O estado
mental onde o “eu” está ausente de todo
PERGUNTA: O
que dizeis parece muito exótico e oriental. Um ensino como o vosso é aplicável
à nossa civilização ocidental, que se baseia na eficiência e no progresso, e
que está melhorando as condições de vida no mundo inteiro?
KRISHNAMURTI: Achais que o pensamento é oriental ou
ocidental? Os costumes podem variar. Eu como com as mãos, na Índia, na China
comem com dois pauzinhos, e aqui comeis de modo diferente. Em que difere o
pensamento oriental do pensamento ocidental? Existe alguma diferença? Se eu
tivesse nascido na América e dissesse as mesmas coisas que estou dizendo agora,
di-lo-íeis oriental? Poderíeis, talvez, chamá-lo místico, impraticável, ou
excêntrico. Mas os problemas são os mesmos, seja na Índia, seja no Japão, seja
aqui. Nós somos entes humanos, e não asiáticos e americanos, russos e alemães,
comunistas e capitalistas. Todos temos os mesmos problemas humanos.
Pois bem. O que estou dizendo é, sem dúvida, tão
aplicável aqui, como na Índia. A violência é um problema tanto vosso como da Índia.
O problema das relações, do amor, da beleza, o problema de criar um estado
mental em que haja paz, de criar uma sociedade que não seja destrutiva de si
própria, bem como de outras — tudo isso, evidentemente, interessa a cada um de
nós, quer vivamos no Oriente, quer no Ocidente. Tendes aqui o problema da
organização de um exército, que é um índice da deterioração de uma sociedade,
porquanto as próprias bases de um exército são a autoridade, o nacionalismo, o
desejo de segurança; e há exatamente o mesmo problema na Índia, no Japão, na
Ásia toda. Assim sendo, esta arbitrária divisão do pensamento em “oriental” e
“ocidental” não existe para o homem que está investigando realmente. O homem
que está condicionado por uma maneira de ver ou filosofia oriental, e vos diz
como viver de acordo com esse condicionamento, esse homem, sem dúvida, está
dividindo o pensamento em oriental e ocidental. Mas, nós estamos falando de
coisa inteiramente diversa, ou seja, do libertar a mente de todo e qualquer
condicionamento, e não, do moldá-la de acordo com uma filosofia
oriental, o que é muito infantil.
O que estamos tentando fazer é investigar juntos a
extraordinária complexidade das nossas vidas, para descobrir se podemos
considerar esses complexos problemas com toda a simplicidade; mas não se pode
considerar esses problemas, com simplicidade, a menos que compreendamos a nós
mesmos. O “eu” é uma entidade extraordinariamente complexa, com uma infinidade
de desejos contraditórios. Vivemos numa guerra perene dentro em nós
mesmos, e esse conflito interior se precipita em atividades exteriores.
Compreender o “eu”, tanto consciente como inconsciente, é uma tarefa enorme, e ele
só pode ser compreendido dia por dia, momento por momento. Ele é um livro sem
fim e, por conseguinte, não é uma coisa que se pode concluir um dia.
Nessas condições, se se puder escutar o que se está
dizendo, não na qualidade de americano, europeu ou oriental, mas como um ente
humano diretamente interessado nestes problemas, então, todos juntos, haveremos
de criar um mundo diferente; seremos então verdadeiros entes religiosos.
Religião é a busca da Verdade, e para o homem religioso não há nacionalidade,
nem pátria, nem filosofia particular; esse homem não segue ninguém, e por
conseguinte é um verdadeiro revolucionário, no sentido mais profundo da
palavra.
PERGUNTA: A
placidez que experimentamos, em várias formas de expressão própria, é uma
ilusão, ou esse sentimento de preenchimento está relacionado com o estado
criador de que falais?
KRISHNAMURTI: Existe tal coisa — preenchimento
pessoal? Aceitamos a suposição de que ela existe, não é verdade? Se sou
artista, acho que devo preencher-me; se sois escritor, quereis preencher-vos.
Todos estamos lutando para nos preenchermos, de diferentes maneiras — por meio
da família, dos filhos, do marido, da mulher, das posses, das ideias. Se sois
ambicioso, quereis preencher a vossa ambição, porque, do contrário, vos
sentireis frustrado, e na frustração há sempre sofrimento. Todos nós estamos
esforçando por preencher-nos, mas nunca perguntamos se realmente existe
preenchimento. Sem dúvida, o homem que está a buscar o preenchimento vive
atormentado pela frustração. Isso é bem compreensível, não achais? Se estou
sempre a tentar preencher-me, por meio de meu filho, minha mulher, de uma ideia,
de atividades, está sempre a perseguir-me a sombra da frustração e do medo.
Assim, se desejo compreender o medo, a frustração, a agonia das complicações
psicossomáticas, e tudo o mais, preciso examinar de maneira completa essa ideia
da possibilidade de preencher-me, porque nela está presente do “eu”, com seu
desejo de “vir a ser” alguma coisa. Não é bem provável que o “eu” seja uma
ilusão, ainda que seja uma realidade como entidade operante? Para o homem
ambicioso, competidor, ganancioso, invejoso, o “eu” não é ilusório, mas uma
coisa muito real. Mas para o homem que se põe a investigar a fundo este
problema, que deseja realmente compreender o que é a Paz — não a paz pelo
terror, a paz dos políticos, não a placidez da vaidade satisfeita, resultante
da realização de nossas ambições, mas aquela paz em que não existem
rivalidades, em que não existe luta para se ser alguma coisa — a esse homem vem
a experiência do “ser absolutamente nada”, que é um estado criador atemporal. O
que chamamos ação criadora é um processo que consiste em aprender uma técnica e
expressá-la; mas eu falo de coisa muito diversa — da mente de onde o “eu” está
ausente de todo.
Krishnamurti,
27 de agosto de 1955
Realização sem
esforço
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