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quarta-feira, 11 de abril de 2018

A totalidade do mecanismo do conflito


A totalidade do mecanismo do conflito

Se me permitis, continuarei com o assunto de que está­ vamos tratando em nossa reunião de sexta-feira passada. Dizíamos então que era sumamente importante adotarmos uma nova maneira de pensar e, também, que era de toda a necessidade uma nova maneira de viver, neste mundo que se tornou tão superficial, com crescentes problemas e a constante perspectiva de tremendos perigos. Não denotamos perceber — principalmente neste país — quão grave é o problema. Aqui, achamo-nos em relativa segurança; talvez estejamos muito corrompidos, mas temos segurança. Temos nossos problemas: o nacionalismo se intensifica, enquanto noutros países está sendo repudiado; temos ainda líderes, quando noutros países os estão rejeitando; temos também a autoridade da posição, enquanto noutros países a autoridade está sendo posta em dúvida. Aqui muito se fala de religião, mas, na realidade, não somos religiosos, absolutamente; vivemos, como qualquer outro, superficialmente, interessados apenas em ganhar dinheiro, ter êxito, progredir, divertir-nos, como todos os demais habitantes deste mundo, embora falemos em alto som a respeito de Deus, etc.

Nessas condições, parece-me de essencial necessidade o advento de uma nova mentalidade. Não deixareis de reconhecer quanto é urgente essa necessidade, se observardes as condições mundiais, a geral superficialidade, os êxitos mecânicos, o progresso técnico, as tremendas influências postas em ação. Se observamos ainda mais atentamente essas condições, penetrando-as com certa profundeza, não podemos deixar de ver que é indispensável uma nova mentalidade. E essa nova qualidade não pode ser criada por nenhuma espécie de progresso técnico. Cumpre perceber isso bem claramente. E, se me permitis desejo estender-me mais um pouco sobre o que estava dizendo na última sexta-feira.

Como sabeis, vós sois o resultado do passado, de muitos dias que ficaram para trás. Sois o resultado de vosso ambiente, da sociedade em que fostes educados, da propaganda chamada religião que há séculos vem sendo instilada em vós. Podeis falar muito eloquentemente sobre as ideias religiosas e a influência ocidental na mente oriental, na vossa mente; mas tudo isso continua a ser muito perfunctório. Percebendo bem isso, qualquer pessoa verdadeiramente séria não pode deixar de perguntar a si própria: Para onde nos está levando tudo isso, qual a finalidade disso? Ao fazerdes com toda a seriedade esta pergunta, podereis retornar ao vosso condicionamento e responder que tudo “dará certo”, que se trata apenas de uma temporária mutação pela qual o homem está passando, e que no fim desta confusão tudo sairá certo, porque há Deus, porque há Justiça, Beleza, Amor. Mas tudo isso são só palavras sem muita significação. O homem faminto não se satisfaz com palavras: ele quer comida. Se fizerdes seriamente aquela pergunta a vós mesmo, vereis que, como já salientamos, sois o resultado do passado — o autêntico resultado — e que não há nada novo.

Toda tentativa para alcançar o novo é realmente uma reação do “velho”, projeção de uma certa parte do velho, sendo “o velho” a religião em que fostes criado, o meio cultural, a influência da família, da tradição, etc. Assim, não há nada novo. E, entretanto, as circunstâncias da vida — a crise atual, a presente confusão, miséria, sofrimento, fome — exigem o aparecimento de uma nova mentalidade; não de uma nova ordem de ideias, pois não se necessita de novas ideias ou ideais, porém, antes, de “um novo acesso à vida”, de todo diferente. E esse “novo acesso” não é de modo nenhum questão de tempo. Isto é, precisamos de mutação, de imediata transformação, de uma nova qualidade mental, para produzir uma ação de qualidade diferente, novos valores.

E como irá efetuar-se essa mutação? Era sobre isso que estávamos tentando falar na última sexta-feira, e desejo prosseguir com este tópico. Estivemos dizendo que é importante compreender um fato: o fato de que estamos imitando, de que estamos em busca de êxito, de que somos ambiciosos — que releva vermos esse fato. Porque o próprio ato de ver o fato produz a mutação. O próprio ato de ver uma certa coisa como um fato, sem emitir opinião, nem julgamento, sem condenação, produz o necessário ímpeto, a energia que operará a mutação. Talvez a maioria de vós não compreenda o significado desse ver, desse escutar. E desejo apreciar esse ponto, porquanto, para mim, o ato de ver, o ato de escutar constitui o único meio, o único instrumento que operará uma revolução, a transformação da mente.

Em maioria desejamos o bom êxito. Vou falar a esse respeito, a fim de ajudar-vos a ver o fato — não para o rejeitardes, não para o aceitardes: ajudar-vos a vê-lo, simplesmente. Em regra se adora o sucesso, o sucesso neste mundo; ou, também, desejamos ser bem sucedidos psicologicamente. E para se ser bem sucedido tem de haver imitação, cópia, continuidade do que foi. E, se observardes a vós mesmo, vereis ser isto o que desejais: sucesso; não só neste mundo, mas também interiormente aspirais a um resultado. E esse desejo de resultado implica, por certo, a observância de certo padrão, não é verdade? E quando tendes de observar um padrão, não há possibilidade de transformação fundamental. Todo afastamento do padrão gera medo. E, a fim de evitar o medo, seguis as linhas traçadas pela autoridade, e obedeceis a essa autoridade — que poderá ser o Gita, ou o líder político, ou o guru, ou quem quer que seja — a fim de terdes êxito, para estardes livres de perturbações, evitardes todo e qualquer conflito, sempre tendo em mente um resultado satisfatório, que represente um “sucesso”.[...]

Por que razão todos nós admitimos o conflito como parte da existência? Por que aceitamos o conflito como coisa essencial à vida? Se observardes vossa própria vida, vereis que estais em conflito, não só com vosso próximo e o mundo, mas também psicologicamente; interiormente vos achais num conflito muito maior. Não sabeis o que fazer. Ou, se sabeis o que deveis fazer, vós o fazeis; e o resultado é um problema, é sofrimento, atrito, luta. Tudo isso, como sabemos, é conflito; e estamos sempre procurando evitar esse conflito, fugir dele. Isso é um fato. Não estou tentando dizer-vos como ser livre de conflito — mostrar-vos o caminho, a via de fuga. A fuga, a coisa para a qual fugimos, se torna muito mais importante do que o próprio conflito. Essa coisa — bebida, vossa igreja, vossos deuses, sexo, poder, ambição — se torna importante; tudo isso representa uma fuga do fato de que estais em conflito. Eis a realidade. Por favor, vede esse fato; vede-o no sentido que dou à palavra “ver”; não negueis, não digais: “Que devo fazer com esse fato?”, “Como poderei fugir dele?”; vede o fato de que estais em conflito e de que há esse impulso a fugir do conflito. E que, depois de fugirdes, a coisa para a qual fugistes se torna de suma importância. Vossa religião, vosso nacionalismo, vosso guru, os ideais, os santos — tudo isso são fugas do fato central de que vos achais em conflito, de que vos achais em sofrimento.

Ora, como surge o conflito — não apenas os pequenos conflitos da vida diária, mas também os profundos conflitos interiores, os conflitos inconscientes e conscientes, que ficaram sem solução? Como surge esse conflito? Notai mais uma vez que não deveis aceitar nem rejeitar isso, mas, sim, verificar se o orador está dizendo a verdade, verificar — não concordar — se estais em conflito. Se estais realmente apercebido de vossas próprias condições, deveis ficar apercebido de estardes em conflito. Estais em conflito; por quê? Há conflito, porque há contradição. Quereis fazer uma certa coisa e ao mesmo tempo desejais fazer o oposto dela; isso é uma contradição, como o é o amor e o ódio, o ser ambicioso e ao mesmo tempo fingir-se não ambicioso, o desejar ser rico e simultaneamente fazer o mesmo jogo do político simulando pobreza. Há o fato, “o que sois”, e a ideia de “o que deveríeis ser”; o fato do que realmente é e a ideia do que deveria ser — uma contradição. Sois educado na ideia do que “deveríeis ser”, e de que não deveis enfrentar o fato. Sois educados para serdes não violentos e nunca enfrentardes o fato de que sois violentos. É o que se vem ensinando neste país há anos e anos: que deveis ser não violentos que deveis ser idealistas. E os ideais se tornam mais importantes do que “o que é”. Assim, entre o que é e o que deveria ser abre-se um vão, e o esforço para lançar uma ponte sobre esse vão gera conflito. Observai a vós mesmo. Estou apenas pondo em palavras aquilo que constitui o fato real.

É assim que surge a contradição; da contradição surge o conflito e, depois, vem o esforço. Gostamos de fazer esforços. Para nós o esforço é muito importante. Tudo o que fazemos é resultado de esforço. Isso é um fato. É o que estamos acostumados a fazer. Por que devemos forcejar?

Não é possível viver-se neste mundo sem esforço algum? Só podeis responder a esta pergunta se compreenderdes a totalidade do mecanismo do conflito, tanto exterior como interiormente — conflito entre nações e entre as pessoas, exteriormente; e o conflito, a profunda ansiedade interior. E, quando há conflito, há esse esforço para dominá-lo. Por conseguinte, o conflito surge por causa da contradição. E havendo contradição, com os sofrimentos, as agitações e ansiedades que a acompanham, há o impulso para se fazer esforço a fim de dominar esse conflito; e neste círculo ficamos presos. E todo o nosso interesse se concentra em fugirmos desse fato, resultando, daí, consequentemente, mais conflito — mais esforço em nossas práticas religiosas, com o fim de disciplinar, de moldar, compelir, renunciar, obedecer. Dessa maneira, nossa mente nunca se acha quieta, nunca é capaz de olhar qualquer coisa, de escutar qualquer coisa plenamente, completamente. Ela está sempre agitada.

E como pode a mente agitada compreender o que quer que seja? A vida é uma coisa imensa que precisa ser compreendida. A vida não é simplesmente exercer emprego, gerar filhos, não é meramente sexo, meramente prosperidade; a vida não é uma série de êxitos, não é o preenchimento de ambições; ela é muito mais do que tudo isso. A vida é também investigação, para descobrir se há ou se não há Deus, algo que se encontra além das palavras; para descobrir se o amor existe; descobrir como enfrentar e compreender o desespero, o sentimento de culpa, o imenso sofrimento, a ansiedade jacente no coração do homem. Tudo isso é a vida. E, para compreendê-la, necessita-se de uma mente serena, não uma mente talada pelo conflito, pela agitação.

E que acontece quando nos vemos frente a frente com tudo isso? Volvemos ao passado, ou recorremos a um certo livro, uma certa autoridade; e pensamos ter compreendido toda essa enorme complexidade seguindo uma certa fórmula absurda, ou o Gita, ou um guru, este ou aquele livro. Mas, para compreenderdes essa imensidade é necessário uma revolução em vossa mente — não revolução econômica e social, porém, sim, mutação da qualidade da mente. Essa mutação não pode ser efetuada por volição, porque, quanto mais recorrerdes ao passado, tanto mais condicionamento haverá e, por conseguinte, nenhuma possibilidade de mutação. Vede pois o fato — que é tudo isso — vede quanto nos tornamos mecanizados.

A virtude perdeu seu significado, pois qualquer um pode tornar-se virtuoso com ingerir certas substâncias químicas. Não sei se tendes visto tudo o que se está passando no mundo. A pessoa pode tomar uma pílula e tornar-se tranquila. A tranquilidade, portanto, perdeu sua significação. Podeis tomar um comprimido, um preparado químico, para vos tornardes menos irritadiço, menos ciumento, menos rancoroso, etc. Se sois sexualmente apaixonado, podeis tomar uma pílula e acalmar o amor. Perderam, pois, as virtudes o seu significado. E os computadores, os cérebros mecânicos, essas extraordinárias máquinas eletrônicas estão-se encarregando de pensar por nós; e, de fato, se desempenham de suas tarefas bem melhor ido que o homem. E a ‘'automatização” — máquinas que farão funcionar outras máquinas — está também prestes a surgir. Estamo-nos tornando — não só aqui na Índia, mas também no resto do mundo — muito superficiais, porque nos estamos mecanizando. Considerando-se tudo isso, que são fatos e não invenções minhas, os deuses já nada significam, as religiões perderam toda a sua importância; e estamos na expectativa de iminentes perigos. O futuro é desconhecido; o que tendes é unicamente o passado, e nada mais — o passado, constituído pelo que conheceis, pelo que aprendestes, o passado relativo à bomba atômica, à vossa tradição, etc. etc. Eis o que tendes. Vossa mente é só isso, e nada mais.

Ora, como operar, dessa base, aquela extraordinária mutação, aquela revolução radical? Este é que é o verdadeiro problema. Espero tenhais compreendido a pergunta; não se trata de “o que se deve fazer”. Devemos primeiramente compreender a pergunta e seu verdadeiro significado. Vede, senhores, vós ledes o Gita, sois cristãos, budistas, maometanos ou o que mais seja. O que faz a diferença não é o que o Gita diz, mas o que realmente sois; não são vossos turbantes e casacos, vossa erudição e saber, mas o que sois. Se isso vos é retirado, resta-vos apenas o passado, algo que já existiu, algo que conhecestes, enfim, o mecanismo do passado. E tudo o que fizerdes com base no passado condicionará o futuro e, por conseguinte, será ainda o passado.

Vede, por favor, a importância do que se está dizendo. Se fizerdes qualquer esforço para operar a mutação — e essa mutação é absolutamente necessária no mundo atual — esse impulso provirá do passado e, por conseguinte, condicionará a mutação, que, portanto, já não será mutação, e, sim, meramente, um prolongamento do passado. O que verdadeiramente nos interessa é a mutação, uma mente nova, capaz de perceber a totalidade da existência, e não simplesmente uma parte dela. Houve tempo em que vos diziam, neste país, que não devíeis ser provincialistas, separando-vos do resto da nação; e é estranho constatar que agora vos estais tornando nacionalistas, mas continuais divididos. O que vos deve interessar é o todo da vida; não a Índia, os hindus ou os budistas, mas o homem, o futuro do homem, a mente do homem, de que também fazeis parte. Assim, ao perceberdes esse fato, esse percebimento deve obrigar-vos a indagar fundamentalmente. Mas, se procurardes resposta para aquela pergunta, a resposta procederá do passado; assim, deveis fazer a pergunta sem procurar resposta. E isso é dificílimo: limitar-se a fazer a pergunta, e investigar.

Nosso problema, portanto, é este: Há necessidade de uma radical revolução interior, na mente, na consciência. Ao verificar-se essa revolução, ela atuará na esfera social e econômica, e de forma singular. Ora, como promover essa revolução? Estou empregando a palavra “como”, não para sugerir um método, um sistema— pois, se tendes algum método ou sistema, isso faz parte ainda do passado; estou empregando-a apenas como meio de investigação e não como meio de oferecer um sistema. Como promover essa revolução?

Em primeiro lugar, para se viver plenamente, para se ver claramente qualquer coisa, é preciso que não haja conflito de espécie alguma; por conseguinte, deve haver compreensão de todo o problema da contradição — e isso significa investigar, observar as operações da própria mente e ver que qualquer forma de ambição, de ordem externa ou interna, produz contradição. Sempre que há preenchimento pessoal, sempre que há impulso para o preenchimento — impulso para ser isto ou não ser aquilo — nesse próprio desejo de preenchimento há contradição, ou seja, frustração. Deste modo, a ambição, o sucesso, o preenchimento implicam frustração, e da frustração resulta conflito. Tudo isso são fatos psicológicos, e não invenções minhas. Se vos observardes, verificareis serem esses os fatos que estão ocorrendo.

Assim, a mente que está procurando compreender o que a mutação implica já deixou de ser ambiciosa. Perguntareis, então: Como pode essa mente viver neste mundo — este mundo feito de conflito, de ambição, de crueldade, em que cada um só cuida de si — como pode a mente não ambiciosa viver neste mundo? Não pode. Por conseguinte, quando tiverdes compreendido e abandonado completamente a ambição, vereis que podereis viver sem os preceitos da velha sociedade, pois tereis criado um novo mundo. Compreendeis, senhores, o que estamos dizendo? Um novo mundo precisa vir à existência. E não podereis criar um novo mundo, se apenas dizeis: “Tenho de ajustar-me, para viver neste mundo”. Vós tendes de destruir esta sociedade, para criardes um mundo novo. Não estou falando da destruição de construções, porém da destruição dos valores sociais. E isso não desejais fazer, porque temeis; por conseguinte, novamente vos vedes envolvido em conflito.

Tendes, pois, de ver com clareza que, havendo ambição de qualquer espécie, há também conflito, sofrimento. Mas, como sabeis, somos criados na ambição, na competição. Todo escolar é ensinado a competir. Ensina-se-lhe a adorar o êxito. E como rejeitareis todo esse padrão, o padrão em que fostes educado? Vós o rejeitareis quando perceberdes a importância de rejeitá-lo, quando estiverdes enfrentando uma crise. E a crise atual reclama uma mente nova. É o que ela reclama, e não uma maneira de reformar o velho padrão. Assim, uma vez apercebido da crise, uma, vez apercebido de tudo o que a ambição implica, após terdes penetrado a fundo em vós mesmo para descobrirdes a fonte da ambição — porque sois ambicioso, porque há competição, luta, ânsia de posição, de prestígio pessoal — depois de terdes compreendido toda a anatomia da ambição, ou ficareis com a ambição e suas crueldades, ou saireis dela. E o homem que “saiu” dela cria uma mente nova, um pensar de nova qualidade.

Assim, o que deveras nos interessa é perceber a importância dessa profunda revolução interior e descobrir se ela é possível, ou não, a cada um de nós. A época a exige, as circunstâncias também, vossa própria vida a impõe; e o extraordinário nisso é que não há tempo. Não podeis dizer: “com o tempo eu mudarei, acumularei a energia necessária para efetuar a mutação”. O tempo não vos dá energia. O tempo vos rouba energia; envelheceis, definhais. O que vos dá energia para investigar profundamente é o enfrentar o fato, simplesmente enfrentar o fato, qualquer que seja ele. E vereis que, do enfrentar o fato, nasce a energia. Ela não nasce da negação do fato; esta nunca dá energia. E vós necessitais de tremenda energia, porque não só é necessário enfrentar e compreender as trivialidades da vida, mas é necessário também ultrapassá-las. Há ainda outra coisa mais significativa e que requer toda a vossa atenção: Precisais descobrir por vós mesmo, não por meio de palavras, porém realmente, se alguma coisa existe além dos limites da mente, algo chamado o Imensurável, que transcende a morte, as palavras, o pensamento. Se não descobrimos isso, a vida se torna bem superficial, mecânica; e ela é então toda de sofrimentos e agitações. E para o descobrirdes, necessitais de imensa energia.

Mas essa energia só pode vir quando compreendida a “qualidade de ver”, a “qualidade de escutar”, quando a pessoa é capaz de olhar os fatos, olhar o próprio ciúme, a própria ambição, olhar as próprias paixões e todos os absurdos de que se cercou e a que chama “religião”. E quando temos a capacidade de enfrentar esses fatos e de não reagir, desse enfrentar resulta energia. E é essa qualidade de energia que opera a mutação. E só então a mente se torna algo extraordinário; já não é produto do ambiente, já não é produto da experiência. Fica então apta a renovar-se constantemente; passa a ter aquela qualidade denominada juventude, inocência. E ela necessita dessa qualidade que é a inocência, a perfeita humildade, a fim de descobrir o que se acha além das palavras, além do pensamento, além do tempo.

Krishnamurti, Nova Déli, 28 de janeiro de 1962, A mutação Interior


sábado, 7 de abril de 2018

A percepção do mecanismo do pensar


A percepção do mecanismo do pensar

Havendo tantos problemas a desafiar-nos, vendo-se o mundo em guerra ou preparando-se para a guerra, tanta produção e ao mesmo tempo tanta miséria — penso que a coisa mais importante, em toda esta luta humana, é a compreensão da mente. Por certo, a mente é o único instrumento capaz de descobrir a solução correta dos inúmeros problemas existentes e, no entanto, só em raras ocasiões nos dispomos a refletir sobre o "mecanismo" da mente ou examiná-lo. Pensamos que soluções "já prontas" ou certos padrões de pensamento resolverão os nossos problemas. Como hinduístas, temos uma certa maneira de pensar, a qual esperamos resolverá os nossos complexos problemas. E se somos comunistas, cristãos ou budistas, temos também nossas soluções "já prontas". Bem poucos concedem realmente atenção ao mecanismo do pensar, às operações da própria mente, e parece-me que aí é que se encontrará a solução, e não em querermos resolver o problema com uma mente já moldada ou condicionada.

Assim sendo, nesta tarde, eu desejo, se me for permitido, considerar a questão da mente — o que é a mente. Porque, é bem óbvio, se não penetramos profundamente este problema, se não compreendemos a estrutura e o estado da mente, o mero pensar especulativo ou a identificação com uma certa crença, é de todo em todo fútil. E quando se procura compreender o mecanismo da mente é importante saber escutar corretamente. Em geral escutamos com nossa mente prevenida, ou cheia de preconceitos, ou com o fim de procurarmos argumentos contrários — e muito poucas pessoas escutam com verdadeiro interesse e em plena liberdade. Mas é só quando investigamos em liberdade, não tolhidos por nenhuma crença, que a mente é capaz de achar a verdade relativa a qualquer problema. Esta palestra, pois, só será significativa se soubermos escutar corretamente — o que é muito difícil — em vez de a considerarmos simplesmente como uma conferência a que acidentalmente viemos assistir, para passarmos a tarde, e depois a esquecermos.

Como dizia, a menos que compreendamos as operações da mente, não há possibilidade de compreendermos o complexo problema do viver. Pois bem. Que é a mente? Queremos descobrir isso e, portanto, não devemos simplesmente afirmar ou aceitar. E, para descobri-lo, tendes de observar o funcionamento de vossa própria mente enquanto estais ouvindo descrever o que é a mente. Isto é, embora eu esteja falando, descrevendo a mente, deveis estar apercebidos do mecanismo de vosso próprio pensar para, assim, descobrirdes por vós mesmos o que é a mente.

Esclareçamo-nos bem a esse respeito, porque é importante compreender a mente. A mente é o único instrumento que possuímos, o instrumento da percepção, da compreensão, do pensamento. E sem essa clarificação da mente, o nosso esforço para descobrirmos o que é a Verdade, a Realidade, Deus, etc., terá muito pouca significação. Tentemos, pois, investigar o verdadeiro mecanismo da mente, e não apenas aceitar ou rejeitar o que se vai dizer.

Sabemos que a mente é tanto consciente como inconsciente, que ela é uma totalidade, abrangendo tanto os "mecanismo" manifestos como os "mecanismo" ocultos do pensamento. Em geral, ocupamo-nos exclusivamente com o consciente, as ocorrências de cada dia, nossas ambições, lutas, nossa avidez, e deixamos completamente de perceber o conteúdo do inconsciente, isto é, da mente subjacente às atividades diárias da mente consciente. E enquanto não compreendermos a totalidade, inclusive o que se acha no inconsciente, a mera ocupação com o consciente muito pouca significação terá.

Sabemos que a mente consciente se ocupa com os acontecimentos de cada dia, com o emprego, o sustento, e suas reações e constantes ajustamentos aos problemas imediatos. É a mente consciente que é educada para aprender uma certa técnica, acumular conhecimentos, adquirir a chamada cultura. Abaixo dessa mente superficial, existem as muitas camadas do inconsciente, onde estão arraigados os impulsos raciais, culturais e sociais, as crenças e tradições religiosas, as reações instintivas baseadas nos valores da sociedade em cujo meio fomos criados. Sem pormenorizarmos muito, é isso que constitui a totalidade da mente, não é verdade? Assim, pois, a totalidade da mente é condicionada, moldada, limitada por numerosas influências — nosso regime alimentar, o clima, a sociedade em que vivemos, valores sociais e econômicos.

Ora bem, com esta mente condicionada, com a qual nos achamos insatisfeitos, queremos achar algo existente além da mente. Vê-se que a mente é muito pequena, confusa, contraditória, e, no entanto, é com ela que estamos tentando compreender o incognoscível. Afinal de contas, a nossa mente é resultado do tempo, sendo "tempo" o conhecido, o passado, as acumulações de conhecimento. E com esse instrumento que está sempre dentro da esfera do tempo, as pessoas ditas religiosas estão tentando encontrar algo que não se acha no tempo. E surge, assim, inevitavelmente, a questão de saber se a mente condicionada é capaz de compreender ou experimentar uma coisa não fabricada por ela própria. Este é um dos nossos grandes problemas, não?

E também, naturalmente, nunca seremos capazes de resolver os nossos problemas, enquanto estivermos pensando como hinduístas, cristãos ou comunistas, porque foi justamente porque pensamos em tais termos que se criaram os problemas. É só quando a mente está livre de todas as tradições, valores, crenças, superstições, aceitações, que existe a possibilidade de resolvermos os numerosos problemas humanos.

A questão, por conseguinte, é esta: pode a mente, que foi criada, educada, segundo um certo padrão, libertar-se desse padrão? Isto é, pode a mente abandonar as crenças, as tradições e valores baseados unicamente na autoridade, na simples aceitação? Pode-se pôr de parte tudo isso, a fim de que a mente fique livre para investigar, descobrir? É este o nosso problema, não? E ele, realmente, significa: é possível a mente libertar-se da segurança em que se aprisionou? Porque, em verdade, o que quase todos estamos buscando, exterior ou interiormente, é alguma forma de segurança. Se tenho a segurança exterior, dada pela posição, pelo prestígio, pelo dinheiro, posso ficar temporariamente satisfeito. Mas chega o dia em que começo a aspirar a uma segurança interior e, assim, busco um refúgio psicológico na crença, no dogma, na tradição, num certo padrão de pensamento. E pode a mente que anda em busca da segurança, que deseja ver-se segura, não perturbada, pode essa mente encontrar a Realidade, Deus, ou que nome lhe deis? Não pode, naturalmente. A mente que deseja ver-se em segurança, encontrará o que está buscando, mas não o que é verdadeiro.

Assim sendo, pode a mente libertar-se desse desejo de segurança? E não há dúvida de que uma mente que busca a segurança, interiormente, criará invariavelmente a insegurança exterior, na estrutura social. O nacionalismo, por exemplo, é uma ideia a que a mente se apega, como meio de segurança psicológica. E esta devoção ao nacionalismo cria inevitavelmente a insegurança exterior, como está, exatamente, acontecendo no mundo.

Ora, se prestardes muita atenção, vereis que a mente está sempre a esforçar-se por achar algo permanente, aquela chamada paz, realidade, ou como quiserdes chamá-la. E existe coisa permanente? Entretanto, a mente cria valores que supõe permanentes, e neles crê; estabelece certos hábitos de pensamento que se tornam permanentes e, assim, em tais condições, a mente nunca está livre para inquirir, investigar. Acho importante compreender a significação disso, porque, afinal de contas, a liberdade está no começo e não no fim. Só a mente livre é capaz de investigar, e não aquela que está amarrada, que está senhoreada pela crença, pelo dogma, pela tradição. Entretanto, nossa educação está toda baseada nessas coisas, não só na escola, mas através de nossa carreira na vida, que também faz parte de nossa educação. Nunca investigamos se há possibilidade de termos, em primeiro lugar, liberdade, porquanto uma investigação desta natureza requer um mecanismo de pensamento que não comece com uma suposição, ou com a experiência acumulada, própria ou de outros.

Parece-me, por conseguinte, que para se encontrar a Realidade, o desconhecido — que não deve ser premeditado nem objeto de especulação — a mente tem de estar livre de tudo o que conhece, tem de morrer para todos os dias de seu passado. Só então a mente é "inocente" e capaz de descobrir o Real.

Tenho aqui algumas perguntas e desejaria saber porque se fazem perguntas. É com a intenção de receber respostas? Existe alguma resposta, ou apenas uma exploração, uma penetração do problema, sem se lhe buscar a solução? Se busco-a solução, minha mente fica então toda concentrada no descobrimento da solução, e não na compreensão do problema. Quase todos só nos interessamos pela solução, pela resposta, e por isso não damos inteira atenção ao problema. Por isso, o problema nunca é compreendido e fica, portanto, sem solução. O investigar do problema exige uma mente que não busca solução, uma mente capaz de investigar sem julgar ou condenar. Poderemos considerar alguma coisa sem estabelecermos comparação, julgamento, condenação? Procurai fazê-lo, e vereis quão extraordinariamente difícil o é; e isso se deve a que o mecanismo de nosso pensar é baseado na comparação, no julgamento, na condenação. Mas se somos capazes de investigar o problema, sem esperarmos nenhuma solução, então o problema se resolve por si mesmo, sem precisarmos procurar-lhe a solução.

Krishnamurti, Primeira Conferência em Madanapale, 12 de fevereiro de 1956
Da Solidão à Plenitude Humana

quarta-feira, 4 de abril de 2018

O estado que não é produto da mente


O estado que não é produto da mente

Seria muito útil e importante, parece-me, considerarmos a questão de qual é a verdadeira religião; e talvez, investigando esta questão um pouco profundamente, tenhamos a possibilidade de descobrir, de experimentar diretamente, por nós mesmos, aquele estado que não é produto da mente e que deve ser algo desconhecido e totalmente novo, nunca dantes experimentado. Para descobrir-se, porém, e experimentar aquele estado, acho que teremos, em primeiro lugar, de compreender o “mecanismo” do intelecto, da mente. A mente se constitui não apenas do consciente, mas também das muitas camadas daquilo a que chamamos “o inconsciente”; é um “mecanismo” total, embora, por conveniência, a dividamos em “consciente” e “inconsciente”, com as diferentes gradações de consciência existentes entre os dois. Para compreendermos as várias atividades da mente, devemos, por certo, não apenas investigar no nível superficial ou verbal, mas também penetrar profundamente no “mecanismo” do próprio pensamento.

O que desejo fazer nesta manhã, se for possível — e não sei se é — é produzir aquele estado que não é concebível, que não é imaginável, que não pode ser sistematizado nem conjecturado; e isso, por certo, não requer nenhuma condição de auto-hipnose nem de mera auto-sugestão, mas, sim, o gradual desdobrar-se — enquanto falo — do mecanismo da vossa própria mente. Podemos descobrir juntos e experimentar diretamente aquele estado a que aspiram todas as religiões — despidas do seu eclesiasticismo, dos seus dogmas, dos seus ritos e inumeráveis contrassensos? Não vou guiar-vos para o descobrirdes, pois o descobrimento tem de ser espontâneo. Deveis descobri-lo por vós mesmos. Tentarei tão somente descrever como esse estado aparece; mas, se apenas seguirdes a descrição verbal, então, é claro, não compreendereis esse estado, que só pode surgir quando a mente já não está “projetando” nem resistindo.

Como eu ia dizendo, temos em primeiro lugar de compreender o intelecto, o mecanismo da consciência, não apenas a superficial, senão também as suas camadas mais profundas; e, para o fazermos, precisamos, evidentemente, começar pelas reações e “respostas” verbais. Além do seu significado exterior, palavras como “deus”, “comunista”, “capitalista”, “avidez”, “progresso”, “morte”, têm uma grande significação para a maioria de nós, não é verdade? Têm elas uma significação assim neurológica como psicológica. As palavras são símbolos; e se as não empregamos, temos símbolos sob outras formas, como a cruz e os símbolos religiosos da Índia. E é possível abster-nos de reagir, de levantar barreiras, em reação aos símbolos? Pode a mente, naquele nível superficial, pôr de parte o mecanismo imaginativo, especulativo, verbal, com todas as suas reações? É muito difícil fazê-lo, pois, no momento, a mente só pensa dentro do âmbito das palavras, dos símbolos, das imagens.

E não devemos investigar o mecanismo do desejo? Sem dúvida, pois o desejo é parte da mente, do intelecto, da inteligência de que nos servimos no viver cotidiano. O desejo é o autêntico mecanismo da mente, da mente que acumula, retém, que possui inúmeros impulsos, busca sensações, exige mais, que evita a dor e anseia pelo prazer. A mente está sempre em procura de um abrigo seguro, onde possa habitar sem ser perturbada, não é exato? Procura viver permanentemente em segurança, numa ideia, numa crença, numa experiência, numa relação. Tudo isso é o mecanismo da mente, do que chamamos “intelecto”, “inteligência individual”; isso, que faz parte da consciência, manifesta ou oculta, é tudo o que sabemos.

Pois bem. Conhecendo o mecanismo integral de si mesma, pode a mente transcendê-lo? Pode ela estar serena, a fim de descobrir o que é verdadeiro, o que é real, o que é Deus? É isso o que desejo considerar nesta manhã. Pode a mente estar apercebidas das suas numerosas camadas, das reações verbais, dos apetites puramente físicos, das necessidades e impulsos biológicos, do cunho da tradição e do ambiente, das lembranças claras e ocultas — pode a mente estar apercebidas de tudo isso, sem interferir de maneira alguma? O pensamento é sempre condicionado enquanto é a expressão verbal da memória; e enquanto a mente não estiver de todo livre dessa extraordinária acumulação do passado, o desconhecido, evidentemente, é inalcançável. Enquanto não desaparecer o mecanismo de reconhecimento, não pode existir o novo.

Tende paciência, senhores; consideremos esta questão um pouco mais longamente. Afinal de contas, o que chamamos experiência é um mecanismo de reconhecimento, não é verdade? Quando vedes um certo animal, sabeis que é um cão, porque tendes conhecimento anterior da espécie e lhe destes um nome. Quando vos encontrais com um amigo, o reconheceis, porque tivestes experiência anterior dessa amizade. Quando há uma experiência psicológica, essa experiência foi conhecida anteriormente e lhe destes um nome. A mente pode reconhecer apenas o que já foi experimentado; não pode reconhecer uma coisa nova, pois o que é novo não é reconhecível. Assim, a Verdade, Deus, ou como o chamardes, tem de ser totalmente novo, não pode ser reconhecido. Se for reconhecido, então já foi experimentado antes, e o que já foi experimentado está compreendido na esfera do tempo. Procurai perceber isso claramente, e compreendereis algo. Não é difícil. As palavras que estou empregando podem ser difíceis; porém, o sentido, o significado do que digo é muito simples.

A função da mente é cognitiva, não é verdade? A mente reconhece, pensa; e seu pensar, seu reconhecer, seu experimentar procede todo do “fundo” (background) da memória. Afinal, se sou hinduísta meu condicionamento limita o meu pensar; penso em Deus, na moral, em conformidade com a tradição e tudo o que li nas escrituras hinduístas. E os que são cristãos ou budistas, ou o que quiserdes, e que têm inclinações religiosas estão igualmente condicionados por tudo o que lhes foi ensinado.

Pois bem. O que estamos tentando — não só agora, mas sempre — é descobrir se a mente pode libertar-se do seu condicionamento e experimentar o que nunca foi experimentado anteriormente. Sem dúvida, esse é o experimentar da Realidade e a religião verdadeira, não achais? A religião nada tem em comum com crenças, com símbolos, ritos, promessas, com esperanças e temores, em torno dos quais são construídos os credos e as igrejas. Tão pouco é questão de moralidade. O indivíduo de princípios morais pode nunca vir a conhecer a Realidade — o que não significa que para conhecer a Realidade deva ser imoral. A moralidade resultante de esforço consciente limita a mente. A virtude só é necessária porque dá liberdade; o homem, porém, que se esforça para tornar-se virtuoso, jamais é livre.

Nessas condições, conhecendo todo o conteúdo da mente, suas recusas, suas resistências, suas atividades disciplinares, seus vários esforços visando à segurança, coisas essas que têm o efeito de condicionar-lhe e limitar o pensar — pode a mente, como “mecanismo integrado”, estar totalmente livre para descobrir o que é eterno? Porque, sem esse descobrimento, sem o experimentar dessa realidade, todos os nossos problemas, com suas respectivas soluções, conduzem tão somente a novos sofrimentos e desastres. Isso é óbvio, e pode-se observar na vida de cada dia. Individualmente, politicamente, internacionalmente, em toda e qualquer atividade, estamos sempre a criar maiores malefícios, o que será sempre inevitável, enquanto não tivermos experimentado aquele estado de religião, aquele estado que só é possível experimentar-se quando a mente se acha de todo livre.

Agora, tendo ouvido isto, podeis, ainda que por um segundo, conhecer aquela liberdade? Não podeis conhecê-la apenas por eu a estar sugerindo, pois, nesse caso, ela seria unicamente uma ideia, uma opinião, sem muito significado. Entretanto, se tendes acompanhado todas estas palestras muito seriamente, estais começando a conhecer o mecanismo do vosso próprio pensar, sua direção, seus intentos, seus móveis; e, em vista desse conhecimento, chegareis, por força, ao estado em que a mente já não está a procurar, a escolher, lutando para realizar seus fins. Depois de perceber todo o seu próprio mecanismo, a mente se torna tranquila num grau extraordinário, sem nenhuma tendência, sem nenhuma volição, sem nenhuma ação voluntária. A vontade é ainda desejo, não é verdade? O homem ambicioso, no sentido mundano, sente um forte desejo de realizar algo, de ser bem-sucedido, tornar-se famoso, e exerce a vontade para resguardar a própria importância. De modo idêntico, exercemos a vontade para desenvolver a virtude, para alcançar um estado dito espiritual. A coisa de que estou falando, porém, é de todo diferente, inteiramente livre de qualquer desejo, de qualquer ação, de qualquer compulsão para ser isso ou aquilo.

Ao examinardes o que digo, estais exercendo a razão, não é verdade? A razão, todavia, conduz-nos apenas até um certo ponto, e não mais além. Devemos obviamente exercer a razão, a capacidade de pensar nas coisas de princípio a fim, sem pararmos a meio caminho. Mas, quando a razão alcançou os seus limites e não pode ir mais longe, então a mente já não é o instrumento da razão, da astúcia, do cálculo, do ataque e da defesa, desde que o próprio centro de onde procedem todos os nossos pensamentos e todos os nossos conflitos deixou de existir.

Pois bem. Agora que tendes ouvido estas palestras, começais, por certo, a conhecer a vós mesmos momento por momento, durante o dia, nas vossas diversas atividades; a mente está começando a conhecer-se a si mesma, com todas as suas tortuosidades, resistências, crenças, suas exigências, buscas, ambições, seus temores e ânsia de preenchimento. Uma vez apercebida de tudo isso, não é possível à mente, ainda que por um segundo, ficar totalmente tranquila, conhecer um silêncio em que existe liberdade? E quando há essa liberdade silenciosa, então não é a mente, ela própria, o eterno?

Para conhecer o desconhecido, deve a mente ser, ela própria, o desconhecido. A mente tem sido até agora o resultado do conhecido. Que sois vós senão uma acumulação de coisas conhecidas: vossas tribulações, vossas vaidades, vossas ambições, dores, realizações e frustrações? Tudo isso é conhecido, o conhecido do tempo e do espaço; e enquanto a mente estiver funcionando dentro da esfera do tempo, do conhecido, jamais poderá ser o desconhecido: continuará, tão somente, a experimentar o que é conhecido.

Senhores, isto não é algo complicado ou misterioso: descrevo fatos evidentes da nossa existência cotidiana. Com a carga do conhecido, procura a mente descobrir o desconhecido. Como pode consegui-lo? Todos falamos de Deus; em todas as religiões, em todas as igrejas e templos esta palavra é empregada; sempre, porém, à imagem do conhecido. São pouquíssimos os que abandonam todas as igrejas, todos os templos e livros, e passam além, para descobrir.

No momento, a mente é o resultado do tempo, do conhecido, e quando a mente, em tais condições, se põe a caminho para descobrir, só pode descobrir o que já experimentou. Para descobrir o desconhecido, precisa libertar-se de todo do conhecido, do passado, não por meio de uma análise lenta, não por uma investigação gradual do passado, interpretando cada sonho, cada reação, mas pelo perceber, completamente, instantaneamente, enquanto estais aqui sentados, a verdade do que estou dizendo. Enquanto a mente for resultado do tempo, do conhecido, nunca encontrará o desconhecido, que é Deus, Realidade, ou como quiserdes chamá-lo. O percebimento da verdade a esse respeito, liberta a mente do passado. Não traduzais logo a expressão “libertar-se do passado” como significando “esquecer-se do caminho de casa”. Isto é amnésia. Não o reduzais a uma maneira de entender tão infantil. Entretanto, a mente está libertada no momento em que percebe a verdade de que não pode encontrar o Real, essa inefável presença do desconhecido, quando está cheia do “conhecido”. O conhecimento, a experiência é o “eu”, o “eu” que acumulou e juntou; por consequência, todo conhecimento tem de ser sustado, toda experiência posta de parte. E quando há o silêncio da liberdade, não é então a mente, ela própria, o eterno? Ela está então experimentando algo inteiramente novo, que é o Real; mas, para o experimentar, a mente deve sê-lo. Por favor, não afirmeis ser a mente a Realidade. Não o é. A mente só pode experimentar a Realidade, quando está totalmente livre do tempo; e esse “mecanismo de descobrimento” é religião. Porque religião não é o que credes. Nenhuma relação tem com o fato de serdes cristão ou budista, muçulmano ou hinduísta; essas coisas não têm significação alguma, sendo, antes, um obstáculo; e a mente desejosa de descobrir, deve despojar-se completamente delas todas. Para ser nova, a mente deve estar sozinha; para que possa realizar-se a eterna criação, deve a mente achar-se no estado de recebê-la. Mas, enquanto estiver às voltas com suas tribulações e lutas, enquanto estiver carregada de conhecimentos, embaraçada pelos obstáculos psicológicos, nunca estará a mente livre para receber, para compreender, descobrir.

Nessas condições, uma pessoa verdadeiramente religiosa não é aquela coberta por uma crosta de crenças, dogmas, rituais. A pessoa religiosa não tem crenças; vive de momento a momento, sem jamais acumular experiência alguma; por consequência, só ela é um ente verdadeiramente revolucionário. A verdade não é uma continuidade no tempo; é para ser descoberta a cada momento que passa. A mente que acumula, que retém, que entesoura experiência, não pode viver momento por momento, descobrindo o novo.

Os que sentem verdadeiro interesse, os que não são meros diletantes, que não estão apenas a brincar com estas coisas, têm uma importância extraordinária na vida, porquanto eles se tornarão uma luz para si próprios e, por conseguinte, para outros também. Falar de Deus, sem se experimentar, sem se ter uma mente de todo livre, e, portanto, aberta para o desconhecido, é coisa de mui pouca valia; é o mesmo que pessoas adultas se entreterem com brinquedos; e quando nos entretemos com brinquedos e chamamos a isso religião, estamos criando mais confusão, causando mais sofrimento. E só ao compreendermos todo o mecanismo do pensar e dele nos libertarmos, pode a mente estar tranquila; só então se manifesta o Eterno.

Krishnamurti em, Percepção Criadora,
5 de julho de 1953
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill