No aperfeiçoamento pessoal,
o perpetuar do sofrimento
Afigura-se-me proveitoso o podermos investigar um problema em todos os seus aspectos, com aquele percebimento de que ontem estivemos falando, procedendo não teoricamente, mas praticamente, e descobrindo assim, por nós mesmos, a verdade contida nas palavras que ouvimos. Por isso me parece de suma importância o saber escutar. Os mais de nós não escutamos realmente. Temos muitas teorias, reações, respostas, que impedem efetivamente o verdadeiro escutar. Desejo tratar de um problema que considero muito complexo e que merece, portanto, uma atenção despida de qualquer esforço para compreender e da atitude de quem está meramente ouvindo uma explicação. Procuremos, antes, acompanhar com atenção e lucidez o desenvolver da investigação, de modo que possamos compreender o problema inteiro. Nossa civilização baseia-se na inveja, e nós somos o produto dessa civilização. Existe a inveja não só no aspecto social, onde se vê competição entre todos, para conquistar resultados, posições, poder etc., mas também interiormente ou, como se costuma dizer, espiritualmente, existe o mesmo impulso de aquisição. Penso que a maioria das pessoas está cônscia disso. A ânsia de chegar, de pegar, de compreender, de ser, de atingir um alvo, de achar a felicidade, Deus, ou o que mais seja, tudo isso, sem dúvida, constitui o "mecanismo" da aquisição, o impulso da inveja. A sociedade, desenvolvendo-se, vai refreando cada vez mais o instinto aquisitivo, exteriormente, por meio da legislação; mas, interiormente, não há lei capaz de refreá-lo. E a mim me parece que este instinto aquisitivo é um dos problemas principais; porque nele está implicado todo o "mecanismo" do esforço. Se pudermos examinar realmente este problema, e ver se é possível ficarmos livres, de fato, desse impulso para encontrarmos um refúgio seguro, para nos tornarmos algo, espiritualmente, acho que teremos resolvido um problema descomunal, talvez o único problema.
Afinal de contas, quando buscamos a Realidade, ou Deus, às vezes desejamos abandonar o mundo, com sua competição, suas divisões, suas lutas de classes e tudo o mais, e procuramos tornar-nos monges ou sanyasis. Mas não há abandono do mecanismo de aquisição, mesmo quando nos tornamos eremitas, mesmo quando renunciamos ao mundo. Prevalece sempre o desejo de "vir a ser" alguma coisa, seguir alguém para alcançar o conhecimento da Realidade, achar a Verdade; está sempre a impelir-nos a inveja, o desejo de aquisição, de ganho. Nesse "mecanismo" se baseia, social e espiritualmente, a nossa cultura, a nossa civilização. Todos os nossos esforços são dirigidos no sentido de adquirir virtude, bens, propriedade, ou um estado de felicidade, de bem-aventurança, e isso implica constante empenho, competição constante, luta para "sermos alguma coisa". Este é, a meu ver, um fato evidente do qual na maioria estamos conscientes.
Ora bem, é possível percebermos com clareza este problema, não só no plano consciente, mas também nas camadas profundas do inconsciente, de modo que possamos libertar-nos daquele impulso? Porque enquanto houver esta luta, por mais benéficos que sejam os seus resultados, num dado nível, ela é prejudicial, um obstáculo, noutro nível. Todos somos exercitados, educados para competir, tanto interior como exteriormente; e desse modo não existe amor a coisa alguma, por ela própria, mas sempre, só, a ideia de uma coisa que se precisa alcançar. Por certo, é de muita importância descobrir se a mente pode libertar-se de suas atividades aquisitivas. Em última análise, o nosso empenho em nos tornarmos virtuosos é uma forma de inveja, não achais? Podemos discutir a este respeito? Enquanto a mente estiver dominada pela inveja, sob qualquer forma, pelo desejo de realização, de alcançar um objetivo, buscar um resultado, buscar o Céu, a paz ou a Realidade, tem de haver uma constante acumulação, na memória, de fatores vários, que efetivamente desencorajam a qualquer um de se lançar ao descobrimento do real.
Essencialmente, temos medo de ser o que somos, não é verdade? E queremos modificar o que somos; mas, nesse "mecanismo" de modificação, surge o problema do "como". Nosso desejo é de sermos diferentes do que somos; e por isso andamos sempre em busca de um método como realizar nosso objetivo, como ser não violento etc. O problema resulta de ser nossa cultura aquisitiva, o que significa essencialmente invejosa; ela está baseada na inveja. Isto é muito fácil de perceber na vida social. Mas, interiormente, sob o aspecto dito "espiritual", intelectualmente, muito fundo, é sempre a mesma coisa que prevalece; a inveja é a base de nossa busca. Vendo-me aflito, infeliz, desejo modificar esse estado, fugir para outro estado. Por essa razão seguimos diferentes instrutores, ouvimos discursos sobre variados temas, lemos livros religiosos, tentamos reformar, disciplinar a nós mesmos, sempre com a mira num resultado. Se for possível estarmos apercebidos de tudo isso, então será também possível, talvez, compreendermos um estado no qual nenhum esforço existe. Podemos discutir a este respeito?
PERGUNTA: É condenável o desejo de melhora, aperfeiçoamento? Que estamos fazendo aqui, ouvindo-vos falar, senão buscando aperfeiçoar-nos?
KRISHNAMURTI: Esta é, com efeito, uma questão interessante, que vale a pena examinar, se for possível. Que é aperfeiçoamento pessoal? Antes de mais nada, para que possa haver aperfeiçoamento, temos de compreender o que é o "eu", a pessoa, não achais? Achamos que é lícito, correto, aspirar ao aperfeiçoamento pessoal. Mas que é que entendemos por "pessoa", "eu"? Existe um "eu", uma pessoa constante, suscetível de melhorar, uma entidade que tenha continuidade real, não aquela continuidade que desejamos ter? Existe uma continuidade do "eu", separada da continuidade do organismo físico, que tem seu nome particular, suas qualidades particulares, que vive em certo lugar e tem certas relações, um emprego etc.? Afora esta entidade, existe um "eu" contínuo?
AUDITÓRIO: Sim. Não.
KRISHNAMURTI: Isto, por certo, não é uma questão de opinião, de "sim" ou "não". Se desejamos investigar não devemos saltar a conclusões de espécie alguma. Não devemos tomar por um fato o que é mera opinião ou desejo. Nós queremos investigar se existe um "eu" suscetível de melhorar, de crescer: se há uma entidade permanente, que prossegue melhorando, melhorando sempre. Ou só há desejos, impulsos, compulsões, contraditórios, e aquele que predomina quer continuar, reprimindo os outros desejos? Ou, ainda, só existe um estado de fluidez, uma mudança constante, sem permanência alguma, e a mente, reconhecendo esta impermanência, esta fluidez, esta transitoriedade, aspira a algo permanente a que chama "eu" e que ela deseja tenha existência contínua, com aperfeiçoamento constante?
Quando falamos de aperfeiçoamento pessoal — Eu a tornar-me melhor, mais nobre, menos isto e mais aquilo — não há dúvida de que isso tudo não passa de um "mecanismo" de pensar, não é exato? Não existe "eu" permanente, mas, tão só, o desejo de termos permanência. Há, pois, possibilidade de melhoramento de "mim", posso melhorar a mim mesmo? Que se entende por aperfeiçoar, melhorar? Melhorar de quê, e para quê? Sou ganancioso e desejo melhorar, ser não ganancioso. Sou invejoso, irritadiço, o que quer que seja, e desejo mudar esse estado para outro. Faço grandes esforços, disciplino-me, pratico certas meditações etc. etc., lutando sempre e sempre para aperfeiçoar-me; mas nunca faço a pergunta básica: que é esse "eu" que deseja aperfeiçoar-se? Quem são essas duas entidades, a que observa e deseja mudar, e a que é observada? Estou sendo claro?
AUDITÓRIO: Sim. Sim.
KRISHNAMURTI: Bem, quando eu digo "preciso aperfeiçoar-me", quem é a entidade que diz "Preciso aperfeiçoar-me"? E existe uma entidade, um "eu", diferente da entidade que observa? Consideremos bem isto. Eu sou ávido, invejoso, e desejo melhorar, desejo expulsar a inveja. Aqui estão duas entidades, não é verdade? Uma que é invejosa, e a outra que deseja libertar-se da inveja.
OUVINTE: Não necessariamente; só há uma entidade.
KRISHNAMURTI: Vejamos. Qual é o "mecanismo" real? Eu sou invejoso; e sinto que não é esta a coisa mais conveniente, pois encerra sofrimento, é amoral; desejo por isso transformar a inveja, ou o que quer que seja. São estes os dois estados presentes em mim. Mas ambos estão na mesma esfera de pensamento, não é exato? O "eu" que é ávido e o "eu" que deseja mudar — os dois são "eu", não achais?
OUVINTE: No minuto em que nos decidimos a mudar, já não somos ávidos.
KRISHNAMURTI: Não estamos neste momento considerando como mudar, nem o que mudar. Quando falamos de "melhorar a nós mesmos", há de fato melhora, ou simplesmente a troca de uma capa por outra capa, a substituição de um conjunto de palavras e sentimentos por outro?
OUVINTE: Não há aperfeiçoamento, a menos que seja realizado o ideal.
KRISHNAMURTI: Quase todos nós perseguimos ideais: "o bom", "o belo", "o verdadeiro", "a não violência" etc. E sabemos porque os perseguimos: porque esperamos, por meio deles, transformar a nós mesmos. Os ideais nos servem de alavanca e estimulam-nos a transformar-nos, tornar-nos mais perfeitos. Este é um fato real, não? Considerai a violência: sou violento, e por isso tenho o ideal da não violência. Persigo esse ideal, tento praticá-lo, estou constantemente pensando nele, tentando mudar a mim mesmo e as tendências do meu pensar, a fim de ajustar-me ao ideal que para mim mesmo estabeleci.
Mas, realizado o ideal, efetuei alguma transformação real em mim mesmo? Ou não fiz mais do que substituir um conjunto de palavras por outro? A violência pode ser modificada com um ideal?
O que importa, sem dúvida, não é o ideal, mas a coisa concreta, o que é, a compreensão de o que é. O importante, para mim, é compreender o meu estado de violência, suas fontes, suas causas etc., e não que me esforce para alcançar um estado de não violência. Não é assim? Não achais que à maioria de nós é extremamente difícil abandonarmos os nossos ideais, apagá-los de todo, e nos aplicarmos àquilo que realmente é? Se estais inteiramente interessados em o que é, há então alguma possibilidade de aperfeiçoamento pessoal?
OUVINTE: Quer dizer que estas coisas todas desaparecem quando as discutimos?
KRISHNAMURTI: Nós não estamos interessados em como "fazer desaparecer coisas". O que nos interessa é investigar como se pode transformar uma coisa, tal como a avidez, sem conflito.
OUVINTE: Se estou interessado em o que é — digamos a violência — com isso não dou mais força à violência?
KRISHNAMURTI: É exato isso? Tende a bondade, examinemos bem isto. Todos os que aqui estamos somos aparentemente grandes idealistas; aceitamos os ideais como meio de transformarmos a nós mesmos. Podemos prosseguir partindo deste ponto, com todo o vagar?
OUVINTE: Um ideal não é bom ou mau, conforme o uso que dele se faz? Podeis comprar coisas boas ou coisas más, com vosso poder, vosso dinheiro; o mesmo se pode dizer dos ideais.
KRISHNAMURTI: Eu pensava que isto era uma questão antiquada, já há muito liquidada, mas vejo que estava enganado. Porque é que temos ideais?
OUVINTE: É principalmente porque fomos educados para termos ideais.
KRISHNAMURTI: Ainda que não tivésseis sido educado de acordo com certo padrão de pensamento, não criaríeis ideais, vós mesmo?
OUVINTE: Deu-nos Deus um cérebro para pensar, e com ele criamos ideais para nos ajudarem a progredir.
KRISHNAMURTI: Entremos nesta questão com vagar, passo a passo, e vejamos se descobrimos, nesta tarde, pelo menos uma coisa: porque temos ideais. Vejamos se os ideais têm alguma significação em nossas vidas — profundamente, não superficialmente. Investiguemos todas as consequências que estão implicadas nos ideais. Têm eles, realmente, alguma significação? Se não têm, podemos descartar-nos deles, de todo, e olhar as coisas de maneira totalmente diferente?
OUVINTE: Dá-nos muito prazer pensarmos no ideal.
OUVINTE: Os ideais não constituem uma via que nos aproxima da luz? Não somos atraídos para o Alto, mesmo sem o sabermos?
OUVINTE: Decerto nós estamos insatisfeitos com o que somos, e procuramos fugir desse estado. Se o que somos nos causa dor, tratamos de fugir da dor para algo que nos proporcione prazer e felicidade.
KRISHNAMURTI: É isso mesmo, não achais? Não estamos satisfeitos com o que somos e queremos fugir desse estado, ver-nos livres dessa insatisfação. Esta é a questão que nos concerne, não achais? Estamos insatisfeitos com o que somos.
OUVINTE: Não penso assim. Estou perfeitamente satisfeito com o que sou. Não vejo razão para não estar.
KRISHNAMURTI: Se eu estou perfeitamente satisfeito com o que sou, não há então problema algum, não há nada para debatermos aqui. Mas pode-se afirmar com segurança que quase todos nós estamos insatisfeitos.
OUVINTE: Não temos ideais porque dentro de todo ente humano arde uma centelha divina?
KRISHNAMURTI: Senhor, que quer dizer isso? Como podemos sabê-lo? O fato é que estou descontente com o que sou; tal é o estado da maioria de nós. Sou feio e desejo tornar-me belo; sou ávido e quero ser não ávido, porque a avidez traz no seu bojo a dor; sou apegado e desejo ser desapegado, porque o apego é fonte de sofrimentos. Tudo isso são aspectos da nossa insatisfação com o que é, não achais? Com nossa insatisfação esperamos realizar uma mudança, um resultado; queremos apagar toda insatisfação. Se pudermos, por ora, concentrar-nos só nesta questão, quem sabe se não chegaremos a compreendê-la toda?
Estou insatisfeito com o que sou. Esta insatisfação não nasceu porque estou comparando-me com outra coisa? Compreendeis esta pergunta? Estou insatisfeito comigo mesmo, porque vos vejo feliz, satisfeito. Vós tendes algo que eu não tenho, e desejo obter esse algo.
OUVINTE: Se acabamos com a insatisfação, se estamos bem apercebidos dela, se sabemos que "eu sou o que sou", que nos resta então para alcançar, para construir, estimular-nos a lutar?
KRISHNAMURTI: Acho que se formos andando com mais vagar, sem saltarmos a conclusões, haverá mais possibilidade de aprofundarmos a raiz do problema. Diz-se que temos ideais porque somos divinos. Mas eu não sei se sou divino. Podem-me ter dito que há dentro de mim uma centelha de divindade, mas a esse respeito nada sei, não é exato? Repito apenas o que ouvi dizer. Quero investigar, por mim mesmo, se existe tal coisa, tal divindade. E não poderei investigá-lo se a minha mente se acha insatisfeita, porque, em virtude de minha insatisfação, eu próprio posso criar um ideal da divindade, satisfatório para mim. Achando-me insatisfeito, psicologicamente, interiormente, a minha busca só pode visar à satisfação. Desse modo, crio uma verdade, um estado, uma realidade, uma bem-aventurança, um céu, a meu contento; trata-se, pois, apenas, de minha própria obra. Mas, se me for possível compreender porque estou insatisfeito, compreender todo o "mecanismo", todo o significado da insatisfação, estarei, então, talvez, apto a compreender algo muito superior, em vez de ficar meramente aferrado a uma criação minha, de meu próprio desejo.
Fixemos, pois, a atenção neste ponto: nós estamos insatisfeitos. Pois bem, o nosso problema então é este: se estou insatisfeito, como achar a satisfação? Pode ser que eu o esteja formulando rudemente, mas o fato real é este.
OUVINTE (levantando-se, brandindo a Bíblia): Eu encontro satisfação em ler a palavra de Deus. Converti-me, e desde que li a palavra de Deus estou satisfeito, e nada mais desejo.
KRISHNAMURTI: Exatamente, senhor. Todos estamos em busca da satisfação. Vós a achais na Bíblia; eu talvez a encontre num copo de bebida. Outro pode encontrar a satisfação no poder, no prestígio, no dinheiro; e eu posso achá-la no meu aperfeiçoamento pessoal. Como vemos, todos andamos atrás da satisfação. Não é exato isto?
AUDITÓRIO: Sim. Sim.
KRISHNAMURTI: Buscamos a satisfação na realização de um ideal, numa crença. Vós podeis achá-la de uma maneira e eu de outra maneira; a vossa pode ser uma dessas maneiras chamadas "nobres", e a minha uma das chamadas "ignóbeis". Mas o estímulo, o impulso, a tendência predominante é a de encontrarmos um estado de inalterável satisfação. Não é isso o que desejamos?
AUDITÓRIO: Sim. Sim.
OUVINTE: Mas esse impulso não se desfaz logo que transcendemos a nós mesmos? Isso é como ouvir música: a música nos arrebata a nós mesmos e às limitações da vida.
KRISHNAMURTI: Ora, por certo isto é só uma teoria — se eu fizesse isto aconteceria aquilo. Mera suposição. Mas o fato real é que estamos insatisfeitos e buscando a satisfação. É por isso que estais aqui a ouvir-me, não é? Esperais achar alguma coisa, ouvindo-me. Estais insatisfeito, estais buscando, sois infelizes, frustrados, em contradição, e desejais achar uma saída dessa desordem, desse caos; e, por isso, ficais escutando, na esperança de achardes aquela saída. Afinal, que significa, verdadeiramente, "estar insatisfeito"?
OUVINTE: Significa que nos falta a compreensão da Consciência Suprema.
KRISHNAMURTI: Ora, meu Senhor! Como pode uma mente que se acha tão perturbada, tão ansiosa, tão frustrada, que está constantemente exigindo, desejando — como pode uma mente nesse estado imaginar uma consciência suprema, ou qualquer desses ideais? Tudo isso pode ser puro absurdo. O fato real é que eu estou perturbado. Porque não partirmos daí? Estou insatisfeito; como achar a satisfação? Eis o nosso problema, não achais?
AUDITÓRIO: Sim. Sim.
OUVINTE: A busca de satisfação não é a mesma coisa que um estado de perturbação do "eu"?
KRISHNAMURTI: Investigaremos isso, senhor. Tende a bondade, vamos devagar, passo por passo. Eu estou insatisfeito, e vós também estais.
OUVINTE: Estou insatisfeito com o que sou. Se eu soubesse o que sou, seria muito mais feliz; mas não sei o que sou.
KRISHNAMURTI: O problema é só este, não achais? Sou infeliz e desejo achar a felicidade. Vejo-me num estado desditoso, de frustração, e desejo achar preenchimento.
OUVINTE: Por quê?
KRISHNAMURTI: Por favor, vejamos em primeiro lugar o fato, sem dizermos "porquê?" Examinaremos isto. Mas é este o fato?
OUVINTE: Sim, é este.
KRISHNAMURTI: Assim sendo, o que logo nos interessa é o como promover modificação. Sou infeliz e desejo ser feliz. Como operar esta transformação?
OUVINTE: Pelo ser feliz.
KRISHNAMURTI: Senhor, se disserdes a um homem infeliz: "seja feliz!" — isto nada significa, não?
OUVINTE: Percebo a insatisfação em mim mesmo, e que minha mente está fugindo desse estado.
KRISHNAMURTI: Exatamente. Sem nunca ter compreendido o mecanismo da insatisfação, só desejo fugir dela. Estou insatisfeito, sou infeliz, sou violento; não gosto de tal estado e desejo modificá-lo. E tenho o ideal como meio de operar a transformação em mim mesmo; ou saio a seguir alguém que promete mostrar-me a maneira de tornar-me satisfeito, feliz. E isso, em verdade, significa que, sem compreender o estado em que me acho, estou negando-o. Não é verdade? Estou negando o estado em que me encontro, porque aspiro a um estado que penso me dará satisfação, me dará felicidade, porá fim à minha frustração. Se, entretanto, em vez da fuga, lançássemos fora todos os ideais e encarássemos o fato de que estamos insatisfeitos, poderíamos então prosseguir investigando. Pois enquanto estou fugindo do fato de que estou insatisfeito, tentando tornar-me satisfeito, haverá necessariamente frustração. Nessas condições, preciso compreender este estado de insatisfação com todas as suas complicações, em vez de tentar mudá-lo para qualquer outra coisa.
Compreendemos este estado? E podemos, examinando-o juntos, libertar a nossa mente do ideal e encarar o fato de que sou violento? — o que não significa perguntar como não ser violento, pois isso é mera fuga ao fato. Posso olhar o fato?
OUVINTE: Que quereis dizer com "olhar o fato"?
KRISHNAMURTI: Podemos examinar isso agora? Como encaro, na realidade, o fato de que sou violento? Que significa "olhar uma coisa"? Significa: posso olhar a mim mesmo sem me condenar? Podemos olhar o fato da violência sem introduzir o desejo de ser "não violento"? A própria palavra "violência" tem sentido condenatório, não é verdade? Estais compreendendo?
AUDITÓRIO: Sim. Sim.
KRISHNAMURTI: Isto é, torno-me apercebido de que sou violento, invejoso. E para mim o que é importante é compreender esse estado, e não procurar alterá-lo. Porque o próprio desejo de alterar é uma fuga ao fato. A menos que isto esteja bem claro não podemos ir mais longe.
A dificuldade, aqui, é que cada um está interessado nos seus próprios pensamentos, na sua própria maneira de traduzir o que se está dizendo. Podemos observar esta questão, juntos, com toda a simplicidade? Eu sou invejoso. Sempre me disseram, desde a meninice, que isso é um defeito, e fui condicionado para condenar esse estado; estou, pois, insatisfeito com ele. Li em certos livros e ouvi dizer que a gente deve viver em paz, num estado de amor etc. Por isso, estou tentando mudar o que sou naquilo que deveria ser. Este "deveria ser" é o ideal, não é verdade? — uma fuga àquilo que sou. Penso que isto está bastante claro. Assim, tratemos, em primeiro lugar, de abandonar completamente o ideal. Para a maioria de nós, esta é a coisa mais difícil. A mente tem de libertar-se, antes de tudo o mais, do ideal. Quem sabe se não estou insatisfeito por causa do ideal? Sinto talvez que devia ser um ente nobre, e, como o não sou, vejo-me insatisfeito. Ou será a insatisfação uma coisa inerente ao meu ser, independente de comparação? Compreendeis o problema?
AUDITÓRIO: Sim.
KRISHNAMURTI: Se assim é, só conheço a insatisfação em virtude da comparação do ideal com aquilo que sou? E se não houvesse comparação, continuaria eu insatisfeito? Se eu não pensasse em termos de mais ou de menos, haveria insatisfação? É a insatisfação uma coisa inerente ao meu pensar, ao meu ser? Tenho conhecimento do ideal, ensinaram-me o que ele é, e, também, desejo aperfeiçoar-me, tornar-me coisa maior — e por esta razão estou insatisfeito. Mas enquanto eu pensar em termos de tempo — isto é, em "tornar-me alguma coisa" no futuro — tem de haver necessariamente insatisfação, não é certo? Assim, pode a mente libertar-se da comparação?
Estais aqui me ouvindo — não é verdade? — porque desejais alcançar certo estado de que vos falei. Se eu alcancei ou não tal estado, isto não importa. Vós desejais alcançá-lo. Por quê? Porque estais insatisfeitos, porque sois infelizes, vos sentis frustrados, não sois nada e desejais ser algo. E a este esforço para sairdes do estado em que vos achais para o estado que pensais deverdes alcançar, a esse esforço chama-se "mecanismo de desenvolvimento", não é verdade?
AUDITÓRIO: Sim.
KRISHNAMURTI: Mas, se eu for capaz de compreender o verdadeiro estado em que me encontro, então a ideia de tornar-me alguma coisa, a ideia de necessitar de tempo para o meu desenvolvimento, talvez seja sem cabimento, completamente falsa. E eu acho que o é. O problema, neste caso, é que estou insatisfeito, já não me interessa saber como alcançar a satisfação, porque vejo nisso uma fuga do fato real, a insatisfação, a infelicidade, a frustração. O fato real é que me sinto "frustrado", porque ando buscando preenchimento. Não é assim? Estou buscando o preenchimento e, por esta razão, me sinto frustrado. Pergunto, assim, a mim mesmo, se existe efetivamente preenchimento. Compreendeis? Enquanto estou buscando preenchimento há, concomitantemente, o medo de não poder preencher-me. Assim sendo, não achais acertado investigar se efetivamente há preenchimento, em vez de investigar como preencher-me, como acabar com a frustração que me domina? Porque enquanto me interessar o preenchimento tem de haver frustração. Isto é um fato óbvio.
Ora, porque é que buscamos preenchimento? — preenchimento no meu filho, no meu emprego, e por todas as outras maneiras. Sabemos o que significa esse preenchimento, não sendo necessário descrevê-lo com muita minúcia. Talvez não haja nenhuma possibilidade de preenchimento, e, por isso, quando o buscamos, há frustração e, consequentemente, sofrimentos. Se eu puder descobrir a verdade — se há ou não preenchimento — poderei talvez ficar livre da frustração. Assim, pois, há preenchimento? Eis a questão inteira. Está claro isto?
AUDITÓRIO: Sim.
KRISHNAMURTI: Em nossa vida de cada dia existe a ânsia de preenchimento. E a esta ânsia se associam a frustração, o pesar, o sofrimento, a inveja, e muitas outras coisas que conhecemos muito bem. Há sempre o sentimento de que nos falta algo, um sentimento de insuficiência, não é verdade? Posso preencher-me num sentido, e sentir-me completamente infeliz noutro sentido. Tal estado perdurará indefinidamente; a frustração é um processo contínuo. Meu problema, por conseguinte, é descobrir a verdade, isto é, se há preenchimento. E por que desejamos preencher-nos?
OUVINTE: Porque tememos o estado em que nos sentimos não preenchidos; temos medo de permanecer não preenchidos.
KRISHNAMURTI: Investiguemos, examinemos a nós mesmos. O preenchimento é um estado transitório, o interesse varia constantemente. Não há estado permanente de preenchimento, há? Portanto, por que existe o desejo de preenchimento?
OUVINTE: Porque ansiamos pela permanência.
KRISHNAMURTI: Logo, visto que, em nós mesmos, não somos permanentes, que nenhuma riqueza existe em nós, que somos interiormente pobres, e sofremos, buscamos o preenchimento, procuramos adquirir, ser algo. Esta é a raiz do problema, não achais? Estais percebendo?
AUDITÓRIO: Sim.
KRISHNAMURTI: Continuemos, então. Estamos confusos, sentimo-nos sós, insuficientes interiormente. Tal é o fato. Toda ação que nos distancia deste fato é uma fuga, não? E esta é uma das coisas mais difíceis: não fugir. Porque o observar, o considerar o fato, estar apercebido dele, exige não condenação do fato, não comparação, não avaliação. Assim sendo, podemos, não teoricamente, mas de maneira real, "experimentar" esta coisa de que estamos falando? Porque, então, veremos que é possível ficar totalmente livre desse sentimento de insuficiência, dessa causa fundamental dos nossos sofrimentos.
OUVINTE: Quereis dizer que devemos estar satisfeitos assim como somos?
KRISHNAMURTI: Não, senhor — porque isso só leva à estagnação, à imobilidade, à morte. Eu estou mostrando que qualquer interpretação de um fato ou se baseia na satisfação ou na insatisfação. Assim, posso observar aquele fato, que é a insuficiência interior, sem comparar, sem julgar? Posso observá-lo sem medo? Não é o meu medo ao fato que me obriga a fazer todas essas coisas, que me faz perseguir o ideal? Compreendemos agora que é o medo que nos leva a comparar, o medo de algo que não conhecemos? Demos-lhe o nome de "insuficiência", "solidão", "desdita", "confusão"; e, tendo dado um nome ao fato, condenamo-lo e fugimos dele. Quando não condenamos, quando não julgamos, quando não avaliamos e comparamos, resta-nos então só o medo. Está tudo claro até aqui?
AUDITÓRIO: Sim. Sim.
KRISHNAMURTI: Medo de quê? Entendeis esta pergunta? Tenho medo de um estado a que chamo "insuficiência". Eu não conheço esse estado, nunca o observei verdadeiramente, mas tenho-lhe medo. Porque lhe tenho medo, fujo dele. Mas, agora, não estou fugindo, por meio da comparação ou do ideal, porquanto já percebo a falsidade da fuga. Resta-me, pois, só o medo de uma coisa, a respeito da qual nada sei. Não é exato isso?
AUDITÓRIO: Sim.
KRISHNAMURTI: Se estais seguindo realmente o que estou dizendo — não verbalmente, intelectualmente, "descritivamente" — podereis ver claramente o "mecanismo" revelando-se, e as profundezas a que se pode descer. Já não tenho ideais, que perderam toda significação. Não estou mais lutando por um alvo. O fato é: tenho medo de uma coisa que não conheço; mas, se deixo de fugir dessa coisa, fico então em companhia do fato e do medo. Se me ocupo com o medo, se pergunto "como me livrarei do medo", isto será outra fuga do fato, não achais? Agora, estou interessado na compreensão de o que é; e vejo que, porque dei a uma coisa o nome de "vazio", "solidão", "insuficiência", criou-se o medo. O por um rótulo na coisa fez surgir a reação de medo a tal rótulo.
Em vista disso, pode a mente tornar-se apercebida da coisa, sem a condenar, nem julgar, nem fugir, nem lhe dar nome? É dificílimo, porque quase todos estamos tão condicionados para o cultivo do ideal que isso nos impede de encarar o fato real. Não somos capazes de observar o fato, por causa da comparação, porque a mente lhe põe um rótulo, lhe dá um nome. Mas, quando não se dá nome ao fato, quando não fugimos dele por meio dos ideais, da comparação, do julgamento, que resta então? Fica alguma coisa que possa ser chamada "insuficiência"? Existe ainda aquele desejo de preenchimento, que gera a frustração?
Estamos começando a descobrir como nossa mente foi até agora incapaz de observar qualquer coisa, livre desse processo confuso e contraditório. Só quando a mente é capaz de abandoná-lo de todo — não à custa de esforço, mas porque percebe a verdade a seu respeito —, só então a inveja cessa, cessa de todo. Já não está essa mente sob a influência de nenhuma sociedade ou cultura, porque toda a nossa cultura se baseia na inveja. E ver-se-á, então, que a mente não mais estará buscando, porque nada mais há que buscar. Essa mente estará então deveras tranquila. O mero repetir do que acabo de dizer não terá significação nenhuma. Mas o "experimentar", de fato, pelo autoconhecimento, sem acumular o que se "experimentou" — uma vez que a acumulação desfigura toda experiência ulterior —, o estar apercebido de tudo isso, dá-nos a verdade, dá-nos aquela extraordinária liberdade que vem quando estamos completamente sós. A mente que está completamente só, não contaminada, que não foge — essa mente é capaz de receber o que é verdadeiro.
Krishnamurti, Segunda Conferência em Londres, 18 de junho de 1955