas que vos são caras? Podeis amar vossa família — mas eu tenho minhas dúvidas a esse respeito; se amásseis verdadeiramente vossa família, a atual sociedade não seria tão corrupta. Podeis morrer para vosso prazer, para vossas vaidades, ambições, para vossa avidez — imediatamente? Pois é isso que irá acontecer ao morrerdes. Morrer para ontem, morrer para cada minuto, morrer para todas as coisas acumuladas — isso é morte. Quer dizer, podeis viver sempre num estado de “não saber” e, por conseguinte, sempre jovem, novo, “inocente”? A morte é uma coisa extraordinária. A morte é o desconhecido. Não podeis chegar-vos a ela com o conhecido; não podeis chegar-vos a ela com todas as vossas cargas. A morte vos despojará de tudo — de vossa família, vossos filhos, vosso caráter, vossas ambições. Porque, então, vós mesmo não vos despojais de tudo isso agora? Quando o fizerdes, sabereis o que significa a morte. E eu vos garanto que, quando o souberdes, conhecereis uma grande beleza. Sabereis então o que é o amor, porque a morte, o amor e a beleza, andam sempre juntos. Essa coisa que chamamos amor não é o amor; é mera memória. O que amais é o vosso interesse pessoal. Vossa família é a continuidade de vós mesmo; vossa família é vossa pertença. E, bem o sabeis, quando morreis, acabou-se a família; nada mais existe.
Assim, é possível morrer para tudo o que conheceis? Isto não significa aniquilamento; não significa negação; não significa “nada ser”. Há uma imensidade, uma vastidão, algo que ultrapassa todas as palavras, quando sabeis negar todas as bases, negar tudo o que tendes conhecido. Morrer assim, para tudo o que conheceis, a cada momento, significa nunca recolher, nunca acumular e, por conseguinte, jamais ter o conflito da separação.
A morte é o estado em que a mente perdeu o reconhecimento de si própria e das fronteiras do tempo. Onde há continuidade de pensamento — que é o que em geral desejamos, que é tudo o que sabemos — nasce sofrimento, ansiedade, sentimento de culpa e todas as agitações da vida; o pensamento tem sua peculiar continuidade, mas o pensamento está limitado pelo tempo. Quando o pensamento morre para si próprio, quando o mecanismo da memória, como pensamento, termina — falo do pensamento psicológico e não do pensamento mecânico do conhecimento — vereis então que a coisa que temeis não existe. Cessa inteiramente o medo. Estais então vivendo completamente, integralmente, totalmente, momento por momento; e isso é criação.
Para nós, a beleza é uma coisa construída pela mente. Para nós, beleza é a mulher ou o homem, é assistência social, é um edifício, um quadro, uma peça de cerâmica, ou uma ideia. Mas há uma beleza que transcende o pensamento e o sentimento, que não é construída pela mente. E essa beleza é o amor. Sem esse amor, a vida se torna inteiramente vazia — como o é a vida da maioria das pessoas; embora tenham famílias, embora tenham virtudes, embora tenham empregos, sua vida é vulgar, superficial, vazia.
Mas, quando tiverdes morrido para tudo, psicologicamente, quando tiverdes alcançado esse ponto, vereis que do morrer surge um viver — um viver que não tem significação, comparado com o presente viver. Esse viver é o estado de criação, e essa criação não conhece o tempo. É o imenso, o imensurável, o incognoscível. E só a mente que morreu para si própria e para todas as coisas conhecidas conhecerá o Incognoscível.
Krishnamurti, Nova Déli, 11 de fevereiro de 1962, A mutação Interior