A maioria de nós tem inúmeros hábitos. Temos hábitos e idiossincrasias, físicos, e, ao mesmo tempo, hábitos de pensamento. Cremos nisto e não cremos naquilo; somos patriotas, nacionalistas; e observamos tenazmente o seu especial padrão de pensamento. (…) Uma vez firmada numa série de hábitos, a mente parece funcionar um pouco mais livremente, mas, na realidade, ela é irrefletida, “não cônscia”.(1)
Em parte por nossa educação escolar, em parte pelo condicionamento que a sociedade psicologicamente nos impõe, e também por nossa própria indolência, a nossa mente funciona numa série de hábitos. Se não aprovamos determinado hábito de que estamos bem cônscios, lutamos para quebrá-lo, e, quando quebramos um hábito, formamos outro. Parece não haver momento em que a mente esteja livre do hábito.(2)
Consideremos um hábito muito simples, que muita gente tem: o hábito de fumar. Se você fuma e deseja abandonar o hábito, a idéia de abandoná-lo cria uma resistência contra o fumar. Agora, pelo conflito ou pela resistência, você pode quebrar um hábito, mas isso não liberta sua mente do processo formador de hábitos; o mecanismo criador dos hábitos não deixou de existir.(3)
Temos hábitos de pensamento, hábitos sexuais - uma infinidade de hábitos, que tanto podem ser conscientes como inconscientes; e é sobretudo difícil ficarmos cônscios dos hábitos inconscientes.(4)
Se não estamos libertos do passado, não há liberdade nenhuma, porque, assim, a mente nunca está nova, fresca, “inocente”. (…) A liberdade nada tem que ver com a idade da pessoa (…) com a experiência; e quer-me parecer que a própria essência da liberdade reside na compreensão de todo o mecanismo do hábito, consciente e inconsciente.(5)
Mas, como, de que maneira e em que nível irá se realizar essa revolução? (…) E se observa, também, que a mente, o próprio cérebro se tornou mecânico e, por conseguinte, repetitivo: lhe ensine certo padrão de comportamento, certas normas de conduta, atitudes, desejos, ambições, etc., e ele ficará funcionando dentro desse canal, desse padrão.(6)
O problema, pois, consiste no seguinte: Meu pensamento está condicionado, fixado num padrão; e a qualquer estímulo, que é sempre novo, o meu pensamento só pode reagir de acordo com o seu condicionamento, transformando o novo no velho, modificado. Dessa maneira, o meu pensamento nunca pode ser livre. Meu pensamento, que é o produto de ontem, só é capaz de reagir nas mesmas condições de ontem.(7)
A mente subordinada à autoridade, sujeita à compulsão, não pode absolutamente ter ordem. Veja, pois, que o ajustamento a um padrão, por melhor, mais nobre e mais completo que seja, não produz ordem. Por conseguinte, temos de investigar, dentro de nós mesmos, todo esse “processo” de submissão a um padrão de vida, pois é isso, de fato, o que está acontecendo. Você está na sujeição de uma idéia, como nacional de um país, como hinduísta, como muçulmano. (…) Você está submisso a uma idéia e, portanto, ajustado a uma tradição.(8)
Ora, essa mente, até onde posso ver, funciona tão só como atividade egocêntrica; quer meditando em Deus, quer buscando satisfação sexual, praticando o ideal da “não-violência”, se lançando a reformas sociais. (…) E é possível a mente se libertar dessa atividade egocêntrica, sem compulsão, sem a disciplina do ajustamento a um padrão?(9)
Portanto, qual é a condição interna necessária para sermos nós mesmos, para sermos espontâneos? A primeira condição interna necessária, é que o mecanismo formador de hábitos deve cessar. Qual é a força motriz atrás desse mecanismo?(10)
O desejo dá uma falsa continuidade ao nosso pensamento, e a mente apega-se a essa continuidade, cujas ações são apenas o seguimento de padrões, ideais, princípios, e o estabelecimento de hábito. Assim, a experiência jamais é nova, fresca, alegre, criativa.(11)
Se existe esse hábito (da vaidade), quando dele vocês se tornarem conscientes, ele desaparecerá se realmente vocês amam todo esse processo de viver. (…) Mas aqueles de vocês que se acham profundamente interessados, (…) observem como este ou qualquer outro hábito cria uma cadeia de memórias que se tornam cada vez mais fortes, até que somente permanece o “eu”, o “mim”. Esse mecanismo é o “eu”, e, enquanto existir esse processo, não pode haver o êxtase do amor, da verdade.(12)
O poder-motor que está por trás da vontade é o medo, e, quando começamos a compreender isso, o mecanismo do hábito intervém, oferecendo novas fugas, novas esperanças. (…) Quando há apenas medo, sem nenhuma esperança de fuga, nos mais negros momentos, na mais completa solidão do medo, aí surge, como do interior de si próprio, a luz que o dissipará. (13)
O ciúme, em quase todos nós, tornou-se um hábito e, como todo hábito, tem continuidade. Quebrar o hábito significa, meramente, estar cônscio do hábito. (…) Estar cônscio de um hábito significa não o condenar, porém, simplesmente, observá-lo. (…) Nesse estado de total percebimento (…) você descobrirá ter eliminado completamente aquele sentimento habitualmente identificado com a palavra “ciúme”.(14)
É só a mente embotada, sonolenta, que cria o hábito e a ele se apega. A mente que está atenta momento a momento - atenta para o que ela própria está dizendo, atenta para o movimento de suas mãos, de seus pensamentos, de seus sentimentos - descobrirá que se terá acabado a formação de hábitos. (…) A mente que se limita a freqüentar a igreja, a recitar orações, que está apegada a dogmas ou que abandona uma seita para ingressar noutra, não é uma mente religiosa. (…) Religiosa é a mente livre, num estado de constante “explosão”.(15)
Um indivíduo é hinduísta, cristão, alemão, russo, suíço, americano, etc., com o respectivo conjunto de hábitos, do qual em geral está inconsciente. Como poderá o indivíduo ficar cônscio desse condicionamento? Como você pode se tornar cônscio do inconsciente, onde se encontra essa imensa série de hábitos não revelados? Como pode ficar cônscio do padrão inconsciente que se acha profundamente enraizado em você? Você procurará um psicanalista (…) para que ele lhe “arranque” o padrão do inconsciente? Isso adiantará? Ou você mesmo se analisará?(16)
O importante é romper essa muralha de condicionamento, de hábito. E muitos de nós achamos que poderemos rompê-la por meio da análise, quer feita por nós mesmos, quer por outrem; mas isso não é possível. A muralha do hábito só pode ser rompida quando a pessoa está completamente cônscia, sem escolha, negativamente vigilante.(17)
Existe um “método de quebrar o hábito”? Ora, método implica tempo, movimento de um ponto de partida para um ponto de chegada. Se você ver por si mesmo que o tempo não lhe liberta do hábito e que, por conseguinte, os métodos e sistemas para nada servem, ficará então frente a frente com a realidade, o fato de que sua mente está enredada no hábito.(18)
E, então, que acontece? Você não está procurando modificar o hábito, não está tentando quebrá-lo. Está simplesmente em presença do fato de que sua mente funciona na rotina do hábito. (…) Se você não tentar alterá-lo, o próprio fato lhe dará uma extraordinária energia, com a qual você pode quebrá-lo completamente. Compreende? (…) Por conseguinte, sua atenção é completa, toda a vossa energia se concentrou, e essa energia destroça totalmente o fato.(19)
Não sei se você já se observou no ato de fumar. Com “se observar” quero dizer “estar cônscio de cada movimento que você faz”: como a sua mão vai ao bolso, retira um cigarro, coloca-o na boca, volta ao bolso para apanhar os fósforos, acende o cigarro, e como, então, “você puxa umas fumaças” e atira fora o fósforo. O importante é se dar conta de todo esse processo, sem lhe resistir, sem rejeitá-lo, sem desejar ficar livre dele - estando, apenas, totalmente cônscio de cada movimento inerente ao hábito.(20)
De modo idêntico, você pode estar cônscio do hábito da inveja, do hábito de adquirir, do hábito do medo; e então, observando, você poderá ver o que está implicado nesse hábito. Verá instantaneamente tudo o que a inveja implica; mas não poderá ver tudo o que a inveja implica, se, na sua observação da inveja, entrar o elemento tempo.(21)
Pensamos que podemos nos libertar da inveja gradualmente e nos esforçamos por afastá-la pouco a pouco, introduzindo assim a idéia do tempo. Dizemos: “Tentarei me livrar da inveja amanhã, ou um pouco mais tarde” - e, entrementes, continuamos invejosos. (…) Ou quebramos um hábito imediatamente, ou ele continua existente, embotando gradualmente a mente e criando novos hábitos.(22)
Se pudermos compreender, nos seu todo, o processo do hábito, talvez tenhamos a possibilidade de pôr fim à formação dos hábitos. Pôr fim a determinado hábito, apenas, é relativamente fácil, mas o problema não fica resolvido. Todos temos vários hábitos, dos quais estamos ou não estamos cônscios; por conseqüência, devemos descobrir se nossa mente se deixou apanhar na armadilha do hábito, e a razão por que cria hábitos.(23)
O nosso pensar não é, na maior parte, “habitual”? Desde crianças, nos têm ensinado a pensar numa certa direção, como cristãos, comunistas (…) e não ousamos nos desviar dessa direção, porque qualquer desvio, em si, representa temor. Assim, o nosso pensar é basicamente “habitual”, condicionado; nossa mente está funcionando dentro de rotinas fixas, e naturalmente temos também hábitos superficiais, que procuramos suprimir.(24)
Se você está agora investigando, procurando descobrir se sua mente pensa sob a influência dos hábitos, (…) então qualquer hábito, como, por exemplo, o de fumar, terá significação toda diferente. Isto é, se lhe interessa investigar o processo do hábito, que se acha num nível mais profundo, você saberá atender ao hábito de fumar de um modo completamente diferente.(25)
Estando bem claro para você, interiormente, que deseja pôr fim não só ao hábito de fumar, mas ao inteiro processo de pensar pela rotina dos hábitos, você já não luta contra o movimento automático de apanhar o cigarro, etc., pois sabe que, quanto mais combatemos um hábito, mais vitalidade lhe damos. Mas, se você está atento e bem cônscio desse hábito, sem combatê-lo, verá que ele desaparecerá por si, no tempo próprio; a mente não está mais ocupada com ele.(26)
A mente detesta a incerteza e necessita, portanto, dos hábitos como meio de segurança. Mas nunca está livre do hábito a mente que se sente segura, e, sim, só aquela que se acha em completa insegurança. (…) A mente que se acha na mais completa insegurança, incerteza; que está sempre a investigar e a descobrir algo; que morre para cada experiência, cada aquisição, e por conseguinte se acha sempre num estado de “não saber” - só essa mente pode ser livre do hábito.(27)
A questão não é de acabar com o hábito, porém, antes, de ver totalmente a estrutura do hábito. Você deve observar como se formam os hábitos e como, pela rejeição de um hábito ou pela resistência a ele, outro hábito se forma. O relevante é estar totalmente cônscio do hábito; porque então, como você mesmo verá, já não há formação de hábitos. O resistir ao hábito, o combatê-lo, ou rejeitá-lo, só pode dar continuidade ao hábito. (…) Mas, se você fica simplesmente cônscio de toda a estrutura do hábito, sem resistência nenhuma, verá então que estará livre do hábito e que, nessa liberdade, ocorre uma coisa nova. (28)
Podem-se quebrar hábitos, sem se criar outro hábito? Meu problema, por certo, não se refere à possibilidade de abandonar um hábito doloroso, ou de conservar um hábito aprazível, mas sim à possibilidade de me tornar livre de todo o mecanismo formador de hábitos. (…) Isto é, posso quebrar, abandonar o pensamento, o padrão que se formou, que se criou através de séculos, sem criar um novo padrão? É isso o que, em geral, gostamos de fazer. (…) Se sou hinduísta, quebro esse padrão e me torno comunista.(29)
Por conseguinte, para eu poder ser livre de todos os padrões, torna-se necessária uma revolta isenta de qualquer incentivo e de qualquer idéia nova. Tal revolta é criadora; esse estado é o “estado de criação”, é o estado puro, não adulterado, não corrompido; porque, aí, não há (…) esperança, (…) oposição, sujeição a nenhum padrão.(30)
A formação da idéia a que a mente se apega, a adesão a uma crença, um hábito, um prazer - tudo isso cria, (…) forma o molde em que a mente se aprisiona. (…) O pensamento é o criador do padrão; o pensamento é sempre condicionado; (…) porque o que penso é resultado do meu acervo mental, e todo pensar é reação a esse fundo. A questão, pois, não é de saber “como me libertar de um padrão ou hábito de pensamento”, mas, sim, “se a mente pode ficar livre da criação de idéias.” (…) Só então há possibilidade de quebrar o padrão e ficar inteiramente livre de todos os padrões.(31)
Em geral, não estamos nada cônscios de nossos hábitos e, por isso, eles se tornaram inconscientes. No momento em que você se torna cônscio de um hábito, você o “arrancou” do inconsciente (…) Mas, no momento em que me torno plenamente cônscio desse hábito e não lhe resisto, mas me limito a observá-lo, então foi ele “arrancado” do inconsciente.(32)
Ora, é porque quase todos os nossos hábitos são inconscientes, que nós não os despedaçamos, não os “dinamitamos”. (…) A questão, pois, é de como estarmos cônscios, plenamente cônscios de todos os hábitos “animalescos”.(33)
Textos de Krishnamurti, extraídos de: Seleta de Krishnamurti
Fontes das citações:
(1) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 155
(2) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 155
(3) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 155-156
(4) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 156-157
(5) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 158
(6) Uma Nova Maneira de Agir, 1ª ed., pág. 90-91
(7) Da Insatisfação à Felicidade, pág. 26
(8) A Suprema Realização, pág. 178
(9) O Homem Livre, pág. 146
(10) Palestras em Ommen, Holanda, 1937-1938, pág. 87-88
(11) Palestras em Ommen, Holanda, 1937-1938, pág. 88
(12) Palestras em Ommen, Holanda, 1937-1938, pág. 93-94
(13) Palestras em Ommen, Holanda, 1937-1938, pág. 104
(14) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 151
(15) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 158
(16) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 163
(17) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 164
(18) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 175-176
(19) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 176
(20) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 155-156
(21) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 156
(22) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág.156
(23) Realização sem Esforço, pág. 68
(24) Realização sem Esforço, pág. 68-69
(25) Realização sem Esforço, pág. 69
(26) Realização sem Esforço, pág. 69
(27) Realização sem Esforço, pág. 70
(28) O Homem e seus Desejos em Conflito, 1ª ed., pág. 158
(29) Poder e Realização, pág. 73
(30) Poder e Realização, pág. 75
(31) Poder e Realização, pág. 75
(32) O Homem e seus Desejos em Conflito, lª ed., pág. 162-163
(33) O Homem e seus Desejos em Conflito, lª ed., pág. 163