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domingo, 31 de agosto de 2025

O Vazio das Motivações Condicionadas: Travessia do Cotidiano Sem Sentido

 

Um ponto crucial no processo de descondicionamento, surge quando o sujeito já não consegue mais se enganar com as “recompensas” do sistema, mas ainda não encontrou o pulso vivo da vida não condicionada.

O que acontece é que, ao desmontar os velhos suportes — crenças, papéis sociais, metas que antes funcionavam como placebo existencial — surge um vazio de sentido no cotidiano. O dia parece se arrastar como um palco desmontado: os cenários estão ali, mas a peça perdeu a graça. O trabalho, por mais necessário, é percebido apenas como manutenção da engrenagem corporal; o lazer se mostra insípido, repetitivo; até mesmo as relações podem parecer mascaradas por automatismos.

Esse estado traz duas marcas centrais:

  1. Entediante clareza – Tudo soa artificial. Não é mais possível se anestesiar com aquilo que antes preenchia. É como comer comida de plástico: mastiga-se, mas não alimenta.
  2. Ausência de direção – Sem um norte que faça vibrar o coração, o dia se abre como uma folha em branco na qual nada quer ser escrito. Surge a sensação de estar “de lado” da vida comum, como se fosse um observador cansado.

Esse vazio não é falha, é etapa. Ele revela que o antigo combustível (o condicionamento) já não serve, mas o novo ainda não foi acessado. Aqui o perigo é cair em dois extremos:

  • Retorno ao condicionamento: voltar a se agarrar às velhas distrações só para não sentir o vazio.
  • Estagnação depressiva: ficar imóvel no tédio, sem atravessá-lo até o outro lado.

O convite desse momento é resistir à tentação de preencher artificialmente e, ao mesmo tempo, não se perder no torpor. O “nada motiva” é, na verdade, a chama do real pedindo espaço. Essa desorientação é a preparação do campo interno: o terreno precisa ser limpo da erva daninha antes da semente nova.

núcleo do choque está na percepção que tudo aquilo que o coletivo celebra como fonte de prazer e sentido já não tem força para mover a engrenagem interna.

O processo de descondicionamento, quando se aprofunda, vai despindo o sujeito de todas as motivações herdadas. É como se o palco da vida social fosse desmontado diante dos olhos: passeios tornam-se deslocamentos vazios, compras viram atos mecânicos de reposição, sexo perde a aura de promessa de preenchimento, restaurantes e novos carros não passam de ornamentos para manter o teatro rodando, esportes e viagens soam como formas refinadas de entretenimento que não tocam o âmago.

Não se trata de se tornar “anti-prazer”, mas de perceber que essas atividades não carregam em si o sentido real que antes se projetava nelas. O que se quebra é a ilusão de que ali residia a vida.

Esse estado gera uma sensação dupla:

  • De um lado, um cansaço da participação social: tudo parece farsesco, repetitivo, girando em círculos.
  • Do outro, uma sensação de exílio interno: como se a pessoa estivesse presente no mundo, mas desligada da lógica que o move.

É nesse ponto que surge o risco da anestesia: muitos, incapazes de lidar com esse deserto de sentido, voltam a se forçar na roda das distrações — compram mais, transam mais, viajam mais, buscam intensidade artificial para não encarar o vazio. Mas quem consegue permanecer nesse hiato, sem preencher, sem fugir, começa a tocar o território mais profundo do real.

Esse “nada motiva” não é morte — é parto. A motivação artificial morre para que surja outra natureza de ação: um agir que não vem do desejo condicionado, mas do simples fluir da vida, um movimento não fabricado.


O Vazio das Motivações Condicionadas e a Travessia do Dia Sem Sentido

Há um ponto inevitável no processo de descondicionamento que poucos estão preparados para enfrentar, e que muitos confundem com falha, retrocesso ou depressão patológica. É o momento em que o sujeito, já não mais iludido pelas cores artificiais do espetáculo social, encara o dia como um deserto de sentido. As horas se abrem diante de si, mas, fora as ações forçosas ligadas à manutenção do corpo — comer, trabalhar, pagar contas, dormir — nada mais parece digno de movimento.

Tudo o que antes mobilizava o entusiasmo torna-se insípido, entediante, quase grotesco. Passeios soam como deslocamentos sem propósito. Compras revelam-se como trocas circulares em que nada de essencial é acrescentado. O sexo perde a ilusão de redenção ou fusão definitiva, e mostra-se como descarga momentânea que nada resolve no fundo. Restaurantes são repetições de sabores que logo se apagam. Carros, meros instrumentos de locomoção disfarçados de status. Esportes, circuitos de esforço que giram em torno de si mesmos. Viagens, deslocamentos que carregam consigo o mesmo vazio que se tentou deixar para trás.

Tudo perde a aura. Tudo se revela como condicionamento. E, ao se despir dessas motivações, a vida cotidiana passa a se apresentar nua, crua, quase insuportável.

A Queda das Máscaras Cotidianas

Esse processo não é opcional para quem se propõe a atravessar o descondicionamento. As máscaras que sustentavam o teatro do eu social caem uma a uma. O que antes era vivido como meta, conquista ou realização mostra-se apenas como engrenagem de manutenção da ilusão. O corpo ia às compras, mas era a mente condicionada que acreditava estar se tornando mais completa. O corpo buscava sexo, mas era o falso personagem faminto que projetava a salvação na pele do outro. O corpo viajava, mas era o psiquismo exilado que supunha encontrar paz e contentamento em outro cenário.

Quando esse mecanismo se desvela, não sobra nada que mova de verdade. O dia amanhece e, diante de si, o sujeito vê apenas um quadro branco. Já não existe roteiro imposto de fora, nem roteiro desejado de dentro. A energia que antes se canalizava em objetivos fabricados agora paira sem destino. É nesse ponto que surge a terrível e ansiosa constatação: não sei mais o que fazer da vida.

O Tédio como Raiz do Vazio

Esse não saber não é teórico — é visceral. Ele se inscreve no corpo como tédio. Não o tédio superficial de quem procura algo para se distrair, mas o tédio ontológico, que nasce da percepção de que nenhuma distração poderá preencher o buraco central.

Esse tédio tem cheiro de exílio. O sujeito se sente fora do jogo, olhando de longe a movimentação ilusória dos outros. Vê amigos e familiares correndo atrás de novidades, planejando a próxima viagem, sonhando com a próxima aquisição, debatendo o próximo restaurante da moda. Observa tudo isso e se pergunta: “Como é possível ainda acreditar que isso sustenta algo real?” E, no entanto, não consegue voltar a se enganar.

A lucidez mata o prazer socialmente implantado. Uma vez vista a engrenagem, não há como fingir que ela é mágica.

A Ausência de Direção

No fundo desse processo está a ausência de direção real. A vida, que antes se apresentava como uma sequência de metas, parece agora um terreno plano, sem sinalizações. Não há futuro desejável, nem passado que possa servir de modelo. O presente se apresenta nu, sem ornamentos, sem atrativos.

Isso gera uma sensação paradoxal: de um lado, alívio por não estar mais submisso ao velho jogo; de outro, angústia por não haver ainda um movimento novo que nasça da fonte interna. O sujeito sente-se suspenso entre dois mundos: não pertence mais ao velho, mas ainda não encarnou o novo.

Esse estado pode durar dias, meses, anos — dependendo da coragem de permanecer nesse “não-lugar” sem se apressar em preenchê-lo com falsas soluções.

O Perigo das Recaídas

É nesse território de desorientação que o risco maior aparece: a recaída. Diante do vazio, a tentação de voltar a se enganar é enorme. Muitos correm de volta para as distrações: mergulham em novos projetos, caem em consumos desenfreados, buscam parceiros em série, intensificam o sexo, o turismo, o esporte, a carreira, os investimentos. Mas, em verdade, já sabem que estão se enganando. Voltam para o jogo sabendo que é jogo — e essa consciência transforma a experiência em algo ainda mais vazio.

Outros, incapazes de retornar à ilusão e sem força para permanecer no hiato, escorregam para a depressão paralisante. Perdem a energia de viver, o corpo se arrasta, a alma se apaga. Confundem o vazio iniciático com falência vital. Mas são coisas diferentes: a depressão é o fechamento do ser sobre si, enquanto o vazio iniciático é a abertura para além do si.

A Chama Oculta do Real

Embora tudo pareça morto, há algo invisível acontecendo nesse estado. O vazio do cotidiano é como o campo arado que, após a queima, parece estéril. Na superfície não há flores nem frutos, mas no subterrâneo a terra está sendo preparada.

O “nada motiva” é, em realidade, a purificação do desejo. O desejo implantado socialmente se dissolve, e com ele a motivação herdada. Esse processo cria espaço para que surja um movimento novo, não condicionado: uma ação que não nasce da carência ou do tédio, mas do simples pulsar da vida em sua expressão pura.

Esse agir é de outra ordem. Não é buscar preencher-se, mas deixar-se mover. Não é procurar sentido, mas permitir que o sentido se manifeste sem ser fabricado.

O Cotidiano sem Glamour

Enquanto isso não se revela, o sujeito precisa atravessar dias sem glamour. Dias em que acorda sem entusiasmo, em que se arrasta para as tarefas básicas, em que não encontra nada que lhe desperte interesse real. Isso não é falha — é etapa. É necessário suportar a secura sem se apressar em molhá-la com águas artificiais.

A travessia exige disciplina invisível: não a disciplina de metas, mas a disciplina de permanecer no vazio sem fugir. É uma disciplina silenciosa, quase invisível, mas radical: não se vender à tentação de correr atrás da mesmice do teatro social que já foi desmascarado.

A Solidão de Quem Não Participa

Esse processo intensifica a solidão. Estar no mundo sem participar do imaturo entusiasmo coletivo é uma forma de exílio social. O sujeito começa a se sentir estrangeiro entre os próprios amigos. Participa de encontros, mas não se envolve. Ouve as conversas, mas não vibra com os mesmos assuntos. Sente-se em outro ritmo, em outra dimensão.

Essa solidão é dolorosa, mas também é o berço da autonomia. É nela que nasce a liberdade de não depender mais das motivações socialmente implantadas. É nela que o ser começa a escutar algo mais sutil, mais silencioso, que não se revela no barulho das distrações.

O Martírio dos Fins de Semana

Durante a semana, o peso das obrigações (trabalho, contas, compromissos) funciona como uma espécie de anestesia automática. A rotina dá uma sensação de ocupação, e mesmo que nada tenha sentido verdadeiro, o tempo passa envolto em tarefas obrigatórias. Mas quando chega o fim de semana — esse território socialmente vendido como “tempo de liberdade”, “tempo de lazer”, “tempo de viver de verdade” — a farsa se mostra nua.

O sujeito em processo de descondicionamento, percebe que o sábado e o domingo não trazem consigo nenhum frescor real. Pelo contrário, eles acentuam o vazio. Enquanto todos correm para restaurantes, viagens curtas, compras, baladas, churrascos ou esportes radicais, quem já atravessou a queda das ilusões vê apenas repetições. É como se todo o mundo se organizasse para fugir do silêncio, enquanto dentro de si o silêncio de sentido real, se torna inevitável.

Essa diferença é brutal:

  • Para o condicionado, o fim de semana é promessa de alívio e prazer.
  • Para o que já viu a engrenagem, o fim de semana é o espelho mais claro da ausência de sentido real.

É nesses dias que a solidão costuma se intensificar. A pessoa olha em volta e sente-se como estrangeira em um carnaval coletivo. O contraste dói: todos parecem “felizes”, mas essa felicidade soa ensaiada, comprada, forçada. Ao mesmo tempo, o sujeito sente a impotência de não conseguir mais se inserir de maneira genuína nesse jogo.

Esse “vazio de fim de semana” é pedagógico. Ele ensina, com uma clareza quase cruel, que o real não está nos intervalos programados do sistema. Ele não surge porque se parou de trabalhar ou porque se comprou algum lazer. O real não obedece ao calendário da sociedade. O real nasce onde o condicionamento morre — e isso pode acontecer numa segunda de madrugada ou num domingo à tarde.

O Fogo do Não-Saber

No coração desse processo está o não-saber. O sujeito não sabe mais o que deseja, não sabe mais o que o move, não sabe mais o que deve fazer com o dia que se apresenta. Esse não-saber é fogo. Ele queima as certezas, queima os antigos caminhos, queima a própria ideia de direção.

É preciso coragem para permanecer nesse fogo sem buscar saídas prematuras ou por antigas narcotizações. O não-saber, se aceito, transforma-se em abertura. O ser começa a viver não como quem controla o rumo, mas como quem se deixa ser levado pelo vento do real.

O Nascer de uma Nova Motivação

Aos poucos, algo novo começa a se insinuar. Não vem como grande revelação, mas como pequenos lampejos. Um gesto simples, feito sem interesse, traz uma sensação de presença viva. Um olhar para o céu, sem esperar nada, torna-se alimento. Um silêncio profundo, antes insuportável, passa a ser descanso.

Esse novo mover não é fabricado. Ele não vem do cálculo, nem da carência, nem da expectativa. É espontâneo. É vida se movendo por si. Essa motivação não depende de resultados, não se apoia em conquistas, não precisa de aplauso. Ela é autossuficiente porque nasce da fonte e não do vazio da falta.

O Vazio como Etapa, não como Fim

A falta de direcionamento cotidiano e a perda de interesse pelas motivações socialmente implantadas, não são o fim da vida, mas o início de uma nova vida. São a travessia necessária para que a existência deixe de ser teatro mesmerizado e se torne expressão do real.

É preciso suportar o tédio, a solidão, a ausência de metas. É preciso aceitar o cotidiano sem brilho, o dia sem roteiro, o agir sem entusiasmo. Nesse chão árido, o falso se desfaz e o verdadeiro prepara sua chegada.

O processo de descondicionamento não é apenas libertação dos grilhões externos, mas também a morte das motivações internas herdadas. Essa morte é dolorosa porque nos deixa sem direção. Mas é somente nesse hiato que o real pode nascer.

O vazio não é falência — é purificação. O tédio não é castigo — é preparação. A ausência de motivação não é derrota — é espaço para que a vida, em sua essência, finalmente se mova sem máscaras e sem forçosos enredos.

E quando isso acontece, não há mais pacotes de viagens, compras, sexo, restaurantes, carros, esportes, empreendimentos, ou viagens como promessas de preenchimento. Há apenas o movimento simples, despojado, sem justificativa, mas pleno em si mesmo. É nesse ponto que a vida, enfim, deixa de ser um roteiro socialmente implantado e se torna o mistério vivo da presença lucida, amorosa, criativa e integrativa.


sexta-feira, 13 de abril de 2018

Sobre a solidão e a vontade de Deus


Sobre a solidão e a vontade de Deus

A maioria de nós nos sentimos sós, e sabemos o que esta palavra significa. Sabemos — ou pelo menos pensamos saber — o que é esse estado de solidão. Nós o reconhecemos por meio da palavra? E se não existisse a palavra, quando tivéssemos um certo sentimento poderíamos reconhecê-lo como “solidão”? Em geral, somos tão escravos das palavras que não temos capacidade de olhar o fato.

Há um estado de solidão; e podeis olhar esse estado sem a palavra?[...]

Senhor, o “dar nome”, o verbalizar, é um processo muito complexo. Quando compreendeis que a palavra não é a coisa, estais então em contato com a coisa, não por meio da palavra, mas direta e vitalmente. E que acontece então?[...]

Enquanto passardes pelo mecanismo de reconhecimento, que é olhar para a coisa nova traduzindo-a nos termos do que antes existiu, é inevitável o conflito; por conseguinte, não há renovação, não há nada novo. Isso é um fato psicológico. Se penetrardes fundo em vós mesmo, vereis tudo isso num clarão; não precisais escutar a mim ou a outro qualquer. Ao lançardes fora a carga das palavras, ao vos libertardes de toda essa estrutura de símbolos, ideias, para olhardes diretamente a coisa em si, encontrareis rejuvenescimento, frescor; algo totalmente novo acontece.

Mas vede quanto é difícil a um cristão abandonar o símbolo da Cruz, ou a vós abandonar a palavra “inglês”. E deveis abandonar o símbolo, deveis libertar-vos da palavra. Deveis libertar-vos da palavra “Deus”, a fim de descobrirdes o que realmente é.

[...]O “dar nome”, que implica todo o mecanismo de acumulação de conhecimento, é realmente pernicioso. Isso não significa que não devais ter o conhecimento mecânico — porque, do contrário, não saberíeis aonde ir, daqui a um minuto. O conhecimento ou a experiência se torna prejudicial quando só há reconhecimento nessa base. Só quando cessa o mecanismo de reconhecimento, há observação; e dessa observação resulta um movimento vital.

[...] Tememos o vazio e desejamos preenchê-lo. Temos medo de nossa esgotante solidão, e procuramos fugir dela. É o fugir que gera o medo; mas o fugir nos põe ativos e, por isso, quando fugimos, pensamos que estamos sendo muito positivos. Quando tiverdes compreendido essa solidão, depois de atravessá-la e ultrapassá-la, descobrireis por vós mesmo o que há quando o “eu” já não existe. Mas, como em tudo mais, senhor, deveis começar pelo vazio. A taça só é útil quando vazia. Mas, para compreender esse vazio, é preciso atravessá-lo num clarão, por assim dizer, e lançar a base correta. Então, vós sabereis; nunca mais perguntareis o que há além daquele vazio.

[...] A taça só pode ser útil quando vazia. Podeis então enchê-la com o de que gostais. Mas, se vossa taça já está cheia — cheia de sofrimento, aflição, conflito — que utilidade tem ela? Senhor, que utilidade tem nossa vida, tal como é: competição, guerras, conflitos internacionais, divisão entre Oriente e Ocidente, entre esta e aquela religião? Que utilidade tem isso?

[...] Todo político, todo negociante, todo general preparador de guerras, fala sobre “a vontade de Deus”. O comunista também fala da “vontade de Deus”, mas no seu caso se trata da “vontade do Estado”, etc., etc.. Que é “a vontade de Deus”? Só podereis averiguar isso quando estiverdes vazio, quando já não estiverdes buscando, já não estiverdes pedindo, quando já não pertencerdes a nenhum grupo separado, quando já não tiverdes medo, quando vos achardes num estado de completa incerteza — que não significa demência. Nesse estado, o pensamento já não busca um pouso seguro. Então, talvez, aquilo que se pode chamar “Deus” — ou outro nome qualquer — começará a atuar.

Krishnamurti, Londres, 14 de junho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito



segunda-feira, 9 de abril de 2018

O tempo não apaga o sofrimento e a solidão

O tempo não apaga o sofrimento e a solidão

Muito temos falado sobre a importância de enfrentar o fato, observá-lo sem condenação ou justificação, abeirarmos dele sem opinião alguma a seu respeito. Principalmente quando se trata de fatos psicológicos, costumamos encará-los com todos os nossos preconceitos, nossos desejos, nossas ânsias, que deformam “o que é” e produzem um certo sentimento de culpa, de contradição, uma rejeição do que é. Falamos também sobre a importância da destruição completa de todas as coisas que construímos para nos servirem de refúgio, de defesa. A vida se nos afigura vasta demais, célere demais, e nossas mentes lerdas, nossa maneira lenta de pensar, nossos hábitos criam invariavelmente uma contradição dentro em nós, e procuramos impor condições à vida. E, gradualmente, enquanto continua e cresce essa contradição e conflito, as nossas mentes se vão tornando mais e mais embotadas. Desejo, pois, nesta manhã, falar sobre a simples austeridade da mente e sobre o sofrimento.

É-nos muito difícil pensar diretamente, ver as coisas diretamente e seguir atentamente o que vemos, “até o fim”, de maneira lógica, racional, sã. É muito difícil ver as coisas com clareza e, por isso, muito difícil ser simples. Não me refiro à simplicidade exterior do vestir, do possuir poucas coisas; quero referir-me à simplicidade interior. A meu ver, a simplicidade é essencial quando se considera um problema muito complexo, como o sofrimento. Assim, antes de começarmos a apreciar o sofrimento, temos de estar bem esclarecidos quanto ao significado da palavra “simples”.

A mente, como agora a conhecemos, é muito complexa, infinitamente solerte, sutil; teve experiências mui numerosas; e contém em si todas as influências do passado, da raça, o resíduo dos tempos. Reduzir essa imensa complexidade à simplicidade é dificílimo; mas acho necessário fazê-lo, pois, do contrário, nunca seremos capazes de ultrapassar o conflito e o sofrimento.

A questão, pois, é esta: Considerando-se toda esta complexidade — de saber, experiências, memória — existe alguma possibilidade de olharmos o sofrimento e dele nos livrarmos? Em primeiro lugar, parece-me que, quando se trata de investigar, por nossos próprios meios, como pensar de maneira simples e direta, as definições e explicações são verdadeiramente prejudiciais. Uma definição verbal não torna a mente simples, e as explicações não produzem a clareza de percebimento. Parece-me, pois, que devemos estar bem apercebidos de nossa escravização às palavras, sem perdermos de vista, entretanto, que as palavras são necessárias para as comunicações. Mas o que se comunica não é meramente a palavra; comunicam-se sentimentos, visões, que não podem ser formulados em palavras. Mente simples não significa mente ignorante. Mente simples é aquela que está livre para seguir todas as sutilezas, todas as variações, todos os movimentos de um dado fato. E para tanto deve a mente, sem dúvida, estar emancipada das palavras. Essa liberdade produz uma austeridade feita de simplicidade. Se há essa simplicidade no considerar as coisas, pode-se então tentar compreender o que é o sofrimento.

Penso que a simplicidade da mente e o sofrimento estão relacionados entre si. Viver no sofrimento em todos os dias de nossa vida é, sem dúvida, dizendo-o delicadamente, a coisa mais insensata que um homem pode fazer. Viver em conflito, na frustração, sempre enleado no medo, na ambição, enredado na ânsia de preenchimento, de êxito — passar a vida toda num tal estado, isso me parece de todo em todo fútil e desnecessário. E para nos livrarmos do sofrimento, devemos aplicar-nos de maneira simples a este complexo problema.

Há várias qualidades de sofrimento físico e psicológico. Há a dor física ocasionada pela doença — uma dor de dentes, a perda de um membro, deficiência visual, etc.; e o sofrimento interior que nos vem quando perdemos alguém que amamos, quando não temos aptidões e vemos pessoas que as têm, quando não temos talento e vemos pessoas de talento, de dinheiro, posição, prestígio, poder. Há sempre ânsia de preenchimento; e, à sombra do preenchimento, se encontra a frustração, e com esta o sofrimento.

Temos, pois, esses dois aspectos do sofrimento — o físico e o psicológico. Perdemos porventura um braço, e surge o problema do sofrimento. Voltamos mentalmente ao passado, lembrando-nos do que já fizemos, que já não poderemos jogar tênis, já não poderemos fazer muitas coisas; a mente compara, e nesse processo gera-se sofrimento. Conhecemos bem esse gênero de coisa. O fato é que perdi meu braço e, por mais teorias e explicações que formule, por mais que compare, que me lamente, nada disso me restituirá o braço. Mas a mente gosta de lamentar-se, de volver ao passado. E fica, assim, o fato presente em contradição com o que foi. Essa comparação produz invariavelmente conflito, e por causa dele sofremos. Esta é uma modalidade do sofrimento.

Em seguida, temos o sofrimento psicológico. Meu irmão, meu filho morreu, foi-se deste mundo. Não há quantidade de teorias, de explicações, de crenças, de esperanças que me possam restituir. A realidade cruel, inexorável, é o fato de que ele se foi. E outro fato é que me sinto sozinho, porque ele se foi. Éramos amigos, passeá­ vamos juntos, conversávamos, ríamos, divertíamo-nos, e essa camaradagem acabou-se e fiquei sozinho. A solidão é um fato e a morte também. Sou forçado a aceitar o fato — sua morte — mas não quero aceitar o fato de ter ficado só no mundo. Por isso, começo a inventar teorias, esperanças, explicações, como meios de fuga ao fato, e são essas fugas que produzem sofrimento, e não o fato de achar-me sozinho, não o fato de ter morrido meu irmão. O fato nunca pode produzir sofrimento e parece-me importante compreender isso, se se quer a mente verdadeira, total e completamente livre do sofrimento. Só acho possível a libertação do sofrimento quando a mente já não busca explicações e refúgios, quando encara o fato de frente. Não sei se já tentastes isso.

Sabemos que existe a morte e conhecemos o grande medo que ela provoca. É um fato que temos de morrer, cada um de nós, quer queiramos, quer não. E, assim, racionalizamos a morte ou nos refugiamos em crenças — karma, reencarnação, ressurreição, etc. — e, por consequência, sustentamos o medo e fugimos ao fato. E a questão é se à mente interessa de feito “ir até o fim”, para descobrir se é possível nos libertarmos completamente do sofrimento, não no correr do tempo, porém no presente, agora.

Ora, pode cada um de nós, com inteligência, sanidade, enfrentar o fato? Posso enfrentar o fato de que meu filho, meu irmão, minha irmã, meu marido ou esposa, ou quem quer que seja, morreu e eu fiquei sozinho — em vez de tentar escapar a essa solidão por via de explicações, crenças e teorias sutis, etc.? Posso olhar o fato, qualquer que seja ele: o fato de não ter eu talento, de ser estúpido, de estar sozinho, de que minhas crenças, minhas estruturas religiosas, meus valores espirituais são apenas defesas? Posso encarar esses fatos e não buscar meios e modos de fugir? É possível isso?

Só o acho possível quando já não nos preocupamos com o tempo, o amanhã. Nossa mente é preguiçosa e, por isso, estamos sempre a pedir tempo — tempo para nos recuperarmos, tempo para melhorarmos. O tempo não apaga o sofrimento. Podemos esquecer um dado sofrimento, mas o sofrimento existe sempre, profundamente oculto em nós. Mas eu acho possível extinguir de todo o sofrimento, não amanhã, não no decurso do tempo, porém percebendo a realidade no presente, e passando além.

Afinal, por que sofrer? O sofrimento é doença. Procuramos o médico para nos livrarmos de uma doença. Por que temos de suportar o sofrimento, de qualquer espécie que seja? Vede, por favor, que não estou fazendo retórica, pois isso seria insensato. Por que havemos nós, cada uma de nós, de suportar qualquer sofrimento, se é possível nos libertarmos disso completamente?

Essa pergunta implica outra: Por que vivermos em conflito? O sofrimento é conflito. Dizemos que o conflito é necessário, que faz parte da existência, que na natureza e em tudo o que nos cerca existe conflito, e que é impossível existir sem conflito. Consequentemente, aceitamos o conflito como inevitável interiormente, em nós mesmos, e exteriormente, no mundo.

Para mim, o conflito, de qualquer espécie que seja, é desnecessário. Podeis dizer: “Esta é uma ideia pessoal, vossa, e sem validade. Sois um homem só, solteiro — para vós isso é fácil! Mas nós outros temos de viver em conflito com os nossos vizinhos e a respeito de nossas ocupações; tudo o que tocamos gera conflito”.

A meu ver, isso é questão de educação correta, e nossa educação não foi correta; ensinaram-nos a pensar em termos de competição, em termos de comparação. Tenho dúvidas sobre se é possível uma pessoa compreender, ver realmente, diretamente, por meio de comparação. Ou só se pode ver claramente, com simplicidade, depois de cessar a comparação? Decerto, uma pessoa só pode ver claro, quando a mente já não é ambiciosa, já não se esforça para tornar-se alguma coisa — mas isso não significa que a pessoa deva ficar satisfeita com o que é. Penso que um homem pode viver sem comparação, sem comparar-se com outro homem, sem comparar o que ele é com o que deveria ser. Enfrentar “o que é”, a todas as horas, suprime as avaliações comparativas e, por conseguinte, penso eu, pode-se, assim, eliminar o sofrimento. Acho importantíssimo que a mente esteja livre do sofrimento. Porque a vida tem então significado bem diferente.

Outra coisa desastrosa que fazemos é buscar o conforto: não apenas conforto físico, mas também conforto psicológico. Desejamos abrigar-nos numa ideia, e quando essa ideia falha, ficamos desesperados, e isso, por sua vez, gera sofrimento. A questão, pois, é esta: Pode a mente viver, funcionar, existir sem abrigo, sem nenhum refúgio? Pode um homem viver, dia por dia, enfrentando cada fato que surge e nunca buscando refúgio; enfrentando “o que é” a todas as horas, todos os minutos do dia? Porque então, penso eu, descobriremos que não só o sofrimento termina, mas também a mente se torna sobremodo simples e clara, apta a perceber diretamente, sem ajuda das palavras, do símbolo.

Não sei se alguma vez já pensastes sem palavras. Existe pensar sem verbalização? Ou todo pensar consiste apenas em palavras, símbolos, quadros, imaginação? Todas essas coisas — palavras, símbolos, ideias, são prejudiciais ao percebimento claro. Acho que quem deseja investigar o sofrimento “até o fim”, para descobrir se é possível ficar livre dele (não eventualmente, porém viver cada dia livre de sofrimento), deverá penetrar em si mesmo muito profundamente, para libertar-se de todas essas explicações, palavras, ideias e crenças, de modo que a mente fique verdadeiramente purificada e capacitada para perceber “o que é”.

PERGUNTA: Quando há sofrimento, é decerto inevitável desejarmos fazer alguma coisa contra ele.

KRISHNAMURTI: Senhor, como já dissemos, nós desejamos viver com prazer, não é verdade? Ninguém procura modificar o prazer; queremos que ele continue dia e noite, perenemente. Não desejamos alterá-lo, não desejamos sequer, tocá-lo, “soprá-lo”, de medo que se nos vá; queremos ficar-lhe apegados, não é mesmo? Agarramo-nos à coisa que nos dá deleite, que nos dá alegria, prazer, sensação — coisas tais como frequentar a igreja, “ir à missa”, etc. Essas coisas causam-nos muita vibração, sensação, e não desejamos alterar tal sentimento; ele nos faz sentir mais aproximados da fonte das coisas, e precisamos dessa sensação, não é verdade? Por que não podemos “viver com o sofrimento”, da mesma maneira e com a mesma intensidade, e sem desejarmos fazer algo contra ele? Já tentastes isso? Já tentastes “viver com a dor física?” Já tentastes “viver com o barulho”?

Simplifiquemos as coisas. Quando um cão ladra à noite e vós desejais dormir — mas ele continua ladrando, ladrando — que fazeis? Resistis, não é verdade? Atirai-lhe coisas, praguejais contra ele, enfim fazeis tudo o que podeis contra ele. Mas se, em lugar disso, “acompanhásseis” o barulho, escutásseis o ladrar do cão sem resistência nenhuma, haveria incômodo? Não sei se já tentastes fazê-lo. Tentai, ao menos uma vez, não resistir! Assim como não repelis o prazer, não podeis igualmente “viver com o sofrimento”, sem nenhuma resistência, sem escolha, sem procurar refúgio, sem acalentardes esperanças e, desse modo, abrirdes a porta ao desespero — viver, simplesmente, com ele?

“Viver com uma coisa” significa amá-la. Quando amais alguém, desejais viver com essa pessoa, estar em sua companhia, não? Da mesma maneira pode uma pessoa “viver com o sofrimento”, não sadicamente, porém sentindo-lhe a força, a intensidade, e também sua absoluta superficialidade; e isso significa nada poder fazer contra ele. Afinal de contas, ninguém deseja fazer alguma coisa contra algo que lhe dá prazer intenso; ninguém deseja alterá-lo: deseja-se que continue. De modo idêntico, “viver com o sofrimento” significa, realmente, amar o sofrimento, e isso exige muita energia e compreensão; significa vigilância contínua, para não deixar a mente fugir ao fato. É facílimo fugir; pode-se tomar uma droga, uma bebida, ligar o rádio, abrir um livro, tagarelar com outros, etc. Mas “viver com uma coisa” — prazer ou dor — inteiramente, totalmente, requer mente bem vigilante. E quando a mente é assim vigilante, ela cria sua ação própria — ou, melhor, a ação nasce do fato, e a mente nada tem que fazer contra o fato.[...]

Tenho que uma mente nova, purificada, é absolutamente necessária para se poder descobrir o que é verdadeiro, se existe Deus — ou o nome que quiserdes dar-lhe. Uma mente envelhecida, torturada, cheia de sofrimento, nunca poderá descobri-lo. E fazer do sofrimento coisa necessária, coisa que eventualmente nos levará ao céu, é absurdo. O Cristianismo enaltece o sofrimento como o caminho da iluminação. Mas é necessário estarmos livres do sofrimento, da escuridão; porque só então poderá brilhar a luz.

PERGUNTA: É-me possível existir livre de sofrimento, vendo tanto sofrimento ao redor de mim?

KRISHNAMURTI: Que achais? Ide ao Oriente, à Índia, à Ásia, e lá encontrareis o sofrimento em vasta escala — sofrimento físico, fome, degradação, pobreza. Esse é um aspecto do sofrimento. Visitai o mundo moderno, e aí encontrareis todos muito ocupados em decorarem sua prisão externa — imensamente ricos, prósperos, mas todos também muito pobres interiormente, muito vazios; aí também se encontra o sofrimento. Que se pode fazer em presença desse fato? Que podeis fazer diante de meu próprio penar? Podeis socorrer-me? Pensai nisso a fundo, senhores!

Já falei cerca de uma hora, nesta manhã, a respeito do sofrimento e de como nos livrarmos dele. Estou-vos ajudando, ajudando- os de fato, isto é, tornando-vos livres dele, ajudando-vos a não o levar de um dia para o outro, a viver totalmente livres de sofrimento? Estou-vos ajudando? Acho que não. Decerto, esse trabalho compete a vós mesmos, inteiramente. Só estou a indicar-vos o caminho. Um indicador de direção nenhum valor tem se ficamos sentados a estudá-lo, indefinidamente. Cada um tem de enfrentar a solidão, percorrê-la “até o fim”, observando todas as suas implicações. Posso evitar os sofrimentos do mundo? Conhecemos não apenas nossa própria angústia e desespero, mas também os vemos estampados nos rostos dos outros. Podemos mostrar a porta por onde um homem pode tornar-se livre, mas quase todos querem transpor essa porta carregados. Rendem culto ao homem que, segundo pensam, os carregará; fazem-no o Salvador, o Mestre — e tudo isso é puro contrassenso.[...]

PERGUNTA: “Viver com o sofrimento” implica prolongamento do sofrimento, e tememos prolongá-lo.

KRISHNAMURTI: Não foi isso, naturalmente, o que eu quis dizer. Para “viver com uma coisa” — a beleza ou a fealdade — requer-se muita intensidade. “Viver com estas montanhas”, dia por dia — se não as sentirmos, se as não amarmos, se não lhe admirarmos a beleza, a todas as horas, igualar-nos-emos aos camponeses, que a elas se tornaram insensíveis. O belo, se não lhe somos sensíveis, corrompe tanto como o feio. “Viver com o sofrimento” é “viver com as montanhas”, porque o sofrimento torna a mente embotada, estúpida. “Viver com o sofrimento” implica vigilância infinita, e isso não prolonga o sofrimento. No momento em que se percebe a totalidade da coisa, esta se desvanece. Quando uma coisa é percebida totalmente, está acabada. Ao conhecermos a estrutura completa do sofrimento, sua anatomia, sua “interioridade”, sem formular teorias a seu respeito, porém observando o fato realmente, a sua totalidade — então o fato cai por si. A rapidez, a presteza do percebimento depende da mente. Mas se vossa mente não é simples, direta, se está repleta de crenças, esperanças, temores, desesperos, desejando modificar o fato, “o que é”, nesse caso estais prolongando o sofrimento.

PERGUNTA: Nossos preconceitos barram-nos o caminho, e temos de vencê-los; e isso pode levar tempo.

KRISHNAMURTI: Senhor, ao perceber que está só, a pessoa percebe também, instantaneamente, que deseja fugir desse estado, não é verdade? O fato de que estou só e o fato de desejar fugir desse estado podem ser percebidos imediatamente, não? Posso também perceber instantaneamente que qualquer espécie de fuga é uma maneira de evitar o fato da solidão, a qual devo compreender. Não posso pô-la de parte.

A meu ver, nossa dificuldade consiste em estarmos muito apegados às coisas nas quais nos refugiamos; elas são para nós bem importantes, tornaram-se sumamente respeitáveis. Achamos que, se deixarmos de ser respeitáveis, só Deus sabe o que aconteceria. Por essa razão, torna-se de suma importância o apego à respeitabilidade, e deixa de ser relevante o fato de que precisamos compreender a solidão, ou o que quer que seja, totalmente.

PERGUNTA: Se não temos a necessária intensidade, que podemos fazer para a conseguirmos?

KRISHNAMURTI: Não estou certo se desejamos aquela intensidade. Ser “intenso” implica destruição, não é exato? Significa despedaçar todas as coisas que estamos acostumados a considerar tão importantes na vida. E, assim, o medo, talvez, nos impede de ser “intensos”.

Todos nós, velhos e jovens, desejamos ser altamente respeitáveis, não é verdade? Respeitabilidade implica reconhecimento por parte da sociedade; e a sociedade só reconhece o que teve êxito, o que se tornou importante, famoso, e despreza o resto. Por isso, adoramos o êxito e a respeitabilidade. E quando pouco vos importa se a sociedade vos considera respeitável ou não, quando não buscais o êxito, não desejais tornar-vos alguém, existe então intensidade — e isso significa que não existe medo, nem conflito, nem contradição, interiormente; por conseguinte, dispondes de abundante energia para acompanhardes o fato “até o fim”.

Krishnamurti, Saanen, 6 de agosto de 1961, O Passo Decisivo

No “estar só” não existe medo


No “estar só” não existe medo

Estivemos falando a respeito da mente nova, e estou certo de que ela não pode ser produzida pela vontade, em qualquer forma que seja, nem por qualquer desejo, intenção, ou pensamento deliberado. Mas parece-me que, se pudermos compreender os vários fatores que impedem o nascimento desse estado, talvez possamos, então, descobrir por nós mesmos a natureza da mente nova. Desejo, pois, apreciar junto convosco uma questão que poderá ser um tanto complicada, mas espero que possamos examiná-la a pleno e, se necessário, prosseguiremos nisso da próxima vez.

Não sei se já perguntastes a vós mesmos porque existe esse impulso inelutável a aderir a uma dada escola de pensamento, pertencer a alguma coisa, identificar-se com uma ideia, adotar um dado sistema de ação. Uma pessoa adere, digamos, ao comunismo, identificando-se completamente com seus ideais, suas atividades. Pode-se ver porque assim procede: porque tem esperanças numa utopia final etc. etc. Mas esta me parece apenas uma explicação superficial. Penso existe uma razão psicológica muito mais profunda pela qual cada um de nós deseja pertencer a alguma coisa — uma pessoa, um grupo, certas ideias e ideais. E talvez seja possível examinarmos a natureza intrínseca desse impulso. Que é ele, precisamente?

Penso que, em primeiro lugar, está o desejo de agir. Desejamos promover uma certa espécie de reforma, transformar o mundo de acordo com um certo padrão. Existe o sentimento de que devemos fazer alguma coisa juntos, que há necessidade de ação cooperativa. E, em certos níveis — melhoramento das estradas, promoção de melhores condições sanitárias etc. — talvez seja necessário aderirmos a uma certa ideia. Mas, se investigamos com mais profundeza, começaremos a descobrir que existe esse impulso a nos identificarmos com uma certa coisa porque aspiramos a um sentimento de segurança, de garantia.

Todos conhecemos muitas pessoas que se filiam a determinado partido político, ou determinado sistema de ação, ou certo grupo de pensamento religioso. Passado certo tempo, essas pessoas começam a descobrir que a causa que abraçaram não lhes convém e, assim, a abandonam e passam-se para outra.

Acho importante averiguar porque existe esse impulso. Porque é que aderimos a uma coisa ou pessoa? Se investigarmos isso, abriremos a porta do problema do medo.

A mente, por certo, está sempre em busca da segurança, da permanência. Busca a permanência nas relações com a esposa, o marido, os filhos, uma ideia, no conhecimento e na experiência. E quanto mais experiência temos, quanto mais conhecimento acumulamos, maior se torna o sentimento de segurança. E permita-se-me dizer agora que ouvir as palavras que estamos dizendo é uma coisa, e coisa muito diferente é experimentar o que estas palavras significam. Estou apenas descrevendo a natureza de nossa mente; e para a pessoa que não está apercebida de seus próprios pensamentos e atividades, essa descrição se torna muito superficial. Mas se, penetrando as palavras, a pessoa começa a compreender a si mesma, percebe que na realidade está em busca de segurança e o que esta busca implica, isso, sem dúvida, tem extraordinário significado. Deixar-se satisfazer apenas com palavras e explicações, como o faz a maioria de nós, parece-me extremamente fútil. Nenhum homem que sente fome se satisfaz com a palavra “comida”.

Assim, podemos examinar esta questão do medo, mas sem interesse no que devemos fazer contra ele? Mais tarde, poderemos tratar deste ponto, ou talvez nem seja isso necessário. Por que surge o medo? E por que está a mente sempre a buscar segurança, não apenas fisicamente, exteriormente, mas também interiormente?

Estamos falando de “exterior” e “ interior”; mas, para mim, há só um movimento, que se expressa ora exteriormente, ora interiormente. É um movimento de vaivém, como o da maré. Não existem coisas tais como mundo exterior e mundo interior, e esta separação dos dois cria divisão, conflito. Mas, para compreender a “maré” interior, o movimento interior, precisamos compreender também o movimento que se dirige para fora. E se estamos apercebidos das coisas externas e não há reação a elas, na forma de resistência, defesa ou fuga, pode-se então ver que o mesmo movimento se torna interior, profundo; mas a mente só poderá segui-lo, se não houver divisão nenhuma.

Se refletimos um pouco a esse respeito, podemos ver que as pessoas ditas religiosas separam o exterior e o interior; a atividade exterior é considerada como muito superficial, desnecessária e mesmo má, e a interior considerada muito significativa. Por isso, há conflito — questão que estivemos examinando, há dias, com certa profundeza. Estamos agora investigando a questão do medo, não só o medo causado pelos eventos exteriores, mas também pelas interiores exigências e compulsões, e pela perpétua busca de certeza. Toda experiência, evidentemente, é uma busca de certeza. Uma experiência de prazer leva-nos a desejar mais prazer, e este mais é o impulso para pôr-nos em segurança em nosso prazer. Se amamos alguém, queremos ter toda a certeza de que esse amor é correspondido, e procuramos firmar um estado de relação que — assim esperamos, pelo menos — seja permanente. Toda a nossa sociedade se baseia nesta qualidade de relações. Mas existe coisa permanente? Existe, de fato? O amor é permanente? Nosso desejo constante é tornar permanentes as sensações, não é verdade? Considere-se a questão da virtude. O cultivo da virtude, o desejo de ser permanentemente virtuoso é, essencialmente, desejo de estar em segurança. E a virtude pode ser permanente? Por favor, senhor, não aceneis apenas com a cabeça, concordando, mas segui isso interiormente, em vós mesmos.

Digamos: uma pessoa sente cólera, ou sente que lhe falta bondade, compaixão, afeição. Pelo cultivo do oposto da cólera, pelo cultivo da tolerância, espera ela produzir um estado de virtude, sendo assim a virtude meramente um “artigo” adequado a nossa conveniência, um meio para um certo fim. Mas a virtude, a bondade, por certo não são cultiváveis, absolutamente. A bondade, tal como a humildade, só pode manifestar-se quando há atenção completa, não visando a nenhum ganho. Considere-se a questão de ser amado ou de amar. É possível a mente ambiciosa amar ou ser amada? O funcionário que deseja tornar-se chefe, o chamado “santo que aspira a realizar Deus”, são ambiciosos, porque estão interessados no próprio aperfeiçoamento; e a mente deles, é óbvio, não pode conhecer o amor. A mente desejosa de compreender a natureza da palavra “amor” deve, sem dúvida, estar totalmente livre daquele desejo de segurança, pois assim nos tornamos essencialmente vulneráveis, sensíveis. É possível, pois, nos tornarmos verdadeiramente livres do medo?

Desejamos ter segurança neste mundo, materialmente, e desejamos estar seguros em nossa respeitabilidade, em nossas ideias; desejamos ser informados sobre o que será de nós após a morte; e podereis observar, se o quiserdes, que nossa mente está sempre e sempre cultivando esse desejo de certeza. Mas não vejo como possa a mente ficar livre do medo e das respectivas frustrações, quando está a buscar segurança. Evidentemente, há necessidade de um certo grau de segurança física: precisamos saber de onde nos virá a próxima refeição, ter um lugar onde dormir, ter roupas, etc. etc.; e qualquer sociedade razoavelmente justa procura prover estas condições. Talvez, dentro de uns cinquenta anos haverá no mundo inteiro uma certa forma de segurança. Oxalá assim seja, mas não é isso que nos interessa neste momento. Nós desejamos segurança tanto em nossas ações como interiormente; e não é esta a causa do medo?

O medo sempre nos acompanha, não é verdade? Medo do escuro, medo dos outros, medo da opinião pública, medo de perdermos a saúde, de perdermos nossas capacidades, medo de não sermos ninguém neste mundo monstruoso, aquisitivo, agressivo; medo de não alcançarmos o objetivo, de não “realizarmos” um estado de suprema felicidade, bem-aventurança, Deus, ou o que quer que seja. E também, naturalmente, há o medo fundamental à morte. Não estamos tratando da morte, por ora, porém apenas tentando ver, descobrir o medo. Sem dúvida, o medo está sempre em relação com alguma coisa. Não existe medo sozinho, per se. Há dúzias de manifestações de medo, todas em relação com alguma coisa. E é possível ficar-se só, completamente? É possível a mente ficar de todo só, sem isolar-se, sem edificar muralhas, torres de marfim, ao redor de si? Á mente está só, quando já não busca segurança. E pode ela libertar-se totalmente do medo?

Note-se que o medo supõe o tempo. Vamos examinar isso. O tempo — ontem, hoje e amanhã — é um fator de medo. Estou envelhecendo e a morte me espera, desde agora e por todos os dias vindouros. E o pensamento relativo à morte e pensamento de medo. Haveria medo à morte, ao fim, se não houvesse pensamento referente ao amanhã, ao futuro? Não concordeis comigo, por favor. Concordar com uma explicação não tem valor. Se examinastes verdadeiramente, diretamente, esta questão do medo, deveis ter encontrado a questão do tempo, que compreende não só o amanhã, mas também o passado, o qual significa — não achais? — experiência. Pode a mente ficar tão só, tão desligada do passado e do futuro, que não esteja encerrada de modo nenhum na esfera do tempo?

A mente busca segurança, identificando-se com uma ideia, crença, determinada norma de ação, pertencendo a um grupo, ao cristianismo, ao hinduísmo, ao budismo, a isto ou àquilo — e tudo isso é o contrário de estar só. Quase todos temos horror a estar sós. A seguir, temos o conflito proveniente da contradição, e a raiz desta contradição é a ânsia de preenchimento. Há, pois, essa ânsia constante de preenchimento, de ser, de “vir a ser” algo permanente; e apresenta-se, assim, a questão do tempo. Eis todos os fatores do medo; e acho que não há necessidade de pormenorizarmos mais.

Ora, depois de vermos a totalidade do quadro, de o sentirmos totalmente, surge a questão: Pode a mente abandonar o medo, de todo? Isso significa, com efeito — se assim podemos dizer sem ser mal compreendidos — pode a mente estar só, não relacionada? Haverá uma solitude que não seja mero oposto do conflito, da contradição criada pelas relações? Eu creio que nesta solitude se encontra o verdadeiro estado de relação, e não na outra. No “estar só” não existe medo. Afinal, há séculos que o homem se ocupa com o problema do medo, e ainda não estamos livres dele. E o medo, em suas formas extremas, leva a diferentes manifestações de neurose, etc. Ora, a questão é se vós e eu, percebendo tudo isso, podemos ficar total e instantaneamente livres do medo — mas não pelo hipnotizar-nos a nós mesmos, dizendo: “Agora estou livre do medo” — porque isso é puro absurdo. O percebimento da totalidade do medo significa, essencialmente, um estado de “não ser”.

APARTE: Parece-me que tenho medo de me ver forçado a viver em certas circunstâncias, como, por exemplo, morar numa grande cidade ou trabalhar numa fábrica onde nada existe que eu possa amar ou considerar valioso.

KRISHNAMURTI: Como procedereis em tal caso, senhor? Digamos que eu tenho de trabalhar da manha à noite num pequeno escritório, aqui em Londres, com um chefe desagradável. A ida diária para o trabalho, de ônibus ou pelo “metrô”, a incessante rotina, o contato constante com pessoas que aborrecem e atormentam — todas essas detestáveis condições... Que devo fazer? As circunstâncias me estão forçando. Tenho responsabilidades: minha mulher, meus filhos, minha mãe etc. Não posso afastar-me, fugir para um mosteiro; e isso seria outra coisa horrorosa: a rotina de erguer-se às duas da madrugada, recitar as mesmas e velhas orações para as mesmas e velhas divindades etc. Neste mundo de rotina, monotonia e sordidez, tudo fazemos para fugir, todos perguntamos: “que posso fazer para livrar-me disso?”

Em primeiro lugar, nós somos educados erroneamente — nunca somos educados para amar aquilo que fazemos. Assim, vendo-nos presos na rede, sem possibilidade de fuga, perguntamos: Que devo fazer? Não é exato, senhores? Fugir para o sentimentalismo, para crenças, igrejas, organizações, ideias utópicas, é evidentemente absurdo. Percebo a futilidade dessa fuga e, portanto, abandono-a. Já não há a tentação de fugir e fico em presença do fato, o fato duro e brutal. Que devo fazer? Dizei-mo, senhores!

APARTE: Por certo, nada podeis fazer.

KRISHNAMURTI: Senhores, já “vivemos com alguma coisa” sem resistência nenhuma? Já “vivi” com minha cólera, sem resistência? — o que não é a mesma coisa que aceitá-la, pois isso significaria apenas a continuação dela. “Viver” com a cólera, conhecer-lhe a natureza íntima; “viver” com a inveja, sem procurar dominá-la, reprimi-la ou transformá-la... já tentastes isto? Já tentastes alguma vez “viver” com algo realmente belo, um quadro, uma bela paisagem, uma montanha majestosa com soberbo panorama? E que acontece se viveis com essa coisa? Depressa vos acostumais com ela, não é verdade? Vendo-a pela primeira vez, ela vos comunica um certo sentimento de desafogo, de percepção, com o qual vos habituais; passados dias, ele se desvanece. Vede os camponeses, em todas as partes do mundo, que vivem rodeados de maravilhosos cenários; acostumaram-se com eles. E a esqualidez das cidades de todo o mundo, a sordidez, a podridão, a fealdade, a crueldade, a tremenda brutalidade... com tudo isso nos acostumamos também. “Viver” com o belo ou com o feio, sem se acostumar — isso requer espantosa energia, não? Não se deixar acabrunhar pelo feio nem embotar pelo belo, e ser capaz de “viver” com ambos, requer extraordinária sensibilidade e energia. E isso é possível? Por favor, senhores, refleti um pouco sobre isso.

O problema da energia é muito complicado. O alimento não dá a energia a que me estou referindo. Dá uma certa qualidade de energia; mas o “viver” com uma coisa, o “viver” com o amor exige energia de qualidade completamente diferente. E como se adquire essa energia que constitui, essencialmente, a natureza da mente nova? Ela se adquire, por certo, quando não existe medo, quando não existe conflito, quando não desejamos ser algo, quando vivemos totalmente, anonimamente.

Mas, que bem se faz falando sobre essas coisas? Elas supõem um extraordinário percebimento da busca de segurança, exterior e interiormente. E os mais de nós já estamos muito cansados, muito velhos, obrigados a viver no passado, em nossa ocupação, ou em alguma escura masmorra de nosso ser. Assim, que fazer?

Voltemos à nossa primeira pergunta. Pode a mente libertar-se, instantaneamente, de toda ânsia e exigência de segurança? Pode-se viver num estado de completa incerteza, sem enlouquecer, no mínimo que seja?

APARTE: Se uma pessoa gosta muito de seu trabalho, também aí há medo?

KRISHNAMURTI: Há, sim, senhor, porque há o risco de perder a capacidade para esse trabalho. A capacidade, senhor, é uma coisa terrível porque nos proporciona um esplêndido meio de fuga. Se um homem é bom pintor, bom orador, se tem a capacidade de coordenar palavras, escrever, se é competente engenheiro, ou possui um talento qualquer, isso lhe dá um extraordinário sentimento de segurança, confiança em si, neste mundo de competição e aquisição. E, se não tem confiança em suas aptidões, sente-se totalmente perdido. Mas, sem dúvida, para encontrar Deus — ou o nome que lhe quiserdes dar — a mente deve estar de todo vazia, não? Deve estar livre do conhecimento, da experiência, da capacidade e, por conseguinte, livre do medo, inteiramente purificada, inocente, fresca, jovem.

APARTE: Isso parece que seria o fim de mim mesmo, tal como me conheço.

KRISHNAMURTI: Sim, senhor, justamente. Não sei se já tentastes viver um dia inteiro tão completamente que não houvesse nem ontem nem amanhã. Isso requer muita compreensão do passado. O passado não é apenas a palavra, a língua, o pensamento, mas também o retrospecto do ontem e suas raízes que se cravam no presente.

Alijar completamente o passado — as iniquidades cometidas, as inverdades proferidas, as ofensas e danos causados — abandonar todos os prazeres, dores e lembranças. Não sei se já tentastes isso, se já tentastes arredar-vos do passado. E ninguém pode arredar-se dele, se há mágoas ou prazeres nas coisas lembradas. Experimentai isso, de quando em quando, não porque vo-lo estou dizendo ou porque espereis daí alguma recompensa ou maravilhosa experiência, pois isso seria mera troca, barganha. Mas para a mente, resultado do tempo, constitui uma coisa deveras extraordinária, estar completamente livre do tempo.

APARTE: O hábito constitui uma parte considerável disso de que estais falando, não?

KRISHNAMURTI: Temos de averiguar isso, não? Não estou aqui apenas para responder a perguntas: estamos investigando. Vemos a mente sempre ocupada. Com a maioria de nós, é isso que se passa. Acha-se a mente ocupada em ensinar, cuidando das crianças, da casa, do emprego; ocupada com suas próprias vaidades e virtudes... sabeis com quantas coisas ela vive ocupada. E ocupação supõe hábito. Ora, porque tem de estar ocupada? Quer ocupada com o sexo, quer com Deus, quer com a virtude — tudo é a mesma coisa. Não há ocupação nobre ou ignóbil. Não é assim? Não sei se percebeis isso realmente. A mera substituição da ocupação não constitui libertação da ocupação. Ora, porque tem a mente de estar ocupada?

APARTE: Isso pode ser um meio de fuga.

KRISHNAMURTI: Sim, senhor, não há dúvida que é um meio de fuga; mas as explicações não nos podem levar muito longe. Ide um pouco mais longe, senhor. Penetrai mais.

APARTE: É por medo, não? Por avidez também, talvez.

KRISHNAMURTI: Podemos prosseguir indefinidamente, adicionando explicações e mais explicações: fuga, medo, avidez. E qual o resultado? Não me estou mostrando intransigente, rude ou indelicado. Mas já demos explicações e, contudo, a mente não ficou livre da ocupação.

APARTE: Porque a mente é ocupação.

KRISHNAMURTI: Dizeis que a mente é ocupação; e isso significa — não é verdade? — que a mente que não está ocupada, que não está ativa, pensando, funcionando, indagando, respondendo, desafiando (pois tudo isso são manifestações da mente) não é mente. Isso é exato? A palavra “porta” não é a porta, e a palavra “mente” não é a mente. A mente “se realiza” na ocupação? Ou existe uma mente que diz: “Estou ocupada”?

Desejo averiguar porque a mente persiste ocupada. Porque dizemos que, se a mente não está ocupada, ativa, buscando, defendendo, nutrindo ansiedades, medo, culpa, não é mente? Se não existem todas essas coisas, não existe mente?

APARTE: Essas coisas são a mente, num certo nível, não constituem a mente total.

KRISHNAMURTI: Ansiedade, culpa, medo, reações — é só isso que conhecemos, não? E que é a totalidade da mente, como a conhecemos? A totalidade da mente, como a conhecemos, são o inconsciente e o consciente. Voltemos um pouco atrás. Por que está ocupada a mente? E que aconteceria se a mente não estivesse ocupada?

APARTE: Se a mente não está ocupada, há atenção profunda.

KRISHNAMURTI: Não digais “se”, que é especulação. Como vedes, não estamos penetrando devidamente a questão.

APARTE: A mente está sempre reagindo a estímulos vários. É esse o processo de “estar ocupada”.

KRISHNAMURTI: Sem dúvida, senhor, sem dúvida nenhuma. Já alguma vez experimentastes ficar sem pensamento algum? Pois todo pensamento é ocupação com uma ou outra coisa.

APARTE: Isso é impossível, porque, se a mente está vazia, nada se pode experimentar.

KRISHNAMURTI: Não, não, senhor! Aqui também não se trata de nenhum “se”; e não empreguei “experimentar” nesse sentido. Nós vivemos enredados nas palavras, já vos aconteceu alguma vez ter cessado o pensamento? Não, “ter terminado um pensamento” porque saístes a seu encontro dispostos a liquidá-lo; não é isso o que quero dizer. Mas, quando há pensamento, há ocupação. O pensamento põe a funcionar o hábito. Já olhastes para uma coisa, sem pensamento? Não me refiro a um estado de vazio, e, sim, a um estado em que estais presente com todo o vosso ser, e plenamente atento. Já olhastes para alguma coisa nesse estado em que não existe pensamento? Já olhastes para uma flor, sem dizerdes o seu nome, sem dizerdes quanto é bela, que linda a sua cor etc.? Sabeis quanto a mente “tagarela”. Já olhastes para alguma coisa, sem julgamento, sem avaliação?

Se pudéssemos “olhar” o medo sem resistência, sem aceitá-lo ou condená-lo ou julgá-lo, observando simplesmente a sua presença em nós e “vivendo com ele”, isso seria então medo? Mas o “viver com ele” exige imensa energia, para que a mente preste completa atenção.

Suponhamos que alguém me diga: “Sois um homem muito arrogante”. Muitas pessoas me dizem coisas — que sou isto, que sou aquilo. Cada declaração que fazem, eu “vivo com ela”. Relevai-me falar rapidamente sobre minha pessoa: Eu “vivo com ela”, não lhe resisto; não digo que é certa nem que é errada. E o “viver com ela” requer atenção, para ver se é verdadeira. Atenção é energia. Atenção, energia, é o universo inteiro; mas não é disso que estamos tratando agora. Pode-se “viver com a coisa”, não desfigurá-la; não dizer: “Já me disseram isto antes”, “Eu não sou assim” ou “Eu sou assim e preciso mudar”. Entendeis? Não é possível viver com o agradável e o desagradável; viver com o sofrimento — seja uma dor de dentes ou outra espécie de sofrimento — viver com o medo, sem se tornar desequilibrado? Gostamos de viver com as coisas agradáveis, as experiências deleitáveis que tivemos. São coisas mortas e idas, mas queremos “viver com elas”, e, assim, ficamos vivendo apenas com uma lembrança morta. Com o sofrimento não queremos viver, desejamos achar uma saída... Mas não é possível viver com ambas as coisas, sem pedir solução, sem pedir resposta, e sem nos pormos a dormir em relação a elas? Vede: isto é meditação.

Krishnamurti, Londres, 09 de maio de 1961, O Passo Decisivo


sexta-feira, 6 de abril de 2018

O mecanismo da insatisfação e do descontentamento

O mecanismo da insatisfação 

e do descontentamento

Parece-me muito importante descobrirmos, por nós mesmos, o que é que estamos buscando, e porque estamos buscando. Se pudermos examinar esta questão com certa profundeza, acho que descobriremos muitas coisas nela envolvidas. Os mais de nós estamos em busca de alguma espécie de preenchimento. Estando insatisfeitos, queremos achar a satisfação em certa relação, no exercício de certas capacidades, ou na busca de certa espécie de ação que seja completamente satisfatória. Ou, se não somos desse temperamento, então, em geral, buscamos o que pensamos ser a verdade, Deus, etc. Quase todos nós estamos buscando, procurando; e se pudéssemos, cada um de nós, descobrir por nós mesmos o que é que estamos buscando, e porque estamos buscando, esse descobrimento, penso, muitas coisas nos revelaria. Vendo-nos insatisfeitos com nós mesmos, com nosso ambiente, com nossas atividades, nossas ocupações, quase todos desejamos um emprego melhor, uma posição melhor, melhor compreensão, atividades mais amplas, uma filosofia mais satisfatória, um cargo inteiramente satisfatório. Exteriormente, é isso que desejamos; e, quando não podemos satisfazer-nos, procuramos águas mais profundas, cultivamos a filosofia, interessamo-nos por reformas, reunimo-nos em grupos diversos, para discutir, etc., e a insatisfação continua... Acho importante averiguarmos se o motivo de nossa busca é compreender a insatisfação, ou achar a satisfação. Porque, se é a satisfação que estamos buscando em qualquer nível, é claro, então, que nossa mente se tornará muito vulgar. Mas pode ser que haja um descontentamento sem objetivo, o descontentamento em si, que não é impulso para a consecução de um resultado, para se chegar a alguma parte. Acho que a maioria de nós, vendo-nos insatisfeitos com nossas relações, nossas profissões, nossas atitudes, nossos valores, estamos procurando desvencilhar-nos de tudo isso para adotarmos um diferente sistema de valores, diferentes relações, diferentes ideias, diferentes crenças; mas, no fundo de tudo isso, está o impulso para nos tornarmos satisfeitos.

Seria interessante se pudéssemos descobrir, por nós mesmos, se existe uma coisa tal como um descontentamento sem "motivo" algum, descontentamento que não seja produto de certa frustração; porque esse próprio descontentamento sem "motivo" pode ser a qualidade que se faz necessária. Presentemente, quando estamos buscando, a nossa busca resulta de insatisfação, descontentamento, e nosso "motivo" é achar satisfação desta ou daquela espécie. Principalmente quando falamos a respeito da verdade ou Deus, estamos — não é verdade? — em busca de certo estado de espírito que seja completamente satisfatório. Quer a mente seja muito ampla, muito sutil, quer tenha muito pouca capacidade, se ela está em busca da satisfação — ainda que sob a forma mais sutil — então os seus deuses, suas virtudes, suas filosofias, seus valores, serão forçosamente vulgares, mesquinhos, superficiais.

Nessas condições, é possível a mente ficar livre de toda busca, o que significa: livre daquele descontentamento cujo "motivo" é achar satisfação? Porque, por mais sutil e por mais inteligente que a mente seja, e quaisquer que sejam as virtudes que tenha cultivado, se ela está meramente buscando satisfação, sob qualquer forma, é então incapaz de compreender o que é verdadeiro. Sem dúvida, todo o mecanismo do pensar é medíocre, muito limitado. Afinal de contas, o pensar é resultado da memória acumulada, da associação, da experiência; o pensar é a reação dessa memória, a reação da mente condicionada. Quando esse condicionamento cria insatisfação, então tudo o que resulta dessa insatisfação é também condicionado. Nossa busca será sempre de todo em todo fútil enquanto estiver baseada num descontentamento que não seja mais do que uma simples reação a dado condicionamento.

Percebido isso, surge a questão de saber se existe alguma outra forma de descontentamento, se existe um descontentamento que não esteja "canalizado", que não tenha "motivo" algum, que não vise a um preenchimento. É possível que a coisa essencial seja esse descontentamento "sem motivo", esse descontentamento que não é reação a certo condicionamento. Por ora, o nosso pensar, a nossa busca, tem um "motivo", e esse motivo baseia-se em nossa exigência de um estado permanente de satisfação completa, ao abrigo de toda e qualquer perturbação, estado que chamamos "paz", "verdade", "Deus", etc.; e toda a finalidade da nossa busca é o alcance desse estado. Vemos, pois, que a busca, em geral está baseada na exigência de satisfação, na exigência de um estado de permanência, onde nunca sejamos perturbados. E pode uma mente nessas condições, cujo pensar é "motivado" pelo desejo de satisfação, descobrir, em algum tempo, o que é verdadeiro?

Parece-me que devemos compreender por nós mesmos todo o "mecanismo" que motiva a nossa busca, o porque buscamos, sem nos deixarmos satisfazer por nenhuma palavra preferida, nenhuma finalidade ou alvo preferido, por mais nobre, inspirador ou ideal que pareça. Porque, sem dúvida, o próprio do "eu" é, exatamente, esse constante "mecanismo" de descontentamento dirigido para uma realização, um preenchimento; é só isso que conhecemos. Quando não há preenchimento há frustração; e surgem então os numerosos problemas relativos a como superar este sentimento de frustração. E, assim, a mente busca um estado livre de frustração, sofrimento. Por conseguinte, a nossa busca da verdade pode ser, justamente, preenchimento, expansão do "eu", de "mim". E vemo-nos, assim, aprisionados neste círculo vicioso. Se estamos apercebidos disso, completamente, totalmente, não há então nenhuma tendência para o preenchimento em qualquer crença, qualquer dogma, qualquer atividade, ou qualquer estado particular. A busca de preenchimento implica sofrimento, frustração; e, se percebe a verdade a esse respeito, a mente deixa de buscar. Em meu sentir, há diferença entre a atenção que se dá a um objetivo e a atenção sem objetivo algum. Podemos concentrar-nos em dada ideia, crença, objetivo, o que é um processo de "exclusão"; e há outra atenção, um percebimento que não é "exclusivo". Identicamente, existe um descontentamento, sem "motivo", que não é produto de nenhuma frustração, que não pode ser "canalizado", que não pode aceitar preenchimento algum. Talvez eu não esteja empregando a palavra correta, mas acho que esse extraordinário descontentamento é a coisa essencial. Sem ele, qualquer outra forma de descontentamento se torna mero caminho para a satisfação.

Assim sendo, pode a mente que está apercebida de si mesma, que conhece as peculiaridades de seu próprio pensar, pôr fim a essa exigência de preenchimento? E, terminada ela, podemos permanecer sem buscar, num estado de completa vacuidade, sem esperança, sem medo? Não devemos chegar a esse estado, quando ocorre a completa cessação do buscar? Porque só então é que será possível acontecer algo que não é produto da mente. Nosso pensar, afinal de contas, resulta do tempo, de muitos dias passados; e, através do tempo, que é pensar, estamos tentando achar algo que está além do tempo. Estamo-nos servindo da mente, o instrumento do tempo, para achar uma coisa que não pode ser medida. Nessas condições, pode a mente imobilizar-se de todo para que possa acontecer algo, o que, naturalmente, não significa um estado de amnésia, um estado de inexistência, de não pensamento. Pelo contrário, isso requer muita vigilância, um percebimento em que não há objeto nem "entidade que percebe". Acho importante compreender isso. Atualmente, quando estamos percebendo, comumente, na vida cotidiana, nesse percebimento há julgamento, avaliação; tal é o nosso percebimento normal. Quando olhamos um quadro, começa a funcionar imediatamente o processo de condenação, de comparação, de avaliação; e não podemos ver o quadro, porque o mecanismo de avaliação, como uma cortina, se pôs de permeio. Podemos olhar o quadro sem avaliação, sem comparação? Analogamente, posso olhar a mim mesmo, não importa o que eu seja — todos os erros, tribulações, fracassos, tristezas, alegrias — e ver tudo isso sem avaliação, percebê-lo simplesmente, sem pôr no meio a cortina da condenação ou da comparação? Se a mente for capaz de fazê-lo, veremos que esse próprio percebimento "queima" a raiz de qualquer problema. Quando a mente está assim apercebida, totalmente cônscia, então não há busca; a mente já não está comparando, buscando a satisfação, pensando em termos de realizarão. Não é a mente, então, ela própria, atemporal? Enquanto a mente compara, condena, julga, está condicionada, e está no tempo; mas quando tudo isso cessou, de todo, não se acha então a própria mente naquele estado que se pode chamar "eternidade"? Nesse estado não há observador, não há "experimentador" que tem associações, que tem lembranças, que está buscando, pois tudo isso é produto do tempo. Enquanto o experimentador está buscando, tentando preencher-se, acumulando experiência, acumulando conhecimentos, tentando descobrir campos mais vastos onde viver, está criando o tempo, e suas ações, quaisquer que sejam, estarão sempre dentro da esfera temporal. O imensurável não pode, jamais, ser encontrado pelo experimentador, "aquele que busca". É só naquele estado em que a mente já não está buscando, em que já não está cultivando, pela busca, um fim para ser alcançado, é só então que se torna possível despontar na existência a realidade.

Krishnamurti, Sexta Conferência em Londres, 26 de junho de 1955

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill