A percepção do mecanismo do pensar
Havendo tantos problemas a desafiar-nos, vendo-se o mundo em guerra ou preparando-se para a guerra, tanta produção e ao mesmo tempo tanta miséria — penso que a coisa mais importante, em toda esta luta humana, é a compreensão da mente. Por certo, a mente é o único instrumento capaz de descobrir a solução correta dos inúmeros problemas existentes e, no entanto, só em raras ocasiões nos dispomos a refletir sobre o "mecanismo" da mente ou examiná-lo. Pensamos que soluções "já prontas" ou certos padrões de pensamento resolverão os nossos problemas. Como hinduístas, temos uma certa maneira de pensar, a qual esperamos resolverá os nossos complexos problemas. E se somos comunistas, cristãos ou budistas, temos também nossas soluções "já prontas". Bem poucos concedem realmente atenção ao mecanismo do pensar, às operações da própria mente, e parece-me que aí é que se encontrará a solução, e não em querermos resolver o problema com uma mente já moldada ou condicionada.
Assim sendo, nesta tarde, eu desejo, se me for permitido, considerar a questão da mente — o que é a mente. Porque, é bem óbvio, se não penetramos profundamente este problema, se não compreendemos a estrutura e o estado da mente, o mero pensar especulativo ou a identificação com uma certa crença, é de todo em todo fútil. E quando se procura compreender o mecanismo da mente é importante saber escutar corretamente. Em geral escutamos com nossa mente prevenida, ou cheia de preconceitos, ou com o fim de procurarmos argumentos contrários — e muito poucas pessoas escutam com verdadeiro interesse e em plena liberdade. Mas é só quando investigamos em liberdade, não tolhidos por nenhuma crença, que a mente é capaz de achar a verdade relativa a qualquer problema. Esta palestra, pois, só será significativa se soubermos escutar corretamente — o que é muito difícil — em vez de a considerarmos simplesmente como uma conferência a que acidentalmente viemos assistir, para passarmos a tarde, e depois a esquecermos.
Como dizia, a menos que compreendamos as operações da mente, não há possibilidade de compreendermos o complexo problema do viver. Pois bem. Que é a mente? Queremos descobrir isso e, portanto, não devemos simplesmente afirmar ou aceitar. E, para descobri-lo, tendes de observar o funcionamento de vossa própria mente enquanto estais ouvindo descrever o que é a mente. Isto é, embora eu esteja falando, descrevendo a mente, deveis estar apercebidos do mecanismo de vosso próprio pensar para, assim, descobrirdes por vós mesmos o que é a mente.
Esclareçamo-nos bem a esse respeito, porque é importante compreender a mente. A mente é o único instrumento que possuímos, o instrumento da percepção, da compreensão, do pensamento. E sem essa clarificação da mente, o nosso esforço para descobrirmos o que é a Verdade, a Realidade, Deus, etc., terá muito pouca significação. Tentemos, pois, investigar o verdadeiro mecanismo da mente, e não apenas aceitar ou rejeitar o que se vai dizer.
Sabemos que a mente é tanto consciente como inconsciente, que ela é uma totalidade, abrangendo tanto os "mecanismo" manifestos como os "mecanismo" ocultos do pensamento. Em geral, ocupamo-nos exclusivamente com o consciente, as ocorrências de cada dia, nossas ambições, lutas, nossa avidez, e deixamos completamente de perceber o conteúdo do inconsciente, isto é, da mente subjacente às atividades diárias da mente consciente. E enquanto não compreendermos a totalidade, inclusive o que se acha no inconsciente, a mera ocupação com o consciente muito pouca significação terá.
Sabemos que a mente consciente se ocupa com os acontecimentos de cada dia, com o emprego, o sustento, e suas reações e constantes ajustamentos aos problemas imediatos. É a mente consciente que é educada para aprender uma certa técnica, acumular conhecimentos, adquirir a chamada cultura. Abaixo dessa mente superficial, existem as muitas camadas do inconsciente, onde estão arraigados os impulsos raciais, culturais e sociais, as crenças e tradições religiosas, as reações instintivas baseadas nos valores da sociedade em cujo meio fomos criados. Sem pormenorizarmos muito, é isso que constitui a totalidade da mente, não é verdade? Assim, pois, a totalidade da mente é condicionada, moldada, limitada por numerosas influências — nosso regime alimentar, o clima, a sociedade em que vivemos, valores sociais e econômicos.
Ora bem, com esta mente condicionada, com a qual nos achamos insatisfeitos, queremos achar algo existente além da mente. Vê-se que a mente é muito pequena, confusa, contraditória, e, no entanto, é com ela que estamos tentando compreender o incognoscível. Afinal de contas, a nossa mente é resultado do tempo, sendo "tempo" o conhecido, o passado, as acumulações de conhecimento. E com esse instrumento que está sempre dentro da esfera do tempo, as pessoas ditas religiosas estão tentando encontrar algo que não se acha no tempo. E surge, assim, inevitavelmente, a questão de saber se a mente condicionada é capaz de compreender ou experimentar uma coisa não fabricada por ela própria. Este é um dos nossos grandes problemas, não?
E também, naturalmente, nunca seremos capazes de resolver os nossos problemas, enquanto estivermos pensando como hinduístas, cristãos ou comunistas, porque foi justamente porque pensamos em tais termos que se criaram os problemas. É só quando a mente está livre de todas as tradições, valores, crenças, superstições, aceitações, que existe a possibilidade de resolvermos os numerosos problemas humanos.
A questão, por conseguinte, é esta: pode a mente, que foi criada, educada, segundo um certo padrão, libertar-se desse padrão? Isto é, pode a mente abandonar as crenças, as tradições e valores baseados unicamente na autoridade, na simples aceitação? Pode-se pôr de parte tudo isso, a fim de que a mente fique livre para investigar, descobrir? É este o nosso problema, não? E ele, realmente, significa: é possível a mente libertar-se da segurança em que se aprisionou? Porque, em verdade, o que quase todos estamos buscando, exterior ou interiormente, é alguma forma de segurança. Se tenho a segurança exterior, dada pela posição, pelo prestígio, pelo dinheiro, posso ficar temporariamente satisfeito. Mas chega o dia em que começo a aspirar a uma segurança interior e, assim, busco um refúgio psicológico na crença, no dogma, na tradição, num certo padrão de pensamento. E pode a mente que anda em busca da segurança, que deseja ver-se segura, não perturbada, pode essa mente encontrar a Realidade, Deus, ou que nome lhe deis? Não pode, naturalmente. A mente que deseja ver-se em segurança, encontrará o que está buscando, mas não o que é verdadeiro.
Assim sendo, pode a mente libertar-se desse desejo de segurança? E não há dúvida de que uma mente que busca a segurança, interiormente, criará invariavelmente a insegurança exterior, na estrutura social. O nacionalismo, por exemplo, é uma ideia a que a mente se apega, como meio de segurança psicológica. E esta devoção ao nacionalismo cria inevitavelmente a insegurança exterior, como está, exatamente, acontecendo no mundo.
Ora, se prestardes muita atenção, vereis que a mente está sempre a esforçar-se por achar algo permanente, aquela chamada paz, realidade, ou como quiserdes chamá-la. E existe coisa permanente? Entretanto, a mente cria valores que supõe permanentes, e neles crê; estabelece certos hábitos de pensamento que se tornam permanentes e, assim, em tais condições, a mente nunca está livre para inquirir, investigar. Acho importante compreender a significação disso, porque, afinal de contas, a liberdade está no começo e não no fim. Só a mente livre é capaz de investigar, e não aquela que está amarrada, que está senhoreada pela crença, pelo dogma, pela tradição. Entretanto, nossa educação está toda baseada nessas coisas, não só na escola, mas através de nossa carreira na vida, que também faz parte de nossa educação. Nunca investigamos se há possibilidade de termos, em primeiro lugar, liberdade, porquanto uma investigação desta natureza requer um mecanismo de pensamento que não comece com uma suposição, ou com a experiência acumulada, própria ou de outros.
Parece-me, por conseguinte, que para se encontrar a Realidade, o desconhecido — que não deve ser premeditado nem objeto de especulação — a mente tem de estar livre de tudo o que conhece, tem de morrer para todos os dias de seu passado. Só então a mente é "inocente" e capaz de descobrir o Real.
Tenho aqui algumas perguntas e desejaria saber porque se fazem perguntas. É com a intenção de receber respostas? Existe alguma resposta, ou apenas uma exploração, uma penetração do problema, sem se lhe buscar a solução? Se busco-a solução, minha mente fica então toda concentrada no descobrimento da solução, e não na compreensão do problema. Quase todos só nos interessamos pela solução, pela resposta, e por isso não damos inteira atenção ao problema. Por isso, o problema nunca é compreendido e fica, portanto, sem solução. O investigar do problema exige uma mente que não busca solução, uma mente capaz de investigar sem julgar ou condenar. Poderemos considerar alguma coisa sem estabelecermos comparação, julgamento, condenação? Procurai fazê-lo, e vereis quão extraordinariamente difícil o é; e isso se deve a que o mecanismo de nosso pensar é baseado na comparação, no julgamento, na condenação. Mas se somos capazes de investigar o problema, sem esperarmos nenhuma solução, então o problema se resolve por si mesmo, sem precisarmos procurar-lhe a solução.
Krishnamurti, Primeira Conferência em Madanapale, 12 de fevereiro de 1956
Da Solidão à Plenitude Humana