Há, de fato, um estado
de suprema felicidade?
Quando se observa o mundo e principalmente as condições reinantes neste país, deve tornar-se evidente a cada um de nós a necessidade de uma revolução fundamental. Empregando esta palavra, não me refiro à reforma superficial, à reforma de remendos, nem à revolução instigada por um certo padrão de pensamento, depois de devidamente calculados os riscos e possibilidades; refiro-me, sim, à revolução que só pode realizar-se no nível mais elevado, ao começarmos a compreender o significado de nossa mente. Se não se compreende essa questão fundamental, acho que qualquer reforma, em qualquer nível e por mais benéfica que seja, temporariamente, levará fatalmente a maiores sofrimentos, a um caos maior ainda.
Penso necessário compreender claramente este ponto, a fim de que se estabeleça um certo contato entre o orador e vós mesmos; pois à maioria de nós só interessa uma certa espécie de reforma social. Observa-se uma proporção colossal de pobreza, ignorância, medo, superstição, idolatria — a vã repetição de palavras, que se chama oração e, ao mesmo tempo, uma enorme acumulação de conhecimento científico, assim como o chamado conhecimento colhido nos livros sagrados. Não se precisa visitar muitos países, para se ver tudo isso; pode-se observá-lo, percorrendo as ruas, aqui, na Europa, ou na América. Os meios de satisfação das necessidades físicas podem ser abundantes na América, onde impera o materialismo e onde se pode comprar de tudo; mas, visitando-se este nosso país, encontra-se esta desumana miséria. E há também a luta de classes — não emprego a expressão "luta de classes" no sentido comunista, mas tão somente para constatar um fato, sem interpretá-lo de qualquer maneira que seja. Vê-se a divisão das religiões — cristãos, hinduístas, maometanos, budistas, e suas múltiplas subdivisões — todas a bradar, para converter, ou mostrar um "caminho" diferente, uma via diferente. A máquina tornou possíveis verdadeiros milagres na produção de utilidades, principalmente na América; finas, aqui na Índia tudo é limitado, escasso. Neste país, onde tanto se fala de Deus, onde tanto se reza e se celebram rituais, etc., somos tão materialistas como os ocidentais, com a só diferença de termos feito da pobreza virtude, um mal necessário e tolerável.
Em vista desse tão altamente complexo padrão de riqueza e pobreza, de governos soberanos, exércitos e os mais recentes instrumentos de destruição em massa, ficamos a perguntar-nos o que irá resultar deste caos, aonde ele nos levará. Qual a resposta? Acho que qualquer pessoa verdadeiramente séria, já terá feito a si mesma esta pergunta. Como iremos, como indivíduos e como grupos, ocupar-nos com este problema? Achando-nos confusos, voltamos, os mais de nós, a atenção para um dado padrão, religioso ou social, procuramos amparar-nos nalgum guia, para sairmos deste caos, ou encarecemos a necessidade de voltar às velhas tradições. Dizemos: "Retornemos ao que nos ensinaram os rishis e que se encontra no Upanishads, no Gita; necessitamos de mais orações, mais rituais, mais gurus, mais mestres". É isto que realmente está acontecendo, não?
Observa-se no mundo, simultaneamente, desenfreada tirania e relativa liberdade. Agora, considerando este caótico espetáculo — não filosoficamente, não como mero observador dos acontecimentos, mas como ente humano em que se acha desperto o sentimento de piedade, o germe da compaixão, como é o caso de todos vós, estou bem certo — considerando este espetáculo, como reagis? Qual a nossa responsabilidade perante a sociedade? Ou de tal maneira estamos presos na engrenagem da sociedade; no tradicional padrão implantado por determinada cultura, ocidental ou oriental, que estamos cegos? E se abris os olhos, interessam-vos apenas as reformas sociais, a ação política, o ajustamento econômico? A solução deste enorme e complexo problema só se encontra nesta direção, ou noutra direção completamente diferente? O problema é meramente econômico e social? Ou existe caos e a constante ameaça de guerra porque não estamos, em geral, verdadeiramente interessados nos problemas mais profundos da vida, no desenvolvimento total do homem? A culpa é de nosso sistema educativo? Superficialmente, somos educados para aprender certas técnicas, o que produz sua peculiar cultura, e parece que isso nos satisfaz.
Ora, observando-se este estado de coisas, do qual estou bem certo estais perfeitamente apercebidos, a menos que sejais insensíveis ou não queirais ver — qual é a vossa reação? Por favor, não respondais teoricamente, de acordo com o padrão comunista, capitalista, hinduísta, ou outro qualquer, pois tal padrão vos foi imposto e é portanto inverdadeiro, mas, ao invés, despojai a vossa mente de todas as suas reações imediatas, das chamadas reações "estudadas", e verificai qual é a vossa reação como indivíduo. De que maneira resolveríeis este problema?
Se fazeis esta pergunta a um comunista, ele dará uma resposta muito positiva, e do mesmo modo procederá o católico, ou o hinduísta ortodoxo, ou o muçulmano; mas essas respostas, obviamente, são condicionadas. Eles foram educados para pensar dentro de certas rotinas, amplas ou estreitas, por uma sociedade ou cultura a que não interessa absolutamente o desenvolvimento total do espírito; e uma vez que respondem de acordo com seu pensar condicionado, suas respostas são inevitavelmente contraditórias e, portanto, não deixarão de criar, sempre, inimizade, o que também me parece bastante óbvio. Se sois hinduísta, cristão, ou o que quer que seja, vossa resposta tem de corresponder necessariamente ao vosso fundo condicionado, o meio cultural em que fostes educado. O problema está fora do terreno de todas as culturas ou civilizações, fora de todo e qualquer padrão e, todavia, procuramos a resposta em conformidade com determinado padrão, resultando, daí, confusão sempre crescente e sofrimentos maiores ainda. Nessas condições, a menos que ocorra uma libertação fundamental de todo condicionamento, uma ruptura completa das muralhas, é bem evidente que criaremos mais caos, por mais bem intencionados e por mais religiosos que sejamos.
A mim me parece que o problema se encontra num nível completamente diferente, e, com a compreensão dele, penso que seremos capazes de promover uma ação toda diferente da do padrão socialista, capitalista ou comunista. A meu ver, o problema consiste em compreender as atividades da mente; porque, a menos que sejamos capazes de observar e compreender, em nós mesmos, o mecanismo do pensamento, não há liberdade e, portanto, não se pode ir muito longe. Com a maioria de nós acontece que a mente não está livre, pois se acha, consciente ou inconscientemente, ligada a alguma forma de conhecimento, a inumeráveis crenças, experiências, dogmas e como pode ser capaz de descobrimento uma mente nessas condições, como pode ser capaz de achar algo novo?
Todo desafio requer, evidentemente, uma reação nova, porque o problema é hoje completamente diferente do que ontem foi. Qualquer problema é sempre novo, pois está a modificar-se continuamente. Todo desafio requer reação nova, e não pode haver reação nova, se a mente não é livre. A liberdade, pois, está no começo e não no fim. A revolução tem de começar, sem dúvida, não no nível cultural, social ou econômico, porém no mais elevado nível; e o descobrimento do mais elevado nível é que é o problema; descobrimento, e não aceitação do que dizem ser o mais elevado nível. Não sei se me estou explicando com clareza. Podemos ser informados sobre o que seja o nível mais alto, por um guru, por algum indivíduo arguto, e ficarmos a repetir o que lhe ouvimos dizer; mas esse processo não é descobrimento e, sim, meramente, aceitação da autoridade; e os mais de nós aceitamos autoridades porque somos indolentes. Tudo foi pensado para nós e nos limitamos a repeti-lo, tal qual um disco de gramofone.
Pois bem. Percebo a necessidade de descobrimento, porquanto se tornou bem óbvio que temos de criar uma cultura de espécie completamente diferente, uma cultura não baseada na autoridade, mas só no descobrimento individual daquilo que é verdadeiro; e esse descobrimento requer liberdade completa. Se a mente está presa, por mais longa que seja a corda, só poderá operar dentro de um determinado raio e, conseguinte, não está livre. O importante, pois, é descobrir o nível mais alto, onde deverá efetuar-se a revolução, e isso exige muita clareza de pensamento, exige uma mente em bom estado — não uma mente falsificada, repetitiva, porém uma mente capaz de pensar intensamente, de raciocinar as coisas até o fim, clara, lógica, sãmente. Precisamos de uma mente assim, porque só então é possível irmos mais longe.
Assim, pois, parece-me que a revolução só pode realizar-se no nível mais elevado, o qual cumpre descobrir; e esse nível só pode ser descoberto por meio do autoconhecimento e não de conhecimentos colhidos nos vossos velhos livros ou nos livros dos modernos analistas. Tendes de o descobrir nas relações — descobri-lo, e não meramente repetir o que lestes ou ouvistes dizer. Vereis então que vossa mente se tornará sobremaneira lúcida. Afinal, a mente é o único instrumento de que dispomos. Se ela se acha peada, se é vulgar, temerosa, como o é a mente de quase todos nós, nenhuma significação tem sua crença em Deus, suas devoções, sua busca da verdade. Só a mente que é capaz de percebimento claro e por essa razão está perfeitamente tranquila, só ela pode descobrir se existe ou não a Verdade, só ela é capaz de realizar a revolução no mais alto nível. Só a mente religiosa é verdadeiramente revolucionária; e a mente religiosa não é aquela que repete, que frequenta a igreja ou o templo, pratica puja todas as manhãs, que se deixa guiar por alguma espécie de guru ou adora um ídolo. Esta não é uma mente religiosa; é em verdade estúpida, limitada e, por conseguinte, nunca será capaz de corresponder livremente a um desafio.
Esse autoconhecimento não pode ser aprendido de outrem. Eu não posso dizer-vos o que ele é. Mas pode-se ver como a mente opera, não apenas a mente que está ativa todos os dias, porém a totalidade da mente - a mente consciente e a mente oculta. Todas as numerosas camadas da mente têm de ser percebidas, investigadas, mas não pela introspecção. A auto-análise não revela a totalidade da mente, porque há sempre a separação entre o analista e a coisa analisada. Mas se puderdes observar as operações de vossa mente, sem tendência para julgar, avaliar, sem condenação ou comparação — observar, simplesmente, como se observa uma estrela, desapaixonadamente, tranquilamente, sem ansiedade — vereis então que o autoconhecimento não depende do tempo, não é processo de penetração do inconsciente com o fim de remover todos os "motivos" ou de compreender os vários impulsos e compulsões. O que cria o tempo é a comparação, não resta dúvida; e porque nossa mente é resultado do tempo, só pode pensar em termos de mais — sendo isso o que chamamos progresso.
Sendo, pois, resultado do tempo, a mente só pode pensar em termos de expansão, realização; e pode a mente libertar-se do mais? Isso, com efeito, significa dissociar-se completamente da sociedade. A sociedade encarece o mais. Em última análise, nossa civilização está baseada na inveja, no espírito de aquisição, não é verdade? Nossa ânsia de aquisição não se restringe às coisas materiais, mas se estende também aos domínios da chamada espiritualidade, onde desejamos possuir mais virtude, estar mais perto do mestre, do guru. Toda a estrutura, pois, do nosso pensar se baseia no mais; e, uma vez compreendidas perfeitamente as exigências de mais, e todas as suas consequências, realiza-se então, infalivelmente, a completa dissociação da sociedade; e só o indivíduo que se dissociou de todo da sociedade, pode influir na sociedade. O homem que veste uma tanga ou o manto de sanyasi, aquele que se torna monge, não está dissociado da sociedade; faz ainda parte da sociedade, com a única diferença de que sua exigência de mais se encontra noutro nível. Está ainda condicionado por determinada cultura e, portanto, ainda dentro de suas limitações.
Penso ser este o problema real, e não como produzir mais, e distribuir as utilidades produzidas. Temos agora as máquinas e as técnicas que permitem produzir tudo o de que necessita o homem e em breve, provavelmente, teremos uma distribuição equitativa dos recursos para a satisfação das necessidades físicas, e a cessação da luta de classes; mas o problema básico continuará existente. O problema básico é que o homem não é criador, não descobriu por si mesmo a extraordinária fonte de criação, não inventada pela mente; e só quando se descobre essa fonte criadora, atemporal, é que se encontra a suprema felicidade.
Krishnamurti, Primeira Conferência em Madrasta, 11 de janeiro de 1956
Da Solidão à Plenitude Humana