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quinta-feira, 19 de abril de 2018

A importância do estado de fome psicológica

A importância do estado de fome psicológica

[...] PERGUNTA: A liberdade não é como o ar, e não construímos para nós uma tenda semelhante a esta, que impede a entrada do ar? Basta perjurar a tenda para que o ar entre com abundância.

KRISHNAMURTI: Senhor, as comparações e as imagens verbais são extremamente perigosas, porque dão-nos o sentimento de termos compreendido quando na realidade não nos encontramos nesse estado. O que temos é meramente uma teoria. Mas, aqui, não falamos teoricamente; não estamos “imaginando” nada. Como expliquei no começo destas palestras, ocupamo-nos com fatos psicológicos. Se não enfrentamos os fatos psicológicos de nossa própria mente, então, “a tenda”, “o ar”, “a alma” e todas as demais imagens e teorias desmoronam, e somos destruídos.

Senhor, quando um homem está a morrer de fome, que bem lhe faz descrevermos para ele um prato suculento ou uma iguaria de delicado sabor? O que ele quer é comida. Teorias e descrições nenhuma significação têm para o homem que tem fome de descobrir por si mesmo o que é verdadeiro. Mas, infelizmente, a maioria de nós não tem fome nesse sentido. Estamos bem nutridos, psicologicamente, porque estamos repletos de nossas próprias experiências, e encontramos um abrigo seguro no dogma, na crença. Sentimo-nos em segurança porque pertencemos a este ou àquele grupo, a esta ou àquela igreja. E quando nos vem um sentimento de descontentamento — o que muito raramente acontece — logo tratamos de sufocá-lo, procurando alguma coisa que dê satisfação imediata. O que tem verdadeira importância é estarmos, no plano psicológico, terrivelmente famintos, e permanecermos nesse estado, sem nos tornarmos insanos ou neuróticos. A questão não é de como aplacar aquela fome, porque no momento em que o fazeis estais perdido. Podeis aplacá-la muito facilmente, com palavras, com teorias, com livros, com igrejas, com... oh!... com qualquer coisa. Mas, se permaneceis nesse estado de profunda “fome psicológica” sem desesperar, ela é então como que uma chama viva que destruirá todas as coisas falsas até nada mais restar senão cinzas; e desse vazio, algo real pode nascer.

PERGUNTA: A transformação de que falais se verifica pela ação da vontade? Existe, por trás dela, algum motivo?

KRISHNAMURTI: Ora, que é “vontade”? Por favor, não venhais com teorias; não citeis o que disse uma certa pessoa. Averiguemos o que essa palavra significa. “Ter vontade de fazer uma certa coisa” significa desejar fazê-la. A vontade, pois, é desejo, não? Muitos desejos, muitas ânsias, muitos impulsos, muitas resistências, muitas exigências, constituíram esse afiado instrumento, esse extraordinário senso de volição que é a vontade de fazer uma coisa e levá-la a cabo.

Todos sabemos que por meio da vontade podemos forçar-nos a fazer certas coisas. Se digo: “amanhã não me irritarei”, e exerço fortemente a minha vontade nesse sentido, posso evitar o irritar-me amanhã. Mas isso não é transformação; como antes assinalei, isso significa meramente que me estou ajustando a um desejado padrão. Por certo, nenhuma transformação efetuada por meio da vontade é transformação; significa, simplesmente, a continuação, numa forma diferente, daquilo que já existia. Se eu me transformo sob o impulso de um motivo — porque agrada a minha mãe, ou porque a sociedade exige que eu o faça, ou porque há uma certa vantagem em fazê-lo, etc. — essa transformação é um resultado de persuasão, influência, desejo de recompensa; por conseguinte, não é uma transformação real, porém apenas uma perpetuação “modificada” do passado. Ora, se compreendo tanto o mecanismo da transformação por meio da vontade como o da transformação sob o impulso de um motivo, de modo que ambos os mecanismos possam morrer e ser postos de lado sem nenhum esforço, então, dessa compreensão provirá uma transformação não premeditada, não produzida por nenhuma influência ou variados impulsos, compulsões; essa transformação significa, realmente, a total destruição do “conhecido”.

PERGUNTA: Essa transformação de que falais tem certa semelhança com um “passe de mágica”! Ora, se digo para mim mesmo: “Desejo transformar-me”, tenho um motivo; logo, devo transformar-me sem desejar transformar-me. O mesmo problema se apresenta em relação à ambição: Não podemos livrar-nos da ambição, desejando livrar-nos dela. Portanto, parece haver algum “truque” nisso.

KRISHNAMURTI: Senhor, mencionastes a palavra “ambição”. Em geral, somos ambiciosos, em maior ou menor grau, e todos sabemos o que a ambição implica: competição, crueldade, completa ausência de amor, etc. Ora, se sou ambicioso — ambicioso de posição, de poder, ambicioso de ser alguém neste mundo ou no chamado mundo “espiritual”, etc. — e comecei a perceber, por mim mesmo, que é estupidez ser ambicioso, como irei ficar inteiramente livre da ambição? Como operar essa radical transformação? Podeis não concordar comigo, mas escutai-me com calma.

Nossa educação, desde a infância, é desenvolvida em torno da ideia de “ vir a ser alguém”, de alcançar êxito, e poucos tivemos ocasião de aprender a amar o que fazemos. Quando amais o que estais fazendo, trabalhais sem objetivo, sem ânsia de êxito. Se amais alguém, não pensais no que ireis ganhar dessa pessoa. Não amais porque ele ou ela vos dá dinheiro, ou posição, ou outra espécie de satisfação. Simplesmente, amais — se tal amor realmente existe. Ora, se amo verdadeiramente o que estou fazendo, não há ambição. Não me comparo então com ninguém, jamais digo que um outro qualquer está obtendo melhores resultados do que eu. Amo o meu trabalho e, portanto, a minha mente, o meu coração, o meu ser inteiro está nele. Mas não somos educados dessa maneira. A sociedade exige uns tantos cientistas, uns tantos engenheiros, uns tantos técnicos, etc., e faz-nos “passar pela máquina” do chamado Colégio, a fim de adaptar-nos ao padrão requerido.

Amar o que se faz supõe uma total ausência de ambição. Não podeis eliminar a ambição por meio da vontade, ou procurar livrar-vos dela sob o impulso de um motivo, um propósito. A ambição “cai” de vós mesmo, como uma folha morta cai da árvore. Assim acontece quando amamos.

Krishnamurti, Saanen, 12 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito

sábado, 7 de abril de 2018

O mecanismo da fuga do vazio existencial


O mecanismo da fuga do vazio existencial

Penso que a maioria de nós acha a vida muito insípida. Para ganharmos o sustento, precisamos exercer uma certa profissão, e esta se torna muito monótona; começa-se uma rotina, que temos de seguir, ano por ano, até morrer. Ricos ou pobres, e ainda que sejamos muito eruditos ou dotados de espírito filosófico, nossas vidas são em geral superficiais, vazias. Há evidentemente uma insuficiência em nós mesmos, e ao nos tornarmos apercebidos desse vazio procuramos preenchê-lo com conhecimentos, com alguma espécie de atividade social, ou nos refugiamos em divertimentos de toda ordem, ou apegamo-nos a alguma crença religiosa. Ainda que tenhamos uma certa capacidade e sejamos muito eficientes, nossas vidas são, ainda assim, insípidas e, para nos livrarmos dessa insipidez, dessa cansativa monotonia da vida, buscamos uma certa forma de enriquecimento religioso, tentamos conquistar aquele "estado de ser" extramundano que não é uma rotina e que, por enquanto, pode ser chamado "o outro estado". Em nossa busca desse outro estado, encontramos muitos sistemas diferentes, diferentes caminhos que se supõe conduzirem a ele; e, assim, pelo disciplinamento de nós mesmos; pela prática de determinado sistema de meditação, pela observância de um certo ritual ou a repetição de certas frases, esperamos alcançar aquele estado. Sendo a nossa vida um ciclo interminável de dores e de prazeres, de variadas experiências sem muita significação ou mera repetição, sem sentido algum, de uma mesma experiência — o viver constitui para a maioria de nós uma monótona rotina. Por esta razão, o problema de nosso enriquecimento interior, da conquista do "outro estado" — chamai-o Deus, a Verdade, bem-aventurança ou como quiserdes — se torna muito urgente, não é verdade? Podeis estar bem de vida, bem casado, ter filhos podeis pensar inteligente e equilibradamente, entretanto, sem aquele estado, a vida se torna horrivelmente vazia.

Que se deve, pois, fazer? Como conquistar aquele estado? Ou é completamente impossível conquistá-lo? A nossa mente, como hoje está constituída, é sem dúvida muito insignificante, limitada, condicionada; e embora uma mente limitada possa especular a respeito do "outro estado", suas conjecturas serão sempre limitadas. Ela poderá formular um estado ideal, conceber e descrever aquele outro estado, mas suas concepções permanecem dentro de suas estreitas limitações, e penso que aí é que se encontra o fio da meada: no perceber que a mente não pode, em circunstância alguma, experimentar, viver aquele outro estado, se se limita a formulá-lo ou a especular a seu respeito. Não há dúvida de que esta é uma descoberta extraordinária: o perceber que, sendo a mente limitada, pequena, estreita, superficial, todo movimento que faça para alcançar aquele estado extraordinário, constitui um empecilho. O descobrimento deste fato, não especulativamente porém realmente, é o começo de uma maneira nova de considerar o problema.

Nossas mentes, em verdade, são produto do tempo, de muitos milhares de dias passados, resultado da experiência baseada no "conhecido"; e, em tais condições, a mente é uma continuação do "conhecido". A mente de cada um de nós é resultado de cultura, educação, e por mais extenso que seja o seu saber ou preparo técnico, ela é sempre produto do tempo; por conseguinte, é limitada, condicionada. Com esta mente, queremos descobrir o incognoscível; e compreender que essa mente nunca poderá descobrir o incognoscível, constitui uma experiência verdadeiramente extraordinária. Descobrir que a mente de um indivíduo, por mais sagaz, por mais sutil, por mais ilustrada que seja, não pode de modo nenhum compreender aquele outro estado — esse descobrimento traz consigo uma certa compreensão "factual" e acho que este é o começo de uma perspectiva da vida que poderá abrir a porta que conduz àquele outro estado.

Expressando o problema de maneira diferente: a mente está sempre e sempre ativa, "tagarelando", planejando, e é capaz de extraordinárias sutilezas e invenções. E de que maneira pode esta mente tornar-se quieta? Vê-se que toda atividade da mente, todo movimento que faça, em qualquer direção, é reação do passado. Como quietar esta mente? Se a quietamos por meio de disciplina, sua quietude é um estado em que não há investigação, busca, não é exato? Em tais condições, ela não está aberta para o "desconhecido", "o outro estado".

Não sei se já alguma vez pensastes neste problema, ou se nele tendes pensado unicamente pela maneira tradicional, ou seja, tendo um ideal e dirigindo-se para ele segundo uma certa fórmula ou a prática de determinada disciplina. Disciplina implica, invariavelmente, repressão e o conflito da dualidade — e isso está na esfera da mente e por esse caminho prosseguimos, esperando captar o outro estado. Mas nunca indagamos inteligentes e sãmente se nossa mente é capaz de captá-lo. Sugeriu-se-nos que a mente deve estar tranquila, mas a tranquilidade foi sempre cultivada por meio de disciplina. Isto é, temos o ideal de uma mente tranquila, e buscamos realizar este ideal por meio de controle, luta, esforço.

Ora bem, se considerais atentamente esse mecanismo, em sua inteireza, vereis que está todo no terreno do conhecido. Apercebida da monotonia de sua existência, cansada de suas repetidas experiências, empenha-se a mente em conquistar aquele "outro estado". Mas, quando se percebe que a mente é o "conhecido" e que todo movimento que faz não a leva ao outro estado, que é "o desconhecido", o nosso problema se resume então, não em como conquistar o desconhecido, mas em descobrir se a mente pode libertar-se do "conhecido". Penso que este problema deve ser considerado por todo aquele que deseje descobrir se existe alguma possibilidade de "realizar o outro estado", o desconhecido. Assim sendo, como pode a mente, que é resultado do passado, do conhecido, libertar-se do conhecido? Espero me esteja fazendo claro.

Como disse, a mente atual — tanto consciente como inconsciente — é produto do passado, resultado acumulado de influências raciais, climáticas, dietéticas, e outras. A mente, portanto, está condicionada, condicionada como cristã, hinduísta, budista ou comunista, e é bem óbvio que ela projeta aquilo que considera ser o real. Mas, quer a sua "projeção" seja a do comunista, que julga prever o futuro e quer forçar toda a humanidade a adaptar-se ao padrão de sua Utopia, quer seja a "projeção" do chamado homem religioso, que também julga conhecer o futuro e educa a criança, a pessoa de acordo com o seu ponto de vista particular — nem uma nem outra dessas projeções é o Real. Sem o Real, a vida se torna muito insípida, como é atualmente para a maioria das pessoas. E sendo insípidas as nossas vidas, começamos a tornar-nos românticos e sentimentais, a respeito do outro estado, do Real.

Ora, vendo-se que é este o padrão de nossa existência, e sem entrarmos em muitos pormenores, pergunto se é possível a mente libertar-se do conhecido, constituído das acumulações psicológicas do passado. Há também o conhecido representado pelas nossas atividades diárias, mas deste, como é bem óbvio, a mente não pode livrar-se; porque se qualquer de nós esquecesse o caminho de sua casa ou esquecesse os conhecimentos que o habilitam a ganhar o sustento, estaria à beira da demência. Mas pode a mente libertar-se dos fatores psicológicos do conhecido, que lhe oferecem a segurança pela associação e a identificação?

Para investigar esta matéria, teremos de descobrir se há realmente diferença entre o pensador e o pensamento, entre o observador e o objeto observado. Atualmente, há uma divisão entre os dois, não é verdade? Pensamos que o "eu", a entidade que experimenta, é diferente da experiência, do pensamento. Há um intervalo, uma divisão entre o pensador e o pensamento e por esta razão dizemos: "Tenho de controlar o pensamento". Mas o "eu", o pensador, é diferente do pensamento? O pensador está sempre procurando controlar o pensamento, moldá-lo de acordo com o que considera ser um padrão bom; mas existe pensador, se não existe pensamento? Só há pensar, e este cria o pensador. Podemos colocar o pensador em qualquer nível, chamá-lo o Supremo, o Atman; ou o que quer que seja; mas ele continua a ser resultado do pensar. O pensador não criou o pensamento; foi o pensamento que criou o pensador. Reconhecendo sua própria impermanência, o pensamento cria o pensador como entidade separada, a fim de dar permanência a si mesmo, pois é isso, afinal de contas, o que todos desejamos. Podeis dizer que a entidade a que chamais Atman, alma, pensador, está separada do pensamento, da experiência; mas só podeis estar apercebido da existência de uma entidade separada, por meio do pensamento e, também, por causa de vosso condicionamento como hinduísta, cristão, ou o que quer que sejais. Enquanto existir esta dualidade de pensador e pensamento, existirá necessariamente conflito, esforço, ou seja, a ação da vontade. E uma mente que quer libertar-se, que diz: "Tenho de libertar-me do passado" — o que essa mente faz é só criar outro padrão.

Assim, a mente só pode libertar-se — e só então se torna possível a existência do "outro estado" — depois de cessar o esforço do "eu" para alcançar um resultado, neste mundo ou no outro mundo. Tudo o que fazemos se baseia em luta, ambição, sucesso, consecução de objetivos; e por esta razão, pensamos que a "realização" de Deus, ou da Verdade, só se torna possível mediante esforço. Mas esforço denota atividade egocêntrica para alcançar um fim. Não significa abandono do "eu".

Agora, se estais apercebidos de todo esse processo da mente — tanto consciente como inconsciente — se o percebeis e compreendeis realmente, vereis a mente tornar-se sobremaneira tranquila, sem esforço algum. A tranquilidade conseguida a força de disciplina, controle, repressão, é a tranquilidade da morte. A tranquilidade a que me refiro se manifesta sem esforço algum assim que compreendemos todo esse mecanismo da mente. Só então existe possibilidade de manifestar-se aquele outro estado, que se pode chamar a Verdade, ou Deus.

Krishnamurti, Terceira Conferência em Madanapale
26 de fevereiro de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana


sexta-feira, 6 de abril de 2018

O mecanismo da insatisfação e do descontentamento

O mecanismo da insatisfação 

e do descontentamento

Parece-me muito importante descobrirmos, por nós mesmos, o que é que estamos buscando, e porque estamos buscando. Se pudermos examinar esta questão com certa profundeza, acho que descobriremos muitas coisas nela envolvidas. Os mais de nós estamos em busca de alguma espécie de preenchimento. Estando insatisfeitos, queremos achar a satisfação em certa relação, no exercício de certas capacidades, ou na busca de certa espécie de ação que seja completamente satisfatória. Ou, se não somos desse temperamento, então, em geral, buscamos o que pensamos ser a verdade, Deus, etc. Quase todos nós estamos buscando, procurando; e se pudéssemos, cada um de nós, descobrir por nós mesmos o que é que estamos buscando, e porque estamos buscando, esse descobrimento, penso, muitas coisas nos revelaria. Vendo-nos insatisfeitos com nós mesmos, com nosso ambiente, com nossas atividades, nossas ocupações, quase todos desejamos um emprego melhor, uma posição melhor, melhor compreensão, atividades mais amplas, uma filosofia mais satisfatória, um cargo inteiramente satisfatório. Exteriormente, é isso que desejamos; e, quando não podemos satisfazer-nos, procuramos águas mais profundas, cultivamos a filosofia, interessamo-nos por reformas, reunimo-nos em grupos diversos, para discutir, etc., e a insatisfação continua... Acho importante averiguarmos se o motivo de nossa busca é compreender a insatisfação, ou achar a satisfação. Porque, se é a satisfação que estamos buscando em qualquer nível, é claro, então, que nossa mente se tornará muito vulgar. Mas pode ser que haja um descontentamento sem objetivo, o descontentamento em si, que não é impulso para a consecução de um resultado, para se chegar a alguma parte. Acho que a maioria de nós, vendo-nos insatisfeitos com nossas relações, nossas profissões, nossas atitudes, nossos valores, estamos procurando desvencilhar-nos de tudo isso para adotarmos um diferente sistema de valores, diferentes relações, diferentes ideias, diferentes crenças; mas, no fundo de tudo isso, está o impulso para nos tornarmos satisfeitos.

Seria interessante se pudéssemos descobrir, por nós mesmos, se existe uma coisa tal como um descontentamento sem "motivo" algum, descontentamento que não seja produto de certa frustração; porque esse próprio descontentamento sem "motivo" pode ser a qualidade que se faz necessária. Presentemente, quando estamos buscando, a nossa busca resulta de insatisfação, descontentamento, e nosso "motivo" é achar satisfação desta ou daquela espécie. Principalmente quando falamos a respeito da verdade ou Deus, estamos — não é verdade? — em busca de certo estado de espírito que seja completamente satisfatório. Quer a mente seja muito ampla, muito sutil, quer tenha muito pouca capacidade, se ela está em busca da satisfação — ainda que sob a forma mais sutil — então os seus deuses, suas virtudes, suas filosofias, seus valores, serão forçosamente vulgares, mesquinhos, superficiais.

Nessas condições, é possível a mente ficar livre de toda busca, o que significa: livre daquele descontentamento cujo "motivo" é achar satisfação? Porque, por mais sutil e por mais inteligente que a mente seja, e quaisquer que sejam as virtudes que tenha cultivado, se ela está meramente buscando satisfação, sob qualquer forma, é então incapaz de compreender o que é verdadeiro. Sem dúvida, todo o mecanismo do pensar é medíocre, muito limitado. Afinal de contas, o pensar é resultado da memória acumulada, da associação, da experiência; o pensar é a reação dessa memória, a reação da mente condicionada. Quando esse condicionamento cria insatisfação, então tudo o que resulta dessa insatisfação é também condicionado. Nossa busca será sempre de todo em todo fútil enquanto estiver baseada num descontentamento que não seja mais do que uma simples reação a dado condicionamento.

Percebido isso, surge a questão de saber se existe alguma outra forma de descontentamento, se existe um descontentamento que não esteja "canalizado", que não tenha "motivo" algum, que não vise a um preenchimento. É possível que a coisa essencial seja esse descontentamento "sem motivo", esse descontentamento que não é reação a certo condicionamento. Por ora, o nosso pensar, a nossa busca, tem um "motivo", e esse motivo baseia-se em nossa exigência de um estado permanente de satisfação completa, ao abrigo de toda e qualquer perturbação, estado que chamamos "paz", "verdade", "Deus", etc.; e toda a finalidade da nossa busca é o alcance desse estado. Vemos, pois, que a busca, em geral está baseada na exigência de satisfação, na exigência de um estado de permanência, onde nunca sejamos perturbados. E pode uma mente nessas condições, cujo pensar é "motivado" pelo desejo de satisfação, descobrir, em algum tempo, o que é verdadeiro?

Parece-me que devemos compreender por nós mesmos todo o "mecanismo" que motiva a nossa busca, o porque buscamos, sem nos deixarmos satisfazer por nenhuma palavra preferida, nenhuma finalidade ou alvo preferido, por mais nobre, inspirador ou ideal que pareça. Porque, sem dúvida, o próprio do "eu" é, exatamente, esse constante "mecanismo" de descontentamento dirigido para uma realização, um preenchimento; é só isso que conhecemos. Quando não há preenchimento há frustração; e surgem então os numerosos problemas relativos a como superar este sentimento de frustração. E, assim, a mente busca um estado livre de frustração, sofrimento. Por conseguinte, a nossa busca da verdade pode ser, justamente, preenchimento, expansão do "eu", de "mim". E vemo-nos, assim, aprisionados neste círculo vicioso. Se estamos apercebidos disso, completamente, totalmente, não há então nenhuma tendência para o preenchimento em qualquer crença, qualquer dogma, qualquer atividade, ou qualquer estado particular. A busca de preenchimento implica sofrimento, frustração; e, se percebe a verdade a esse respeito, a mente deixa de buscar. Em meu sentir, há diferença entre a atenção que se dá a um objetivo e a atenção sem objetivo algum. Podemos concentrar-nos em dada ideia, crença, objetivo, o que é um processo de "exclusão"; e há outra atenção, um percebimento que não é "exclusivo". Identicamente, existe um descontentamento, sem "motivo", que não é produto de nenhuma frustração, que não pode ser "canalizado", que não pode aceitar preenchimento algum. Talvez eu não esteja empregando a palavra correta, mas acho que esse extraordinário descontentamento é a coisa essencial. Sem ele, qualquer outra forma de descontentamento se torna mero caminho para a satisfação.

Assim sendo, pode a mente que está apercebida de si mesma, que conhece as peculiaridades de seu próprio pensar, pôr fim a essa exigência de preenchimento? E, terminada ela, podemos permanecer sem buscar, num estado de completa vacuidade, sem esperança, sem medo? Não devemos chegar a esse estado, quando ocorre a completa cessação do buscar? Porque só então é que será possível acontecer algo que não é produto da mente. Nosso pensar, afinal de contas, resulta do tempo, de muitos dias passados; e, através do tempo, que é pensar, estamos tentando achar algo que está além do tempo. Estamo-nos servindo da mente, o instrumento do tempo, para achar uma coisa que não pode ser medida. Nessas condições, pode a mente imobilizar-se de todo para que possa acontecer algo, o que, naturalmente, não significa um estado de amnésia, um estado de inexistência, de não pensamento. Pelo contrário, isso requer muita vigilância, um percebimento em que não há objeto nem "entidade que percebe". Acho importante compreender isso. Atualmente, quando estamos percebendo, comumente, na vida cotidiana, nesse percebimento há julgamento, avaliação; tal é o nosso percebimento normal. Quando olhamos um quadro, começa a funcionar imediatamente o processo de condenação, de comparação, de avaliação; e não podemos ver o quadro, porque o mecanismo de avaliação, como uma cortina, se pôs de permeio. Podemos olhar o quadro sem avaliação, sem comparação? Analogamente, posso olhar a mim mesmo, não importa o que eu seja — todos os erros, tribulações, fracassos, tristezas, alegrias — e ver tudo isso sem avaliação, percebê-lo simplesmente, sem pôr no meio a cortina da condenação ou da comparação? Se a mente for capaz de fazê-lo, veremos que esse próprio percebimento "queima" a raiz de qualquer problema. Quando a mente está assim apercebida, totalmente cônscia, então não há busca; a mente já não está comparando, buscando a satisfação, pensando em termos de realizarão. Não é a mente, então, ela própria, atemporal? Enquanto a mente compara, condena, julga, está condicionada, e está no tempo; mas quando tudo isso cessou, de todo, não se acha então a própria mente naquele estado que se pode chamar "eternidade"? Nesse estado não há observador, não há "experimentador" que tem associações, que tem lembranças, que está buscando, pois tudo isso é produto do tempo. Enquanto o experimentador está buscando, tentando preencher-se, acumulando experiência, acumulando conhecimentos, tentando descobrir campos mais vastos onde viver, está criando o tempo, e suas ações, quaisquer que sejam, estarão sempre dentro da esfera temporal. O imensurável não pode, jamais, ser encontrado pelo experimentador, "aquele que busca". É só naquele estado em que a mente já não está buscando, em que já não está cultivando, pela busca, um fim para ser alcançado, é só então que se torna possível despontar na existência a realidade.

Krishnamurti, Sexta Conferência em Londres, 26 de junho de 1955

quinta-feira, 5 de abril de 2018

No aperfeiçoamento pessoal, o perpetuar do sofrimento

No aperfeiçoamento pessoal, 
o perpetuar do sofrimento

Afigura-se-me proveitoso o podermos investigar um problema em todos os seus aspectos, com aquele percebimento de que ontem estivemos falando, procedendo não teoricamente, mas praticamente, e descobrindo assim, por nós mesmos, a verdade contida nas palavras que ouvimos. Por isso me parece de suma importância o saber escutar. Os mais de nós não escutamos realmente. Temos muitas teorias, reações, respostas, que impedem efetivamente o verdadeiro escutar. Desejo tratar de um problema que considero muito complexo e que merece, portanto, uma atenção despida de qualquer esforço para compreender e da atitude de quem está meramente ouvindo uma explicação. Procuremos, antes, acompanhar com atenção e lucidez o desenvolver da investigação, de modo que possamos compreender o problema inteiro. Nossa civilização baseia-se na inveja, e nós somos o produto dessa civilização. Existe a inveja não só no aspecto social, onde se vê competição entre todos, para conquistar resultados, posições, poder etc., mas também interiormente ou, como se costuma dizer, espiritualmente, existe o mesmo impulso de aquisição. Penso que a maioria das pessoas está cônscia disso. A ânsia de chegar, de pegar, de compreender, de ser, de atingir um alvo, de achar a felicidade, Deus, ou o que mais seja, tudo isso, sem dúvida, constitui o "mecanismo" da aquisição, o impulso da inveja. A sociedade, desenvolvendo-se, vai refreando cada vez mais o instinto aquisitivo, exteriormente, por meio da legislação; mas, interiormente, não há lei capaz de refreá-lo. E a mim me parece que este instinto aquisitivo é um dos problemas principais; porque nele está implicado todo o "mecanismo" do esforço. Se pudermos examinar realmente este problema, e ver se é possível ficarmos livres, de fato, desse impulso para encontrarmos um refúgio seguro, para nos tornarmos algo, espiritualmente, acho que teremos resolvido um problema descomunal, talvez o único problema.

Afinal de contas, quando buscamos a Realidade, ou Deus, às vezes desejamos abandonar o mundo, com sua competição, suas divisões, suas lutas de classes e tudo o mais, e procuramos tornar-nos monges ou sanyasis. Mas não há abandono do mecanismo de aquisição, mesmo quando nos tornamos eremitas, mesmo quando renunciamos ao mundo. Prevalece sempre o desejo de "vir a ser" alguma coisa, seguir alguém para alcançar o conhecimento da Realidade, achar a Verdade; está sempre a impelir-nos a inveja, o desejo de aquisição, de ganho. Nesse "mecanismo" se baseia, social e espiritualmente, a nossa cultura, a nossa civilização. Todos os nossos esforços são dirigidos no sentido de adquirir virtude, bens, propriedade, ou um estado de felicidade, de bem-aventurança, e isso implica constante empenho, competição constante, luta para "sermos alguma coisa". Este é, a meu ver, um fato evidente do qual na maioria estamos conscientes.

Ora bem, é possível percebermos com clareza este problema, não só no plano consciente, mas também nas camadas profundas do inconsciente, de modo que possamos libertar-nos daquele impulso? Porque enquanto houver esta luta, por mais benéficos que sejam os seus resultados, num dado nível, ela é prejudicial, um obstáculo, noutro nível. Todos somos exercitados, educados para competir, tanto interior como exteriormente; e desse modo não existe amor a coisa alguma, por ela própria, mas sempre, só, a ideia de uma coisa que se precisa alcançar. Por certo, é de muita importância descobrir se a mente pode libertar-se de suas atividades aquisitivas. Em última análise, o nosso empenho em nos tornarmos virtuosos é uma forma de inveja, não achais? Podemos discutir a este respeito? Enquanto a mente estiver dominada pela inveja, sob qualquer forma, pelo desejo de realização, de alcançar um objetivo, buscar um resultado, buscar o Céu, a paz ou a Realidade, tem de haver uma constante acumulação, na memória, de fatores vários, que efetivamente desencorajam a qualquer um de se lançar ao descobrimento do real.

Essencialmente, temos medo de ser o que somos, não é verdade? E queremos modificar o que somos; mas, nesse "mecanismo" de modificação, surge o problema do "como". Nosso desejo é de sermos diferentes do que somos; e por isso andamos sempre em busca de um método como realizar nosso objetivo, como ser não violento etc. O problema resulta de ser nossa cultura aquisitiva, o que significa essencialmente invejosa; ela está baseada na inveja. Isto é muito fácil de perceber na vida social. Mas, interiormente, sob o aspecto dito "espiritual", intelectualmente, muito fundo, é sempre a mesma coisa que prevalece; a inveja é a base de nossa busca. Vendo-me aflito, infeliz, desejo modificar esse estado, fugir para outro estado. Por essa razão seguimos diferentes instrutores, ouvimos discursos sobre variados temas, lemos livros religiosos, tentamos reformar, disciplinar a nós mesmos, sempre com a mira num resultado. Se for possível estarmos apercebidos de tudo isso, então será também possível, talvez, compreendermos um estado no qual nenhum esforço existe. Podemos discutir a este respeito?

PERGUNTA: É condenável o desejo de melhora, aperfeiçoamento? Que estamos fazendo aqui, ouvindo-vos falar, senão buscando aperfeiçoar-nos?

KRISHNAMURTI: Esta é, com efeito, uma questão interessante, que vale a pena examinar, se for possível. Que é aperfeiçoamento pessoal? Antes de mais nada, para que possa haver aperfeiçoamento, temos de compreender o que é o "eu", a pessoa, não achais? Achamos que é lícito, correto, aspirar ao aperfeiçoamento pessoal. Mas que é que entendemos por "pessoa", "eu"? Existe um "eu", uma pessoa constante, suscetível de melhorar, uma entidade que tenha continuidade real, não aquela continuidade que desejamos ter? Existe uma continuidade do "eu", separada da continuidade do organismo físico, que tem seu nome particular, suas qualidades particulares, que vive em certo lugar e tem certas relações, um emprego etc.? Afora esta entidade, existe um "eu" contínuo?

AUDITÓRIO: Sim. Não.

KRISHNAMURTI: Isto, por certo, não é uma questão de opinião, de "sim" ou "não". Se desejamos investigar não devemos saltar a conclusões de espécie alguma. Não devemos tomar por um fato o que é mera opinião ou desejo. Nós queremos investigar se existe um "eu" suscetível de melhorar, de crescer: se há uma entidade permanente, que prossegue melhorando, melhorando sempre. Ou só há desejos, impulsos, compulsões, contraditórios, e aquele que predomina quer continuar, reprimindo os outros desejos? Ou, ainda, só existe um estado de fluidez, uma mudança constante, sem permanência alguma, e a mente, reconhecendo esta impermanência, esta fluidez, esta transitoriedade, aspira a algo permanente a que chama "eu" e que ela deseja tenha existência contínua, com aperfeiçoamento constante?

Quando falamos de aperfeiçoamento pessoal — Eu a tornar-me melhor, mais nobre, menos isto e mais aquilo — não há dúvida de que isso tudo não passa de um "mecanismo" de pensar, não é exato? Não existe "eu" permanente, mas, tão só, o desejo de termos permanência. Há, pois, possibilidade de melhoramento de "mim", posso melhorar a mim mesmo? Que se entende por aperfeiçoar, melhorar? Melhorar de quê, e para quê? Sou ganancioso e desejo melhorar, ser não ganancioso. Sou invejoso, irritadiço, o que quer que seja, e desejo mudar esse estado para outro. Faço grandes esforços, disciplino-me, pratico certas meditações etc. etc., lutando sempre e sempre para aperfeiçoar-me; mas nunca faço a pergunta básica: que é esse "eu" que deseja aperfeiçoar-se? Quem são essas duas entidades, a que observa e deseja mudar, e a que é observada? Estou sendo claro?

AUDITÓRIO: Sim. Sim.

KRISHNAMURTI: Bem, quando eu digo "preciso aperfeiçoar-me", quem é a entidade que diz "Preciso aperfeiçoar-me"? E existe uma entidade, um "eu", diferente da entidade que observa? Consideremos bem isto. Eu sou ávido, invejoso, e desejo melhorar, desejo expulsar a inveja. Aqui estão duas entidades, não é verdade? Uma que é invejosa, e a outra que deseja libertar-se da inveja.

OUVINTE: Não necessariamente; só há uma entidade.

KRISHNAMURTI: Vejamos. Qual é o "mecanismo" real? Eu sou invejoso; e sinto que não é esta a coisa mais conveniente, pois encerra sofrimento, é amoral; desejo por isso transformar a inveja, ou o que quer que seja. São estes os dois estados presentes em mim. Mas ambos estão na mesma esfera de pensamento, não é exato? O "eu" que é ávido e o "eu" que deseja mudar — os dois são "eu", não achais?

OUVINTE: No minuto em que nos decidimos a mudar, já não somos ávidos.

KRISHNAMURTI: Não estamos neste momento considerando como mudar, nem o que mudar. Quando falamos de "melhorar a nós mesmos", há de fato melhora, ou simplesmente a troca de uma capa por outra capa, a substituição de um conjunto de palavras e sentimentos por outro?

OUVINTE: Não há aperfeiçoamento, a menos que seja realizado o ideal.

KRISHNAMURTI: Quase todos nós perseguimos ideais: "o bom", "o belo", "o verdadeiro", "a não violência" etc. E sabemos porque os perseguimos: porque esperamos, por meio deles, transformar a nós mesmos. Os ideais nos servem de alavanca e estimulam-nos a transformar-nos, tornar-nos mais perfeitos. Este é um fato real, não? Considerai a violência: sou violento, e por isso tenho o ideal da não violência. Persigo esse ideal, tento praticá-lo, estou constantemente pensando nele, tentando mudar a mim mesmo e as tendências do meu pensar, a fim de ajustar-me ao ideal que para mim mesmo estabeleci.

Mas, realizado o ideal, efetuei alguma transformação real em mim mesmo? Ou não fiz mais do que substituir um conjunto de palavras por outro? A violência pode ser modificada com um ideal?

O que importa, sem dúvida, não é o ideal, mas a coisa concreta, o que é, a compreensão de o que é. O importante, para mim, é compreender o meu estado de violência, suas fontes, suas causas etc., e não que me esforce para alcançar um estado de não violência. Não é assim? Não achais que à maioria de nós é extremamente difícil abandonarmos os nossos ideais, apagá-los de todo, e nos aplicarmos àquilo que realmente é? Se estais inteiramente interessados em o que é, há então alguma possibilidade de aperfeiçoamento pessoal?

OUVINTE: Quer dizer que estas coisas todas desaparecem quando as discutimos?

KRISHNAMURTI: Nós não estamos interessados em como "fazer desaparecer coisas". O que nos interessa é investigar como se pode transformar uma coisa, tal como a avidez, sem conflito.

OUVINTE: Se estou interessado em o que é — digamos a violência — com isso não dou mais força à violência?

KRISHNAMURTI: É exato isso? Tende a bondade, examinemos bem isto. Todos os que aqui estamos somos aparentemente grandes idealistas; aceitamos os ideais como meio de transformarmos a nós mesmos. Podemos prosseguir partindo deste ponto, com todo o vagar?

OUVINTE: Um ideal não é bom ou mau, conforme o uso que dele se faz? Podeis comprar coisas boas ou coisas más, com vosso poder, vosso dinheiro; o mesmo se pode dizer dos ideais.

KRISHNAMURTI: Eu pensava que isto era uma questão antiquada, já há muito liquidada, mas vejo que estava enganado. Porque é que temos ideais?

OUVINTE: É principalmente porque fomos educados para termos ideais.

KRISHNAMURTI: Ainda que não tivésseis sido educado de acordo com certo padrão de pensamento, não criaríeis ideais, vós mesmo?

OUVINTE: Deu-nos Deus um cérebro para pensar, e com ele criamos ideais para nos ajudarem a progredir.

KRISHNAMURTI: Entremos nesta questão com vagar, passo a passo, e vejamos se descobrimos, nesta tarde, pelo menos uma coisa: porque temos ideais. Vejamos se os ideais têm alguma significação em nossas vidas — profundamente, não superficialmente. Investiguemos todas as consequências que estão implicadas nos ideais. Têm eles, realmente, alguma significação? Se não têm, podemos descartar-nos deles, de todo, e olhar as coisas de maneira totalmente diferente?

OUVINTE: Dá-nos muito prazer pensarmos no ideal.

OUVINTE: Os ideais não constituem uma via que nos aproxima da luz? Não somos atraídos para o Alto, mesmo sem o sabermos?

OUVINTE: Decerto nós estamos insatisfeitos com o que somos, e procuramos fugir desse estado. Se o que somos nos causa dor, tratamos de fugir da dor para algo que nos proporcione prazer e felicidade.

KRISHNAMURTI: É isso mesmo, não achais? Não estamos satisfeitos com o que somos e queremos fugir desse estado, ver-nos livres dessa insatisfação. Esta é a questão que nos concerne, não achais? Estamos insatisfeitos com o que somos.

OUVINTE: Não penso assim. Estou perfeitamente satisfeito com o que sou. Não vejo razão para não estar.

KRISHNAMURTI: Se eu estou perfeitamente satisfeito com o que sou, não há então problema algum, não há nada para debatermos aqui. Mas pode-se afirmar com segurança que quase todos nós estamos insatisfeitos.

OUVINTE: Não temos ideais porque dentro de todo ente humano arde uma centelha divina?

KRISHNAMURTI: Senhor, que quer dizer isso? Como podemos sabê-lo? O fato é que estou descontente com o que sou; tal é o estado da maioria de nós. Sou feio e desejo tornar-me belo; sou ávido e quero ser não ávido, porque a avidez traz no seu bojo a dor; sou apegado e desejo ser desapegado, porque o apego é fonte de sofrimentos. Tudo isso são aspectos da nossa insatisfação com o que é, não achais? Com nossa insatisfação esperamos realizar uma mudança, um resultado; queremos apagar toda insatisfação. Se pudermos, por ora, concentrar-nos só nesta questão, quem sabe se não chegaremos a compreendê-la toda?

Estou insatisfeito com o que sou. Esta insatisfação não nasceu porque estou comparando-me com outra coisa? Compreendeis esta pergunta? Estou insatisfeito comigo mesmo, porque vos vejo feliz, satisfeito. Vós tendes algo que eu não tenho, e desejo obter esse algo.

OUVINTE: Se acabamos com a insatisfação, se estamos bem apercebidos dela, se sabemos que "eu sou o que sou", que nos resta então para alcançar, para construir, estimular-nos a lutar?

KRISHNAMURTI: Acho que se formos andando com mais vagar, sem saltarmos a conclusões, haverá mais possibilidade de aprofundarmos a raiz do problema. Diz-se que temos ideais porque somos divinos. Mas eu não sei se sou divino. Podem-me ter dito que há dentro de mim uma centelha de divindade, mas a esse respeito nada sei, não é exato? Repito apenas o que ouvi dizer. Quero investigar, por mim mesmo, se existe tal coisa, tal divindade. E não poderei investigá-lo se a minha mente se acha insatisfeita, porque, em virtude de minha insatisfação, eu próprio posso criar um ideal da divindade, satisfatório para mim. Achando-me insatisfeito, psicologicamente, interiormente, a minha busca só pode visar à satisfação. Desse modo, crio uma verdade, um estado, uma realidade, uma bem-aventurança, um céu, a meu contento; trata-se, pois, apenas, de minha própria obra. Mas, se me for possível compreender porque estou insatisfeito, compreender todo o "mecanismo", todo o significado da insatisfação, estarei, então, talvez, apto a compreender algo muito superior, em vez de ficar meramente aferrado a uma criação minha, de meu próprio desejo.

Fixemos, pois, a atenção neste ponto: nós estamos insatisfeitos. Pois bem, o nosso problema então é este: se estou insatisfeito, como achar a satisfação? Pode ser que eu o esteja formulando rudemente, mas o fato real é este.

OUVINTE (levantando-se, brandindo a Bíblia): Eu encontro satisfação em ler a palavra de Deus. Converti-me, e desde que li a palavra de Deus estou satisfeito, e nada mais desejo.

KRISHNAMURTI: Exatamente, senhor. Todos estamos em busca da satisfação. Vós a achais na Bíblia; eu talvez a encontre num copo de bebida. Outro pode encontrar a satisfação no poder, no prestígio, no dinheiro; e eu posso achá-la no meu aperfeiçoamento pessoal. Como vemos, todos andamos atrás da satisfação. Não é exato isto?

AUDITÓRIO: Sim. Sim.

KRISHNAMURTI: Buscamos a satisfação na realização de um ideal, numa crença. Vós podeis achá-la de uma maneira e eu de outra maneira; a vossa pode ser uma dessas maneiras chamadas "nobres", e a minha uma das chamadas "ignóbeis". Mas o estímulo, o impulso, a tendência predominante é a de encontrarmos um estado de inalterável satisfação. Não é isso o que desejamos?

AUDITÓRIO: Sim. Sim.

OUVINTE: Mas esse impulso não se desfaz logo que transcendemos a nós mesmos? Isso é como ouvir música: a música nos arrebata a nós mesmos e às limitações da vida.

KRISHNAMURTI: Ora, por certo isto é só uma teoria — se eu fizesse isto aconteceria aquilo. Mera suposição. Mas o fato real é que estamos insatisfeitos e buscando a satisfação. É por isso que estais aqui a ouvir-me, não é? Esperais achar alguma coisa, ouvindo-me. Estais insatisfeito, estais buscando, sois infelizes, frustrados, em contradição, e desejais achar uma saída dessa desordem, desse caos; e, por isso, ficais escutando, na esperança de achardes aquela saída. Afinal, que significa, verdadeiramente, "estar insatisfeito"?

OUVINTE: Significa que nos falta a compreensão da Consciência Suprema.

KRISHNAMURTI: Ora, meu Senhor! Como pode uma mente que se acha tão perturbada, tão ansiosa, tão frustrada, que está constantemente exigindo, desejando — como pode uma mente nesse estado imaginar uma consciência suprema, ou qualquer desses ideais? Tudo isso pode ser puro absurdo. O fato real é que eu estou perturbado. Porque não partirmos daí? Estou insatisfeito; como achar a satisfação? Eis o nosso problema, não achais?

AUDITÓRIO: Sim. Sim.

OUVINTE: A busca de satisfação não é a mesma coisa que um estado de perturbação do "eu"?

KRISHNAMURTI: Investigaremos isso, senhor. Tende a bondade, vamos devagar, passo por passo. Eu estou insatisfeito, e vós também estais.

OUVINTE: Estou insatisfeito com o que sou. Se eu soubesse o que sou, seria muito mais feliz; mas não sei o que sou.

KRISHNAMURTI: O problema é só este, não achais? Sou infeliz e desejo achar a felicidade. Vejo-me num estado desditoso, de frustração, e desejo achar preenchimento.

OUVINTE: Por quê?

KRISHNAMURTI: Por favor, vejamos em primeiro lugar o fato, sem dizermos "porquê?" Examinaremos isto. Mas é este o fato?

OUVINTE: Sim, é este.

KRISHNAMURTI: Assim sendo, o que logo nos interessa é o como promover modificação. Sou infeliz e desejo ser feliz. Como operar esta transformação?

OUVINTE: Pelo ser feliz.

KRISHNAMURTI: Senhor, se disserdes a um homem infeliz: "seja feliz!" — isto nada significa, não?

OUVINTE: Percebo a insatisfação em mim mesmo, e que minha mente está fugindo desse estado.

KRISHNAMURTI: Exatamente. Sem nunca ter compreendido o mecanismo da insatisfação, só desejo fugir dela. Estou insatisfeito, sou infeliz, sou violento; não gosto de tal estado e desejo modificá-lo. E tenho o ideal como meio de operar a transformação em mim mesmo; ou saio a seguir alguém que promete mostrar-me a maneira de tornar-me satisfeito, feliz. E isso, em verdade, significa que, sem compreender o estado em que me acho, estou negando-o. Não é verdade? Estou negando o estado em que me encontro, porque aspiro a um estado que penso me dará satisfação, me dará felicidade, porá fim à minha frustração. Se, entretanto, em vez da fuga, lançássemos fora todos os ideais e encarássemos o fato de que estamos insatisfeitos, poderíamos então prosseguir investigando. Pois enquanto estou fugindo do fato de que estou insatisfeito, tentando tornar-me satisfeito, haverá necessariamente frustração. Nessas condições, preciso compreender este estado de insatisfação com todas as suas complicações, em vez de tentar mudá-lo para qualquer outra coisa.

Compreendemos este estado? E podemos, examinando-o juntos, libertar a nossa mente do ideal e encarar o fato de que sou violento? — o que não significa perguntar como não ser violento, pois isso é mera fuga ao fato. Posso olhar o fato?

OUVINTE: Que quereis dizer com "olhar o fato"?

KRISHNAMURTI: Podemos examinar isso agora? Como encaro, na realidade, o fato de que sou violento? Que significa "olhar uma coisa"? Significa: posso olhar a mim mesmo sem me condenar? Podemos olhar o fato da violência sem introduzir o desejo de ser "não violento"? A própria palavra "violência" tem sentido condenatório, não é verdade? Estais compreendendo?

AUDITÓRIO: Sim. Sim.

KRISHNAMURTI: Isto é, torno-me apercebido de que sou violento, invejoso. E para mim o que é importante é compreender esse estado, e não procurar alterá-lo. Porque o próprio desejo de alterar é uma fuga ao fato. A menos que isto esteja bem claro não podemos ir mais longe.

A dificuldade, aqui, é que cada um está interessado nos seus próprios pensamentos, na sua própria maneira de traduzir o que se está dizendo. Podemos observar esta questão, juntos, com toda a simplicidade? Eu sou invejoso. Sempre me disseram, desde a meninice, que isso é um defeito, e fui condicionado para condenar esse estado; estou, pois, insatisfeito com ele. Li em certos livros e ouvi dizer que a gente deve viver em paz, num estado de amor etc. Por isso, estou tentando mudar o que sou naquilo que deveria ser. Este "deveria ser" é o ideal, não é verdade? — uma fuga àquilo que sou. Penso que isto está bastante claro. Assim, tratemos, em primeiro lugar, de abandonar completamente o ideal. Para a maioria de nós, esta é a coisa mais difícil. A mente tem de libertar-se, antes de tudo o mais, do ideal. Quem sabe se não estou insatisfeito por causa do ideal? Sinto talvez que devia ser um ente nobre, e, como o não sou, vejo-me insatisfeito. Ou será a insatisfação uma coisa inerente ao meu ser, independente de comparação? Compreendeis o problema?

AUDITÓRIO: Sim.

KRISHNAMURTI: Se assim é, só conheço a insatisfação em virtude da comparação do ideal com aquilo que sou? E se não houvesse comparação, continuaria eu insatisfeito? Se eu não pensasse em termos de mais ou de menos, haveria insatisfação? É a insatisfação uma coisa inerente ao meu pensar, ao meu ser? Tenho conhecimento do ideal, ensinaram-me o que ele é, e, também, desejo aperfeiçoar-me, tornar-me coisa maior — e por esta razão estou insatisfeito. Mas enquanto eu pensar em termos de tempo — isto é, em "tornar-me alguma coisa" no futuro — tem de haver necessariamente insatisfação, não é certo? Assim, pode a mente libertar-se da comparação?

Estais aqui me ouvindo — não é verdade? — porque desejais alcançar certo estado de que vos falei. Se eu alcancei ou não tal estado, isto não importa. Vós desejais alcançá-lo. Por quê? Porque estais insatisfeitos, porque sois infelizes, vos sentis frustrados, não sois nada e desejais ser algo. E a este esforço para sairdes do estado em que vos achais para o estado que pensais deverdes alcançar, a esse esforço chama-se "mecanismo de desenvolvimento", não é verdade?

AUDITÓRIO: Sim.

KRISHNAMURTI: Mas, se eu for capaz de compreender o verdadeiro estado em que me encontro, então a ideia de tornar-me alguma coisa, a ideia de necessitar de tempo para o meu desenvolvimento, talvez seja sem cabimento, completamente falsa. E eu acho que o é. O problema, neste caso, é que estou insatisfeito, já não me interessa saber como alcançar a satisfação, porque vejo nisso uma fuga do fato real, a insatisfação, a infelicidade, a frustração. O fato real é que me sinto "frustrado", porque ando buscando preenchimento. Não é assim? Estou buscando o preenchimento e, por esta razão, me sinto frustrado. Pergunto, assim, a mim mesmo, se existe efetivamente preenchimento. Compreendeis? Enquanto estou buscando preenchimento há, concomitantemente, o medo de não poder preencher-me. Assim sendo, não achais acertado investigar se efetivamente há preenchimento, em vez de investigar como preencher-me, como acabar com a frustração que me domina? Porque enquanto me interessar o preenchimento tem de haver frustração. Isto é um fato óbvio.

Ora, porque é que buscamos preenchimento? — preenchimento no meu filho, no meu emprego, e por todas as outras maneiras. Sabemos o que significa esse preenchimento, não sendo necessário descrevê-lo com muita minúcia. Talvez não haja nenhuma possibilidade de preenchimento, e, por isso, quando o buscamos, há frustração e, consequentemente, sofrimentos. Se eu puder descobrir a verdade — se há ou não preenchimento — poderei talvez ficar livre da frustração. Assim, pois, há preenchimento? Eis a questão inteira. Está claro isto?

AUDITÓRIO: Sim.

KRISHNAMURTI: Em nossa vida de cada dia existe a ânsia de preenchimento. E a esta ânsia se associam a frustração, o pesar, o sofrimento, a inveja, e muitas outras coisas que conhecemos muito bem. Há sempre o sentimento de que nos falta algo, um sentimento de insuficiência, não é verdade? Posso preencher-me num sentido, e sentir-me completamente infeliz noutro sentido. Tal estado perdurará indefinidamente; a frustração é um processo contínuo. Meu problema, por conseguinte, é descobrir a verdade, isto é, se há preenchimento. E por que desejamos preencher-nos?

OUVINTE: Porque tememos o estado em que nos sentimos não preenchidos; temos medo de permanecer não preenchidos.

KRISHNAMURTI: Investiguemos, examinemos a nós mesmos. O preenchimento é um estado transitório, o interesse varia constantemente. Não há estado permanente de preenchimento, há? Portanto, por que existe o desejo de preenchimento?

OUVINTE: Porque ansiamos pela permanência.

KRISHNAMURTI: Logo, visto que, em nós mesmos, não somos permanentes, que nenhuma riqueza existe em nós, que somos interiormente pobres, e sofremos, buscamos o preenchimento, procuramos adquirir, ser algo. Esta é a raiz do problema, não achais? Estais percebendo?

AUDITÓRIO: Sim.

KRISHNAMURTI: Continuemos, então. Estamos confusos, sentimo-nos sós, insuficientes interiormente. Tal é o fato. Toda ação que nos distancia deste fato é uma fuga, não? E esta é uma das coisas mais difíceis: não fugir. Porque o observar, o considerar o fato, estar apercebido dele, exige não condenação do fato, não comparação, não avaliação. Assim sendo, podemos, não teoricamente, mas de maneira real, "experimentar" esta coisa de que estamos falando? Porque, então, veremos que é possível ficar totalmente livre desse sentimento de insuficiência, dessa causa fundamental dos nossos sofrimentos.

OUVINTE: Quereis dizer que devemos estar satisfeitos assim como somos?

KRISHNAMURTI: Não, senhor — porque isso só leva à estagnação, à imobilidade, à morte. Eu estou mostrando que qualquer interpretação de um fato ou se baseia na satisfação ou na insatisfação. Assim, posso observar aquele fato, que é a insuficiência interior, sem comparar, sem julgar? Posso observá-lo sem medo? Não é o meu medo ao fato que me obriga a fazer todas essas coisas, que me faz perseguir o ideal? Compreendemos agora que é o medo que nos leva a comparar, o medo de algo que não conhecemos? Demos-lhe o nome de "insuficiência", "solidão", "desdita", "confusão"; e, tendo dado um nome ao fato, condenamo-lo e fugimos dele. Quando não condenamos, quando não julgamos, quando não avaliamos e comparamos, resta-nos então só o medo. Está tudo claro até aqui?

AUDITÓRIO: Sim. Sim.

KRISHNAMURTI: Medo de quê? Entendeis esta pergunta? Tenho medo de um estado a que chamo "insuficiência". Eu não conheço esse estado, nunca o observei verdadeiramente, mas tenho-lhe medo. Porque lhe tenho medo, fujo dele. Mas, agora, não estou fugindo, por meio da comparação ou do ideal, porquanto já percebo a falsidade da fuga. Resta-me, pois, só o medo de uma coisa, a respeito da qual nada sei. Não é exato isso?

AUDITÓRIO: Sim.

KRISHNAMURTI: Se estais seguindo realmente o que estou dizendo — não verbalmente, intelectualmente, "descritivamente" — podereis ver claramente o "mecanismo" revelando-se, e as profundezas a que se pode descer. Já não tenho ideais, que perderam toda significação. Não estou mais lutando por um alvo. O fato é: tenho medo de uma coisa que não conheço; mas, se deixo de fugir dessa coisa, fico então em companhia do fato e do medo. Se me ocupo com o medo, se pergunto "como me livrarei do medo", isto será outra fuga do fato, não achais? Agora, estou interessado na compreensão de o que é; e vejo que, porque dei a uma coisa o nome de "vazio", "solidão", "insuficiência", criou-se o medo. O por um rótulo na coisa fez surgir a reação de medo a tal rótulo.

Em vista disso, pode a mente tornar-se apercebida da coisa, sem a condenar, nem julgar, nem fugir, nem lhe dar nome? É dificílimo, porque quase todos estamos tão condicionados para o cultivo do ideal que isso nos impede de encarar o fato real. Não somos capazes de observar o fato, por causa da comparação, porque a mente lhe põe um rótulo, lhe dá um nome. Mas, quando não se dá nome ao fato, quando não fugimos dele por meio dos ideais, da comparação, do julgamento, que resta então? Fica alguma coisa que possa ser chamada "insuficiência"? Existe ainda aquele desejo de preenchimento, que gera a frustração?

Estamos começando a descobrir como nossa mente foi até agora incapaz de observar qualquer coisa, livre desse processo confuso e contraditório. Só quando a mente é capaz de abandoná-lo de todo — não à custa de esforço, mas porque percebe a verdade a seu respeito —, só então a inveja cessa, cessa de todo. Já não está essa mente sob a influência de nenhuma sociedade ou cultura, porque toda a nossa cultura se baseia na inveja. E ver-se-á, então, que a mente não mais estará buscando, porque nada mais há que buscar. Essa mente estará então deveras tranquila. O mero repetir do que acabo de dizer não terá significação nenhuma. Mas o "experimentar", de fato, pelo autoconhecimento, sem acumular o que se "experimentou" — uma vez que a acumulação desfigura toda experiência ulterior —, o estar apercebido de tudo isso, dá-nos a verdade, dá-nos aquela extraordinária liberdade que vem quando estamos completamente sós. A mente que está completamente só, não contaminada, que não foge — essa mente é capaz de receber o que é verdadeiro.

Krishnamurti, Segunda Conferência em Londres, 18 de junho de 1955

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Como chegou a este grau de compreensão?

Pergunta: Pode dizer-nos como chegou a este grau de compreensão?

Krishnamurti: Receio que fosse demorar muito tempo, e pode ser muito pessoal. Em primeiro lugar, Senhores, eu não sou um filósofo, não sou um estudante de filosofia. Penso que aquele que seja apenas estudante de filosofia está já morto. Mas vivi com toda o gênero de pessoas, e fui criado, como talvez saibam, para levar a cabo uma certa função, um certo cargo. Mais uma vez, isso significa “explorador”. E era também o dirigente de uma enorme organização em todo o mundo, para fins espirituais; e vi a falácia disso, porque não se pode conduzir os homens à verdade. Só se pode torná-los inteligentes através da educação, o que nada tem a ver com sacerdotes e os seus meios de exploração – as cerimônias. Portanto dissolvi essa organização; e, vivendo com as pessoas, e não tendo uma ideia fixa sobre a vida, ou uma mente limitada por um determinado contexto tradicional, comecei a descobrir o que, para mim, é a verdade: verdade para toda a gente – uma vida que se pode viver saudavelmente, sensatamente, humanamente, não baseada na exploração, mas nas necessidades. Sei o que preciso, e que não é muito, portanto quer trabalhe para elas escavando um jardim, ou falando, ou escrevendo, isso não é de muita importância.

Em primeiro lugar, para descobrir qualquer coisa, tem que haver um grande descontentamento, um grande questionamento, infelicidade; e muito poucas pessoas no mundo, quando estão descontentes, desejam acentuar esse descontentamento, desejam passar por ele para descobrir. Geralmente as pessoas querem o oposto. Se estão descontentes, querem felicidade, ao passo que, por mim – se me permitem ser pessoal – eu não queria o oposto, eu queria descobrir; e assim gradualmente através de vários questionamentos e através de um atrito contínuo, cheguei a compreender isso a que se chama a verdade ou Deus. Espero ter respondido à pergunta.

Jiddu Krishnamurti em Auckland, Nova Zelândia, palestra a homens de negócios 6 de abril, 1934.

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

O Vazio que Somos

Talvez o caminho mais fácil para a compreensão do Vazio seja olhar diretamente para a natureza essencialmente vazia das nossas atividades e motivações, a partir de um ponto de vista fundamental — em resumo, através de uma autoconfrontação duramente honesta.
Na minha opinião, uma das coisas mais difíceis de fazer — mais difícil do que dominar qualquer disciplina intelectual, por complexa que seja — é despojar nossa vida de toda superficialidade, e examinar, para viver com ela, a integral conscientização daquilo que restar. Poucos são os que se permitiram enfrentar essa realidade, porque despojar-se de todo, psicologicamente, acarreta penoso reconhecimento da natureza e motivações básicas das pessoas. Enfrentar isso, que é como ser virado pelo avesso, ou leva o homem ao desespero e, possivelmente, ao suicídio, ou o conduz diretamente para o esclarecimento, o que consideramos como nada mais nada menos do que viver simplesmente como um ser humano, sem qualquer simulação, sem qualquer importância auto-reconhecida, sem quaisquer impulsos psicológicos que se dirijam para além do aqui e do agora. 

Quem quer que um dia se tenha empenhado em tal autoconfrontação, saberá, imediatamente, de que estamos falando. Por outro lado, a pessoa que ainda não chegou a tal exercício pode considerar útil explorar, não a confrontação em si — que para ela seria, inevitavelmente, por ouvir dizer, uma experiência de segunda mão — mas o que a leva a hesitar diante dela. Esta última indagação, a esta altura, pode fazer-se a única possível, e chegaria, mesmo, a levar diretamente a uma experiência de encarar o caráter básico da pessoa, o reconhecimento da substância primitiva do seu próprio ser. 

É o fato de tudo isso ser extremamente penoso que leva o homem a desistir de fazer o reconhecimento honesto de sua situação total e prosseguir com o confronto. A angústia não está apenas em ver como somos falsos, banais, feios, depois que todas as máscaras de embelezamento que usamos são retiradas. Ela alcança muito mais profundamente, vai ao próprio âmago do nosso ser, quando compreendemos o "artificialismo" da vida que levamos — e, com essa palavra, não estamos apenas nos referindo a um amor excessivo pelas coisas fabricadas, perda de contato com as coisas da terra, ou com a nossa acomodação a uma forma de vida cada vez mais mecanizada e automatizada. Essas coisas, por si mesmas, estariam longe de ser tão más quanto as fazemos, se apresentadas dentro da estrutura de uma perspectiva psicológica fundamentalmente sadia. O que queremos dizer, porém, é quando alguém possui uma visão compreensiva do "mim" e, assim, apreende sua essência, algo se impõe com muita força. É que nosso ser, nosso próprio pensamento, é orientado como causa-efeito numa escala extraordinária. Isso cria um estado de expectativa que nega e sobrepõe-se, inevitavelmente, ao aqui-e-agora. 

Psicologicamente, estamos nisso o tempo todo. Realizamos coisas para que certos efeitos sejam criados, ou trabalhamos por segurança maior, por maior aprovação social, ou para diminuir nosso senso de solidão, ou seja lá para o que possa ser. Estamos muito presos ao conceito do "a fim de que", por isso sempre "vivemos para", e jamais "vivemos", apenas. Há alguma coisa que fazemos, que pensamos, que não seja orientada para uma finalidade? (Talvez somente nas raras ocasiões em que o fazemos por amor e não estejam em jogo aquisições ou recompensas.) Penso que esta é uma descrição justa da nossa ocupação essencial na vida. 

Chega, então, a dura descoberta de que, na realidade, não há, absolutamente, o "a fim de que", não há o "viver para", tais coisas não existindo na natureza — é apenas o  intelecto a extrair dos fenômenos que observa algum tipo de explanação teológico, que, entretanto, permanece como intervenção humana. Com isso vem a compreensão da completa inanidade das nossas ocupações. Não seria tão mal se apenas alguns, ou uns poucos dos nossos esforços se revelassem vãos. Seria uma situação com a qual conseguiríamos tratar, porque a percepção representaria apenas um outro desafio: deslocar nossas atividades para novas áreas de interesse que oferecessem, ao menos, uma porção módica de incentivo. Ser, porém, confrontados com o vazio de tudo que estamos fazendo, pensando, almejando, é mais do que aquilo que podemos suportar. Não deixa, absolutamente, possibilidade de fugir ao nada, porque mesmo as fugas perderam agora o seu atrativo e são vistas como tão inúteis quanto as coisas quanto as coisas das quais queremos nos afastar. Subitamente, parece inteiramente claro que estivemos perdendo nosso tempo, empenhados como estávamos em atividades sem significação; ainda assim, o que temos pela frente é menos claro. Se não vamos continuar com as mesmas coisas — e depois do que foi tão claramente visto, não poderemos, de fato, fazer isso — que diferença faz viver ou morrer? Qual é, afinal, o sentido de nossa existência? Ainda há nela algum escopo? Afinal, para nós, que sempre consideramos ser o "esforço", o "trabalhar para" alguma coisa, sinônimo de "viver", a autoconfrontação fornece rápida visão de completa derrota. Mergulhados como ficamos nessa coisa chamada, provisoriamente, o "nada", ficamos, no momento, dado o choque, paralisados quanto ao nosso funcionamento, de hábito orientado para um objetivo.

Antes usávamos, prudentemente, o termo "artificialidade" quando nos empenhávamos em descrever nossa forma de viver, e agora vamos ver porque o fizemos: a Realidade nada sabe de fins, objetivos, conceitos e esforços dos seres humanos. O conceito integral de sociedade, com sua luta pelo poder entre as nações, as classes, os indivíduos e hierarquia social levando às perenes tentativas para "subir", tanto social como materialmente, são apenas invenções humanas. Ou talvez fosse mais exato dizer que são o produto de um tipo caracteristicamente diabólico da mente humana. Quando considerada como uma espécie de jogo, no qual o jogador mais ágil ganha um troféu, tal manobra, dentro de regras societárias, pode não afetar a mente de forma duradoura. Quando tomada seriamente, entretanto, torna-se uma armadilha — desperdício de tempo e de energia. Podemos dizer, por exemplo, que o prazer obtido pelos homens em assegurar seu poder sobre seus semelhantes, em "ganhar a competição", e assim por diante, é totalmente irreal. Na verdade, não passa de um sacalão que a mente recebe através de sua própria perversão natural, baseada na suposição de que o homem é alguma coisa que não é. (E, é preciso notar, essa perversão se revela, ao mesmo tempo, uma faceta da estrutura social existente.) Assim, a experiência é, realmente, uma espécie de masturbação psicológica, infinitamente mais nociva, porém, do que a fisiológica.

Ou, para usar outra forma de exemplo: eu sou, psicologicamente, e de forma completa, dependente de outra pessoa, e, subitamente, essa pessoa morre ou se afasta de mim, e eu fico sem nada. Sinto-me abandonado, obliterado, compreendo, com um choque, que toda a minha existência fora completamente irreal, que me vinha embalando da maneira mais insidiosa, e que a realidade não dá provimento às minhas necessidades e dependência psicológicas particulares. Por que fiz isso — arrimar-me em outra pessoa ou identificar-me com ela? Porque, desde o princípio, havia algo em minha situação pessoal que era, ao mesmo tempo, doloroso e assustador de contemplar. Não sendo capaz de enfrentar essa situação, considerei que, incorporado a uma outra pessoa, menos responsável me fazia, menos vulnerável, menos introspectivo, mais seguro. Mas, como era previsível, "aquilo" me atingiu.

Deixe-me dar apenas mais um exemplo da nossa vida no irreal. A morte é real e nós a aceitamos sem demasiada noção enquanto acontece com os que estão fora do círculo próximo da nossa família e amigos. O pensamento da nossa própria morte, entretanto, é a perplexidade, e a maioria das pessoas sente-se incapaz de encarar esse fato inevitável com serenidade. parece-me que essa atitude, como fuga da realidade, pode ser comparada à do homem que descobre que sua noiva, ou sua namorada, já não é virgem. Ele não é o primeiro, e sofre por isso. Entretanto, diante do fato de que, inevitavelmente, há que haver um primeiro, isso importa? Mulheres que perdem sua virgindade de maneira considerada prematura, e tantos homens como mulheres morrendo — de maneira quase sempre considerada prematura — são os átomos da realidade, que aceitamos no universal, e diante dos quais recuamos, no particular.

Tratamos dessa questão com certo pormenor, para tornar claro que nossas vidas são de fato artificiais, baseadas em muitas suposições não escritas e não discutidas, de natureza social e cultural arbitrária, e que qualquer tipo de artificialismo, implicando separação da realidade, significa conflito, portanto sofrimento. Isso se dá porque cedo ou tarde a bolha de pensamento confortador, que nos isola da realidade, estoura. A absorção, em nível subliminar, de todos os padrões de pensamento do mundo, é "condicionante". E ver através dos padrões de condicionamento é, na verdade, "aprender". tal como estão as coisas, todos vivemos condicionados mas há, literalmente, um mundo de diferença entre alguém que está inconsciente desse fato e a pessoa que sabe estar condicionada e convive com ele à luz da sua conscientização.

Em resumo: pode ser dito que através das nossas atividades, através de hábitos de pensamento indelevelmente impressos — todos, afinal, resultantes do princípio prazer-dor como mola-mestra — estamos completamente desligados do que é real, e assim, da única coisa que pode ser considerada como valendo verdadeiramente a pena. E é esse fato, acima de tudo, o responsável pela nossa angústia.

Dr. Robert Powell

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill