No “estar só” não existe medo
Estivemos falando a respeito da mente nova, e estou certo de que ela não pode ser produzida pela vontade, em qualquer forma que seja, nem por qualquer desejo, intenção, ou pensamento deliberado. Mas parece-me que, se pudermos compreender os vários fatores que impedem o nascimento desse estado, talvez possamos, então, descobrir por nós mesmos a natureza da mente nova. Desejo, pois, apreciar junto convosco uma questão que poderá ser um tanto complicada, mas espero que possamos examiná-la a pleno e, se necessário, prosseguiremos nisso da próxima vez.
Não sei se já perguntastes a vós mesmos porque existe esse impulso inelutável a aderir a uma dada escola de pensamento, pertencer a alguma coisa, identificar-se com uma ideia, adotar um dado sistema de ação. Uma pessoa adere, digamos, ao comunismo, identificando-se completamente com seus ideais, suas atividades. Pode-se ver porque assim procede: porque tem esperanças numa utopia final etc. etc. Mas esta me parece apenas uma explicação superficial. Penso existe uma razão psicológica muito mais profunda pela qual cada um de nós deseja pertencer a alguma coisa — uma pessoa, um grupo, certas ideias e ideais. E talvez seja possível examinarmos a natureza intrínseca desse impulso. Que é ele, precisamente?
Penso que, em primeiro lugar, está o desejo de agir. Desejamos promover uma certa espécie de reforma, transformar o mundo de acordo com um certo padrão. Existe o sentimento de que devemos fazer alguma coisa juntos, que há necessidade de ação cooperativa. E, em certos níveis — melhoramento das estradas, promoção de melhores condições sanitárias etc. — talvez seja necessário aderirmos a uma certa ideia. Mas, se investigamos com mais profundeza, começaremos a descobrir que existe esse impulso a nos identificarmos com uma certa coisa porque aspiramos a um sentimento de segurança, de garantia.
Todos conhecemos muitas pessoas que se filiam a determinado partido político, ou determinado sistema de ação, ou certo grupo de pensamento religioso. Passado certo tempo, essas pessoas começam a descobrir que a causa que abraçaram não lhes convém e, assim, a abandonam e passam-se para outra.
Acho importante averiguar porque existe esse impulso. Porque é que aderimos a uma coisa ou pessoa? Se investigarmos isso, abriremos a porta do problema do medo.
A mente, por certo, está sempre em busca da segurança, da permanência. Busca a permanência nas relações com a esposa, o marido, os filhos, uma ideia, no conhecimento e na experiência. E quanto mais experiência temos, quanto mais conhecimento acumulamos, maior se torna o sentimento de segurança. E permita-se-me dizer agora que ouvir as palavras que estamos dizendo é uma coisa, e coisa muito diferente é experimentar o que estas palavras significam. Estou apenas descrevendo a natureza de nossa mente; e para a pessoa que não está apercebida de seus próprios pensamentos e atividades, essa descrição se torna muito superficial. Mas se, penetrando as palavras, a pessoa começa a compreender a si mesma, percebe que na realidade está em busca de segurança e o que esta busca implica, isso, sem dúvida, tem extraordinário significado. Deixar-se satisfazer apenas com palavras e explicações, como o faz a maioria de nós, parece-me extremamente fútil. Nenhum homem que sente fome se satisfaz com a palavra “comida”.
Assim, podemos examinar esta questão do medo, mas sem interesse no que devemos fazer contra ele? Mais tarde, poderemos tratar deste ponto, ou talvez nem seja isso necessário. Por que surge o medo? E por que está a mente sempre a buscar segurança, não apenas fisicamente, exteriormente, mas também interiormente?
Estamos falando de “exterior” e “ interior”; mas, para mim, há só um movimento, que se expressa ora exteriormente, ora interiormente. É um movimento de vaivém, como o da maré. Não existem coisas tais como mundo exterior e mundo interior, e esta separação dos dois cria divisão, conflito. Mas, para compreender a “maré” interior, o movimento interior, precisamos compreender também o movimento que se dirige para fora. E se estamos apercebidos das coisas externas e não há reação a elas, na forma de resistência, defesa ou fuga, pode-se então ver que o mesmo movimento se torna interior, profundo; mas a mente só poderá segui-lo, se não houver divisão nenhuma.
Se refletimos um pouco a esse respeito, podemos ver que as pessoas ditas religiosas separam o exterior e o interior; a atividade exterior é considerada como muito superficial, desnecessária e mesmo má, e a interior considerada muito significativa. Por isso, há conflito — questão que estivemos examinando, há dias, com certa profundeza. Estamos agora investigando a questão do medo, não só o medo causado pelos eventos exteriores, mas também pelas interiores exigências e compulsões, e pela perpétua busca de certeza. Toda experiência, evidentemente, é uma busca de certeza. Uma experiência de prazer leva-nos a desejar mais prazer, e este mais é o impulso para pôr-nos em segurança em nosso prazer. Se amamos alguém, queremos ter toda a certeza de que esse amor é correspondido, e procuramos firmar um estado de relação que — assim esperamos, pelo menos — seja permanente. Toda a nossa sociedade se baseia nesta qualidade de relações. Mas existe coisa permanente? Existe, de fato? O amor é permanente? Nosso desejo constante é tornar permanentes as sensações, não é verdade? Considere-se a questão da virtude. O cultivo da virtude, o desejo de ser permanentemente virtuoso é, essencialmente, desejo de estar em segurança. E a virtude pode ser permanente? Por favor, senhor, não aceneis apenas com a cabeça, concordando, mas segui isso interiormente, em vós mesmos.
Digamos: uma pessoa sente cólera, ou sente que lhe falta bondade, compaixão, afeição. Pelo cultivo do oposto da cólera, pelo cultivo da tolerância, espera ela produzir um estado de virtude, sendo assim a virtude meramente um “artigo” adequado a nossa conveniência, um meio para um certo fim. Mas a virtude, a bondade, por certo não são cultiváveis, absolutamente. A bondade, tal como a humildade, só pode manifestar-se quando há atenção completa, não visando a nenhum ganho. Considere-se a questão de ser amado ou de amar. É possível a mente ambiciosa amar ou ser amada? O funcionário que deseja tornar-se chefe, o chamado “santo que aspira a realizar Deus”, são ambiciosos, porque estão interessados no próprio aperfeiçoamento; e a mente deles, é óbvio, não pode conhecer o amor. A mente desejosa de compreender a natureza da palavra “amor” deve, sem dúvida, estar totalmente livre daquele desejo de segurança, pois assim nos tornamos essencialmente vulneráveis, sensíveis. É possível, pois, nos tornarmos verdadeiramente livres do medo?
Desejamos ter segurança neste mundo, materialmente, e desejamos estar seguros em nossa respeitabilidade, em nossas ideias; desejamos ser informados sobre o que será de nós após a morte; e podereis observar, se o quiserdes, que nossa mente está sempre e sempre cultivando esse desejo de certeza. Mas não vejo como possa a mente ficar livre do medo e das respectivas frustrações, quando está a buscar segurança. Evidentemente, há necessidade de um certo grau de segurança física: precisamos saber de onde nos virá a próxima refeição, ter um lugar onde dormir, ter roupas, etc. etc.; e qualquer sociedade razoavelmente justa procura prover estas condições. Talvez, dentro de uns cinquenta anos haverá no mundo inteiro uma certa forma de segurança. Oxalá assim seja, mas não é isso que nos interessa neste momento. Nós desejamos segurança tanto em nossas ações como interiormente; e não é esta a causa do medo?
O medo sempre nos acompanha, não é verdade? Medo do escuro, medo dos outros, medo da opinião pública, medo de perdermos a saúde, de perdermos nossas capacidades, medo de não sermos ninguém neste mundo monstruoso, aquisitivo, agressivo; medo de não alcançarmos o objetivo, de não “realizarmos” um estado de suprema felicidade, bem-aventurança, Deus, ou o que quer que seja. E também, naturalmente, há o medo fundamental à morte. Não estamos tratando da morte, por ora, porém apenas tentando ver, descobrir o medo. Sem dúvida, o medo está sempre em relação com alguma coisa. Não existe medo sozinho, per se. Há dúzias de manifestações de medo, todas em relação com alguma coisa. E é possível ficar-se só, completamente? É possível a mente ficar de todo só, sem isolar-se, sem edificar muralhas, torres de marfim, ao redor de si? Á mente está só, quando já não busca segurança. E pode ela libertar-se totalmente do medo?
Note-se que o medo supõe o tempo. Vamos examinar isso. O tempo — ontem, hoje e amanhã — é um fator de medo. Estou envelhecendo e a morte me espera, desde agora e por todos os dias vindouros. E o pensamento relativo à morte e pensamento de medo. Haveria medo à morte, ao fim, se não houvesse pensamento referente ao amanhã, ao futuro? Não concordeis comigo, por favor. Concordar com uma explicação não tem valor. Se examinastes verdadeiramente, diretamente, esta questão do medo, deveis ter encontrado a questão do tempo, que compreende não só o amanhã, mas também o passado, o qual significa — não achais? — experiência. Pode a mente ficar tão só, tão desligada do passado e do futuro, que não esteja encerrada de modo nenhum na esfera do tempo?
A mente busca segurança, identificando-se com uma ideia, crença, determinada norma de ação, pertencendo a um grupo, ao cristianismo, ao hinduísmo, ao budismo, a isto ou àquilo — e tudo isso é o contrário de estar só. Quase todos temos horror a estar sós. A seguir, temos o conflito proveniente da contradição, e a raiz desta contradição é a ânsia de preenchimento. Há, pois, essa ânsia constante de preenchimento, de ser, de “vir a ser” algo permanente; e apresenta-se, assim, a questão do tempo. Eis todos os fatores do medo; e acho que não há necessidade de pormenorizarmos mais.
Ora, depois de vermos a totalidade do quadro, de o sentirmos totalmente, surge a questão: Pode a mente abandonar o medo, de todo? Isso significa, com efeito — se assim podemos dizer sem ser mal compreendidos — pode a mente estar só, não relacionada? Haverá uma solitude que não seja mero oposto do conflito, da contradição criada pelas relações? Eu creio que nesta solitude se encontra o verdadeiro estado de relação, e não na outra. No “estar só” não existe medo. Afinal, há séculos que o homem se ocupa com o problema do medo, e ainda não estamos livres dele. E o medo, em suas formas extremas, leva a diferentes manifestações de neurose, etc. Ora, a questão é se vós e eu, percebendo tudo isso, podemos ficar total e instantaneamente livres do medo — mas não pelo hipnotizar-nos a nós mesmos, dizendo: “Agora estou livre do medo” — porque isso é puro absurdo. O percebimento da totalidade do medo significa, essencialmente, um estado de “não ser”.
APARTE: Parece-me que tenho medo de me ver forçado a viver em certas circunstâncias, como, por exemplo, morar numa grande cidade ou trabalhar numa fábrica onde nada existe que eu possa amar ou considerar valioso.
KRISHNAMURTI: Como procedereis em tal caso, senhor? Digamos que eu tenho de trabalhar da manha à noite num pequeno escritório, aqui em Londres, com um chefe desagradável. A ida diária para o trabalho, de ônibus ou pelo “metrô”, a incessante rotina, o contato constante com pessoas que aborrecem e atormentam — todas essas detestáveis condições... Que devo fazer? As circunstâncias me estão forçando. Tenho responsabilidades: minha mulher, meus filhos, minha mãe etc. Não posso afastar-me, fugir para um mosteiro; e isso seria outra coisa horrorosa: a rotina de erguer-se às duas da madrugada, recitar as mesmas e velhas orações para as mesmas e velhas divindades etc. Neste mundo de rotina, monotonia e sordidez, tudo fazemos para fugir, todos perguntamos: “que posso fazer para livrar-me disso?”
Em primeiro lugar, nós somos educados erroneamente — nunca somos educados para amar aquilo que fazemos. Assim, vendo-nos presos na rede, sem possibilidade de fuga, perguntamos: Que devo fazer? Não é exato, senhores? Fugir para o sentimentalismo, para crenças, igrejas, organizações, ideias utópicas, é evidentemente absurdo. Percebo a futilidade dessa fuga e, portanto, abandono-a. Já não há a tentação de fugir e fico em presença do fato, o fato duro e brutal. Que devo fazer? Dizei-mo, senhores!
APARTE: Por certo, nada podeis fazer.
KRISHNAMURTI: Senhores, já “vivemos com alguma coisa” sem resistência nenhuma? Já “vivi” com minha cólera, sem resistência? — o que não é a mesma coisa que aceitá-la, pois isso significaria apenas a continuação dela. “Viver” com a cólera, conhecer-lhe a natureza íntima; “viver” com a inveja, sem procurar dominá-la, reprimi-la ou transformá-la... já tentastes isto? Já tentastes alguma vez “viver” com algo realmente belo, um quadro, uma bela paisagem, uma montanha majestosa com soberbo panorama? E que acontece se viveis com essa coisa? Depressa vos acostumais com ela, não é verdade? Vendo-a pela primeira vez, ela vos comunica um certo sentimento de desafogo, de percepção, com o qual vos habituais; passados dias, ele se desvanece. Vede os camponeses, em todas as partes do mundo, que vivem rodeados de maravilhosos cenários; acostumaram-se com eles. E a esqualidez das cidades de todo o mundo, a sordidez, a podridão, a fealdade, a crueldade, a tremenda brutalidade... com tudo isso nos acostumamos também. “Viver” com o belo ou com o feio, sem se acostumar — isso requer espantosa energia, não? Não se deixar acabrunhar pelo feio nem embotar pelo belo, e ser capaz de “viver” com ambos, requer extraordinária sensibilidade e energia. E isso é possível? Por favor, senhores, refleti um pouco sobre isso.
O problema da energia é muito complicado. O alimento não dá a energia a que me estou referindo. Dá uma certa qualidade de energia; mas o “viver” com uma coisa, o “viver” com o amor exige energia de qualidade completamente diferente. E como se adquire essa energia que constitui, essencialmente, a natureza da mente nova? Ela se adquire, por certo, quando não existe medo, quando não existe conflito, quando não desejamos ser algo, quando vivemos totalmente, anonimamente.
Mas, que bem se faz falando sobre essas coisas? Elas supõem um extraordinário percebimento da busca de segurança, exterior e interiormente. E os mais de nós já estamos muito cansados, muito velhos, obrigados a viver no passado, em nossa ocupação, ou em alguma escura masmorra de nosso ser. Assim, que fazer?
Voltemos à nossa primeira pergunta. Pode a mente libertar-se, instantaneamente, de toda ânsia e exigência de segurança? Pode-se viver num estado de completa incerteza, sem enlouquecer, no mínimo que seja?
APARTE: Se uma pessoa gosta muito de seu trabalho, também aí há medo?
KRISHNAMURTI: Há, sim, senhor, porque há o risco de perder a capacidade para esse trabalho. A capacidade, senhor, é uma coisa terrível porque nos proporciona um esplêndido meio de fuga. Se um homem é bom pintor, bom orador, se tem a capacidade de coordenar palavras, escrever, se é competente engenheiro, ou possui um talento qualquer, isso lhe dá um extraordinário sentimento de segurança, confiança em si, neste mundo de competição e aquisição. E, se não tem confiança em suas aptidões, sente-se totalmente perdido. Mas, sem dúvida, para encontrar Deus — ou o nome que lhe quiserdes dar — a mente deve estar de todo vazia, não? Deve estar livre do conhecimento, da experiência, da capacidade e, por conseguinte, livre do medo, inteiramente purificada, inocente, fresca, jovem.
APARTE: Isso parece que seria o fim de mim mesmo, tal como me conheço.
KRISHNAMURTI: Sim, senhor, justamente. Não sei se já tentastes viver um dia inteiro tão completamente que não houvesse nem ontem nem amanhã. Isso requer muita compreensão do passado. O passado não é apenas a palavra, a língua, o pensamento, mas também o retrospecto do ontem e suas raízes que se cravam no presente.
Alijar completamente o passado — as iniquidades cometidas, as inverdades proferidas, as ofensas e danos causados — abandonar todos os prazeres, dores e lembranças. Não sei se já tentastes isso, se já tentastes arredar-vos do passado. E ninguém pode arredar-se dele, se há mágoas ou prazeres nas coisas lembradas. Experimentai isso, de quando em quando, não porque vo-lo estou dizendo ou porque espereis daí alguma recompensa ou maravilhosa experiência, pois isso seria mera troca, barganha. Mas para a mente, resultado do tempo, constitui uma coisa deveras extraordinária, estar completamente livre do tempo.
APARTE: O hábito constitui uma parte considerável disso de que estais falando, não?
KRISHNAMURTI: Temos de averiguar isso, não? Não estou aqui apenas para responder a perguntas: estamos investigando. Vemos a mente sempre ocupada. Com a maioria de nós, é isso que se passa. Acha-se a mente ocupada em ensinar, cuidando das crianças, da casa, do emprego; ocupada com suas próprias vaidades e virtudes... sabeis com quantas coisas ela vive ocupada. E ocupação supõe hábito. Ora, porque tem de estar ocupada? Quer ocupada com o sexo, quer com Deus, quer com a virtude — tudo é a mesma coisa. Não há ocupação nobre ou ignóbil. Não é assim? Não sei se percebeis isso realmente. A mera substituição da ocupação não constitui libertação da ocupação. Ora, porque tem a mente de estar ocupada?
APARTE: Isso pode ser um meio de fuga.
KRISHNAMURTI: Sim, senhor, não há dúvida que é um meio de fuga; mas as explicações não nos podem levar muito longe. Ide um pouco mais longe, senhor. Penetrai mais.
APARTE: É por medo, não? Por avidez também, talvez.
KRISHNAMURTI: Podemos prosseguir indefinidamente, adicionando explicações e mais explicações: fuga, medo, avidez. E qual o resultado? Não me estou mostrando intransigente, rude ou indelicado. Mas já demos explicações e, contudo, a mente não ficou livre da ocupação.
APARTE: Porque a mente é ocupação.
KRISHNAMURTI: Dizeis que a mente é ocupação; e isso significa — não é verdade? — que a mente que não está ocupada, que não está ativa, pensando, funcionando, indagando, respondendo, desafiando (pois tudo isso são manifestações da mente) não é mente. Isso é exato? A palavra “porta” não é a porta, e a palavra “mente” não é a mente. A mente “se realiza” na ocupação? Ou existe uma mente que diz: “Estou ocupada”?
Desejo averiguar porque a mente persiste ocupada. Porque dizemos que, se a mente não está ocupada, ativa, buscando, defendendo, nutrindo ansiedades, medo, culpa, não é mente? Se não existem todas essas coisas, não existe mente?
APARTE: Essas coisas são a mente, num certo nível, não constituem a mente total.
KRISHNAMURTI: Ansiedade, culpa, medo, reações — é só isso que conhecemos, não? E que é a totalidade da mente, como a conhecemos? A totalidade da mente, como a conhecemos, são o inconsciente e o consciente. Voltemos um pouco atrás. Por que está ocupada a mente? E que aconteceria se a mente não estivesse ocupada?
APARTE: Se a mente não está ocupada, há atenção profunda.
KRISHNAMURTI: Não digais “se”, que é especulação. Como vedes, não estamos penetrando devidamente a questão.
APARTE: A mente está sempre reagindo a estímulos vários. É esse o processo de “estar ocupada”.
KRISHNAMURTI: Sem dúvida, senhor, sem dúvida nenhuma. Já alguma vez experimentastes ficar sem pensamento algum? Pois todo pensamento é ocupação com uma ou outra coisa.
APARTE: Isso é impossível, porque, se a mente está vazia, nada se pode experimentar.
KRISHNAMURTI: Não, não, senhor! Aqui também não se trata de nenhum “se”; e não empreguei “experimentar” nesse sentido. Nós vivemos enredados nas palavras, já vos aconteceu alguma vez ter cessado o pensamento? Não, “ter terminado um pensamento” porque saístes a seu encontro dispostos a liquidá-lo; não é isso o que quero dizer. Mas, quando há pensamento, há ocupação. O pensamento põe a funcionar o hábito. Já olhastes para uma coisa, sem pensamento? Não me refiro a um estado de vazio, e, sim, a um estado em que estais presente com todo o vosso ser, e plenamente atento. Já olhastes para alguma coisa nesse estado em que não existe pensamento? Já olhastes para uma flor, sem dizerdes o seu nome, sem dizerdes quanto é bela, que linda a sua cor etc.? Sabeis quanto a mente “tagarela”. Já olhastes para alguma coisa, sem julgamento, sem avaliação?
Se pudéssemos “olhar” o medo sem resistência, sem aceitá-lo ou condená-lo ou julgá-lo, observando simplesmente a sua presença em nós e “vivendo com ele”, isso seria então medo? Mas o “viver com ele” exige imensa energia, para que a mente preste completa atenção.
Suponhamos que alguém me diga: “Sois um homem muito arrogante”. Muitas pessoas me dizem coisas — que sou isto, que sou aquilo. Cada declaração que fazem, eu “vivo com ela”. Relevai-me falar rapidamente sobre minha pessoa: Eu “vivo com ela”, não lhe resisto; não digo que é certa nem que é errada. E o “viver com ela” requer atenção, para ver se é verdadeira. Atenção é energia. Atenção, energia, é o universo inteiro; mas não é disso que estamos tratando agora. Pode-se “viver com a coisa”, não desfigurá-la; não dizer: “Já me disseram isto antes”, “Eu não sou assim” ou “Eu sou assim e preciso mudar”. Entendeis? Não é possível viver com o agradável e o desagradável; viver com o sofrimento — seja uma dor de dentes ou outra espécie de sofrimento — viver com o medo, sem se tornar desequilibrado? Gostamos de viver com as coisas agradáveis, as experiências deleitáveis que tivemos. São coisas mortas e idas, mas queremos “viver com elas”, e, assim, ficamos vivendo apenas com uma lembrança morta. Com o sofrimento não queremos viver, desejamos achar uma saída... Mas não é possível viver com ambas as coisas, sem pedir solução, sem pedir resposta, e sem nos pormos a dormir em relação a elas? Vede: isto é meditação.
Krishnamurti, Londres, 09 de maio de 1961, O Passo Decisivo