O estado que não é
produto da mente
Seria muito útil e importante, parece-me,
considerarmos a questão de qual é a verdadeira religião; e talvez, investigando
esta questão um pouco profundamente, tenhamos a possibilidade de descobrir, de
experimentar diretamente, por nós mesmos, aquele estado que não é produto da
mente e que deve ser algo desconhecido e totalmente novo, nunca dantes
experimentado. Para descobrir-se, porém, e experimentar aquele estado, acho que
teremos, em primeiro lugar, de compreender o “mecanismo” do intelecto, da
mente. A mente se constitui não apenas do consciente, mas também das muitas
camadas daquilo a que chamamos “o inconsciente”; é um “mecanismo” total,
embora, por conveniência, a dividamos em “consciente” e “inconsciente”, com as
diferentes gradações de consciência existentes entre os dois. Para
compreendermos as várias atividades da mente, devemos, por certo, não apenas
investigar no nível superficial ou verbal, mas também penetrar profundamente no
“mecanismo” do próprio pensamento.
O que desejo fazer nesta manhã, se for possível — e
não sei se é — é produzir aquele estado que não é concebível, que não é
imaginável, que não pode ser sistematizado nem conjecturado; e isso, por certo,
não requer nenhuma condição de auto-hipnose nem de mera auto-sugestão, mas,
sim, o gradual desdobrar-se — enquanto falo — do mecanismo da vossa própria
mente. Podemos descobrir juntos e experimentar diretamente aquele estado a que
aspiram todas as religiões — despidas do seu eclesiasticismo, dos seus dogmas,
dos seus ritos e inumeráveis contrassensos? Não vou guiar-vos para o
descobrirdes, pois o descobrimento tem de ser espontâneo. Deveis descobri-lo
por vós mesmos. Tentarei tão somente descrever como esse estado aparece; mas,
se apenas seguirdes a descrição verbal, então, é claro, não compreendereis esse
estado, que só pode surgir quando a mente já não está “projetando” nem
resistindo.
Como eu ia dizendo, temos em primeiro lugar de
compreender o intelecto, o mecanismo da consciência, não apenas a superficial,
senão também as suas camadas mais profundas; e, para o fazermos, precisamos,
evidentemente, começar pelas reações e “respostas” verbais. Além do seu
significado exterior, palavras como “deus”, “comunista”, “capitalista”, “avidez”,
“progresso”, “morte”, têm uma grande significação para a maioria de nós, não é
verdade? Têm elas uma significação assim neurológica como psicológica. As
palavras são símbolos; e se as não empregamos, temos símbolos sob outras
formas, como a cruz e os símbolos religiosos da Índia. E é possível abster-nos
de reagir, de levantar barreiras, em reação aos símbolos? Pode a mente, naquele
nível superficial, pôr de parte o mecanismo imaginativo, especulativo, verbal, com todas
as suas reações? É muito difícil fazê-lo, pois, no momento, a mente só
pensa dentro do âmbito das palavras, dos símbolos, das imagens.
E não devemos investigar o mecanismo do desejo? Sem
dúvida, pois o desejo é parte da mente, do intelecto, da inteligência de que
nos servimos no viver cotidiano. O desejo é o autêntico mecanismo da mente, da
mente que acumula, retém, que possui inúmeros impulsos, busca sensações, exige
mais, que evita a dor e anseia pelo prazer. A mente está sempre em procura de
um abrigo seguro, onde possa habitar sem ser perturbada, não é exato? Procura
viver permanentemente em segurança, numa ideia, numa crença, numa experiência,
numa relação. Tudo isso é o mecanismo da mente, do que chamamos “intelecto”,
“inteligência individual”; isso, que faz parte da consciência, manifesta ou
oculta, é tudo o que sabemos.
Pois bem. Conhecendo o mecanismo integral de si
mesma, pode a mente transcendê-lo? Pode ela estar serena, a fim de descobrir o
que é verdadeiro, o que é real, o que é Deus? É isso o que desejo considerar
nesta manhã. Pode a mente estar apercebidas das suas numerosas camadas, das
reações verbais, dos apetites puramente físicos, das necessidades e impulsos
biológicos, do cunho da tradição e do ambiente, das lembranças claras e ocultas
— pode a mente estar apercebidas de tudo isso, sem interferir de maneira
alguma? O pensamento é sempre condicionado enquanto é a
expressão verbal da memória; e enquanto a mente não estiver de todo livre dessa
extraordinária acumulação do passado, o desconhecido, evidentemente, é inalcançável.
Enquanto não desaparecer o mecanismo de reconhecimento, não pode existir o
novo.
Tende paciência, senhores; consideremos esta questão
um pouco mais longamente. Afinal de contas, o que chamamos experiência é um mecanismo
de reconhecimento, não é verdade? Quando vedes um certo animal, sabeis que é um
cão, porque tendes conhecimento anterior da espécie e lhe destes um nome. Quando
vos encontrais com um amigo, o reconheceis, porque tivestes experiência
anterior dessa amizade. Quando há uma experiência psicológica, essa experiência
foi conhecida anteriormente e lhe destes um nome. A mente pode reconhecer
apenas o que já foi experimentado; não pode reconhecer uma coisa nova,
pois o que é novo não é reconhecível. Assim, a Verdade, Deus, ou como o chamardes,
tem de ser totalmente novo, não pode ser reconhecido. Se for reconhecido, então
já foi experimentado antes, e o que já foi experimentado está compreendido na
esfera do tempo. Procurai perceber isso claramente, e compreendereis algo. Não
é difícil. As palavras que estou empregando podem ser difíceis; porém, o
sentido, o significado do que digo é muito simples.
A função da mente é cognitiva, não é verdade? A
mente reconhece, pensa; e seu pensar, seu reconhecer, seu experimentar procede
todo do “fundo” (background) da memória. Afinal, se sou hinduísta meu
condicionamento limita o meu pensar; penso em Deus, na moral, em conformidade
com a tradição e tudo o que li nas escrituras hinduístas. E os que são cristãos
ou budistas, ou o que quiserdes, e que têm inclinações religiosas estão
igualmente condicionados por tudo o que lhes foi ensinado.
Pois bem. O que estamos tentando — não só agora, mas
sempre — é descobrir se a mente pode libertar-se do seu condicionamento e
experimentar o que nunca foi experimentado anteriormente. Sem dúvida, esse é o
experimentar da Realidade e a religião verdadeira, não achais? A religião nada
tem em comum com crenças, com símbolos, ritos, promessas, com esperanças e
temores, em torno dos quais são construídos os credos e as igrejas. Tão pouco é
questão de moralidade. O indivíduo de princípios morais pode nunca vir a
conhecer a Realidade — o que não significa que para conhecer a Realidade deva
ser imoral. A moralidade resultante de esforço consciente limita a mente. A virtude
só é necessária porque dá liberdade; o homem, porém, que se esforça para
tornar-se virtuoso, jamais é livre.
Nessas condições, conhecendo todo o conteúdo da
mente, suas recusas, suas resistências, suas atividades disciplinares, seus
vários esforços visando à segurança, coisas essas que têm o efeito de
condicionar-lhe e limitar o pensar — pode a mente, como “mecanismo integrado”,
estar totalmente livre para descobrir o que é eterno? Porque, sem esse
descobrimento, sem o experimentar dessa realidade, todos os nossos problemas,
com suas respectivas soluções, conduzem tão somente a novos sofrimentos e
desastres. Isso é óbvio, e pode-se observar na vida de cada dia.
Individualmente, politicamente, internacionalmente, em toda e qualquer
atividade, estamos sempre a criar maiores malefícios, o que será sempre
inevitável, enquanto não tivermos experimentado aquele estado de religião,
aquele estado que só é possível experimentar-se quando a mente se acha de todo
livre.
Agora, tendo ouvido isto, podeis, ainda que por um
segundo, conhecer aquela liberdade? Não podeis conhecê-la apenas por eu a estar
sugerindo, pois, nesse caso, ela seria unicamente uma ideia, uma opinião, sem
muito significado. Entretanto, se tendes acompanhado todas estas palestras
muito seriamente, estais começando a conhecer o mecanismo do vosso próprio
pensar, sua direção, seus intentos, seus móveis; e, em vista desse
conhecimento, chegareis, por força, ao estado em que a mente já não está a
procurar, a escolher, lutando para realizar seus fins. Depois de perceber todo o seu próprio mecanismo,
a mente se torna tranquila num grau extraordinário, sem nenhuma tendência, sem
nenhuma volição, sem nenhuma ação voluntária. A vontade é ainda
desejo, não é verdade? O homem ambicioso, no sentido mundano, sente um forte
desejo de realizar algo, de ser bem-sucedido, tornar-se famoso, e exerce a
vontade para resguardar a própria importância. De modo idêntico, exercemos a
vontade para desenvolver a virtude, para alcançar um estado dito espiritual. A
coisa de que estou falando, porém, é de todo diferente, inteiramente livre de qualquer
desejo, de qualquer ação, de qualquer compulsão para ser isso ou aquilo.
Ao examinardes o que digo, estais exercendo a razão,
não é verdade? A razão, todavia, conduz-nos apenas até um certo ponto, e não
mais além. Devemos obviamente exercer a razão, a capacidade de pensar nas
coisas de princípio a fim, sem pararmos a meio caminho. Mas, quando a razão
alcançou os seus limites e não pode ir mais longe, então a mente já não é o
instrumento da razão, da astúcia, do cálculo, do ataque e da defesa, desde que
o próprio centro de onde procedem todos os nossos pensamentos e todos os nossos
conflitos deixou de existir.
Pois bem. Agora que tendes ouvido estas palestras,
começais, por certo, a conhecer a vós mesmos momento por momento, durante o
dia, nas vossas diversas atividades; a mente está começando a conhecer-se a si
mesma, com todas as suas tortuosidades, resistências, crenças, suas exigências,
buscas, ambições, seus temores e ânsia de preenchimento. Uma vez apercebida de
tudo isso, não é possível à mente, ainda que por um segundo, ficar totalmente
tranquila, conhecer um silêncio em que existe liberdade? E quando há essa
liberdade silenciosa, então não é a mente, ela própria, o eterno?
Para conhecer o desconhecido, deve a mente ser, ela
própria, o desconhecido. A mente tem sido até agora o resultado do conhecido.
Que sois vós senão uma acumulação de coisas conhecidas: vossas tribulações,
vossas vaidades, vossas ambições, dores, realizações e frustrações? Tudo isso é
conhecido, o conhecido do tempo e do espaço; e enquanto a mente estiver
funcionando dentro da esfera do tempo, do conhecido, jamais poderá ser o
desconhecido: continuará, tão somente, a experimentar o que é conhecido.
Senhores, isto não é algo complicado ou misterioso:
descrevo fatos evidentes da nossa existência cotidiana. Com a carga do
conhecido, procura a mente descobrir o desconhecido. Como pode consegui-lo?
Todos falamos de Deus; em todas as religiões, em todas as igrejas e templos
esta palavra é empregada; sempre, porém, à imagem do conhecido. São
pouquíssimos os que abandonam todas as igrejas, todos os templos e livros, e
passam além, para descobrir.
No momento, a mente é o resultado do tempo, do
conhecido, e quando a mente, em tais condições, se põe a caminho para
descobrir, só pode descobrir o que já experimentou. Para descobrir o
desconhecido, precisa libertar-se de todo do conhecido, do passado, não por
meio de uma análise lenta, não por uma investigação gradual do passado,
interpretando cada sonho, cada reação, mas pelo perceber, completamente, instantaneamente,
enquanto estais aqui sentados, a verdade do que estou dizendo. Enquanto a mente
for resultado do tempo, do conhecido, nunca encontrará o desconhecido, que é
Deus, Realidade, ou como quiserdes chamá-lo. O percebimento da verdade a
esse respeito, liberta a mente do passado. Não traduzais logo a expressão
“libertar-se do passado” como significando “esquecer-se do caminho de casa”.
Isto é amnésia. Não o reduzais a uma maneira de entender tão infantil.
Entretanto, a mente está libertada no momento em que percebe a verdade de que
não pode encontrar o Real, essa inefável presença do desconhecido, quando está
cheia do “conhecido”. O conhecimento, a experiência é o “eu”, o “eu” que
acumulou e juntou; por consequência, todo conhecimento tem de ser sustado, toda
experiência posta de parte. E quando há o silêncio da liberdade, não é então a
mente, ela própria, o eterno? Ela está então experimentando algo inteiramente
novo, que é o Real; mas, para o experimentar, a mente deve sê-lo. Por favor,
não afirmeis ser a mente a Realidade. Não o é. A mente só pode experimentar a
Realidade, quando está totalmente livre do tempo; e esse “mecanismo
de descobrimento” é religião. Porque religião não é o que credes. Nenhuma
relação tem com o fato de serdes cristão ou budista, muçulmano ou hinduísta;
essas coisas não têm significação alguma, sendo, antes, um obstáculo; e a mente
desejosa de descobrir, deve despojar-se completamente delas todas. Para ser
nova, a mente deve estar sozinha; para que possa realizar-se a eterna criação,
deve a mente achar-se no estado de recebê-la. Mas, enquanto estiver às voltas
com suas tribulações e lutas, enquanto estiver carregada de conhecimentos,
embaraçada pelos obstáculos psicológicos, nunca estará a mente livre para
receber, para compreender, descobrir.
Nessas condições, uma pessoa verdadeiramente
religiosa não é aquela coberta por uma crosta de crenças, dogmas, rituais. A
pessoa religiosa não tem crenças; vive de momento a momento, sem jamais
acumular experiência alguma; por consequência, só ela é um ente verdadeiramente
revolucionário. A verdade não é uma continuidade no tempo; é para ser
descoberta a cada momento que passa. A mente que acumula, que retém, que
entesoura experiência, não pode viver momento por momento, descobrindo o novo.
Os que sentem verdadeiro interesse, os que não são
meros diletantes, que não estão apenas a brincar com estas coisas, têm uma
importância extraordinária na vida, porquanto eles se tornarão uma luz para si
próprios e, por conseguinte, para outros também. Falar de Deus, sem se
experimentar, sem se ter uma mente de todo livre, e, portanto, aberta para o
desconhecido, é coisa de mui pouca valia; é o mesmo que pessoas adultas se
entreterem com brinquedos; e quando nos entretemos com brinquedos e chamamos a
isso religião, estamos criando mais confusão, causando mais sofrimento. E só ao
compreendermos todo o mecanismo do pensar e dele nos libertarmos, pode
a mente estar tranquila; só então se manifesta o Eterno.
Krishnamurti em,
Percepção Criadora,
5 de julho de 1953
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