Sobre a solidão e a vontade de Deus
A maioria de nós nos sentimos sós, e sabemos o que esta palavra significa. Sabemos — ou pelo menos pensamos saber — o que é esse estado de solidão. Nós o reconhecemos por meio da palavra? E se não existisse a palavra, quando tivéssemos um certo sentimento poderíamos reconhecê-lo como “solidão”? Em geral, somos tão escravos das palavras que não temos capacidade de olhar o fato.
Há um estado de solidão; e podeis olhar esse estado sem a palavra?[...]
Senhor, o “dar nome”, o verbalizar, é um processo muito complexo. Quando compreendeis que a palavra não é a coisa, estais então em contato com a coisa, não por meio da palavra, mas direta e vitalmente. E que acontece então?[...]
Enquanto passardes pelo mecanismo de reconhecimento, que é olhar para a coisa nova traduzindo-a nos termos do que antes existiu, é inevitável o conflito; por conseguinte, não há renovação, não há nada novo. Isso é um fato psicológico. Se penetrardes fundo em vós mesmo, vereis tudo isso num clarão; não precisais escutar a mim ou a outro qualquer. Ao lançardes fora a carga das palavras, ao vos libertardes de toda essa estrutura de símbolos, ideias, para olhardes diretamente a coisa em si, encontrareis rejuvenescimento, frescor; algo totalmente novo acontece.
Mas vede quanto é difícil a um cristão abandonar o símbolo da Cruz, ou a vós abandonar a palavra “inglês”. E deveis abandonar o símbolo, deveis libertar-vos da palavra. Deveis libertar-vos da palavra “Deus”, a fim de descobrirdes o que realmente é.
[...]O “dar nome”, que implica todo o mecanismo de acumulação de conhecimento, é realmente pernicioso. Isso não significa que não devais ter o conhecimento mecânico — porque, do contrário, não saberíeis aonde ir, daqui a um minuto. O conhecimento ou a experiência se torna prejudicial quando só há reconhecimento nessa base. Só quando cessa o mecanismo de reconhecimento, há observação; e dessa observação resulta um movimento vital.
[...] Tememos o vazio e desejamos preenchê-lo. Temos medo de nossa esgotante solidão, e procuramos fugir dela. É o fugir que gera o medo; mas o fugir nos põe ativos e, por isso, quando fugimos, pensamos que estamos sendo muito positivos. Quando tiverdes compreendido essa solidão, depois de atravessá-la e ultrapassá-la, descobrireis por vós mesmo o que há quando o “eu” já não existe. Mas, como em tudo mais, senhor, deveis começar pelo vazio. A taça só é útil quando vazia. Mas, para compreender esse vazio, é preciso atravessá-lo num clarão, por assim dizer, e lançar a base correta. Então, vós sabereis; nunca mais perguntareis o que há além daquele vazio.
[...] A taça só pode ser útil quando vazia. Podeis então enchê-la com o de que gostais. Mas, se vossa taça já está cheia — cheia de sofrimento, aflição, conflito — que utilidade tem ela? Senhor, que utilidade tem nossa vida, tal como é: competição, guerras, conflitos internacionais, divisão entre Oriente e Ocidente, entre esta e aquela religião? Que utilidade tem isso?
[...] Todo político, todo negociante, todo general preparador de guerras, fala sobre “a vontade de Deus”. O comunista também fala da “vontade de Deus”, mas no seu caso se trata da “vontade do Estado”, etc., etc.. Que é “a vontade de Deus”? Só podereis averiguar isso quando estiverdes vazio, quando já não estiverdes buscando, já não estiverdes pedindo, quando já não pertencerdes a nenhum grupo separado, quando já não tiverdes medo, quando vos achardes num estado de completa incerteza — que não significa demência. Nesse estado, o pensamento já não busca um pouso seguro. Então, talvez, aquilo que se pode chamar “Deus” — ou outro nome qualquer — começará a atuar.
Krishnamurti, Londres, 14 de junho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito