A liberdade do mecanismo formador de hábitos
[...] Psicologicamente, não pode haver nenhuma liberdade se não for compreendido inteiramente o mecanismo defensivo do pensamento. E a liberdade — que não é reação a alguma coisa, nem tampouco significa o oposto de não-liberdade — é essencial, porque só em liberdade podemos fazer descobrimentos. Só a mente livre pode perceber o verdadeiro.
A verdade não é uma coisa que tem continuidade e que pode ser mantida pela prática ou a disciplina, porém algo perceptível num clarão. Esse percebimento da verdade não ocorre por meio de nenhuma forma de pensar condicionado e, por conseguinte, é impossível ao pensamento imaginar, conceber ou formular o verdadeiro.
Para se compreender integralmente o que é verdadeiro, necessita-se de liberdade. Para a maioria de nós, a liberdade é apenas uma palavra, ou uma reação, ou uma ideia intelectual de que nos servimos como fuga à nossa escravidão, nosso sofrimento, nossa entediante rotina diária; mas isso de modo nenhum é liberdade. A liberdade não se obtém por meio de busca, pois não se pode procurar a liberdade — ela não é para ser achada. Só vem a liberdade quando compreendemos a totalidade do mecanismo da mente que cria suas próprias barreiras, suas próprias limitações, suas próprias projeções, provindas de um fundo condicionado e condicionante. Muito importa à mente religiosa compreender o que se encontra além da palavra, além do pensamento, além de toda experiência; e para compreender o que transcende qualquer experiência, para “ficar com isso”, vê-lo com profundeza, num clarão, a mente deve ser livre. Sobre tudo isso já falamos e vimos como a ideia, o conceito, o padrão, a opinião, o juízo, ou qualquer disciplina formulada, impede a liberdade de espírito. E essa liberdade traz sua própria disciplina — que não é a disciplina do conformismo, da repressão ou ajustamento, porém uma disciplina não produzida pelo pensamento, por um motivo.
Decerto, num mundo confuso onde há tanto conflito e sofrimento, urge compreender que a liberdade é o requisito primordial da mente humana — e não o conforto, não o passageiro momento de prazer ou a continuidade desse prazer: uma liberdade total, pois só desta pode surgir a felicidade. Porque a felicidade não é um fim em si; como a virtude, ela deriva da liberdade. A pessoa livre é virtuosa; mas o homem que apenas pratica a virtude pelo ajustar-se ao padrão social nunca saberá o que é liberdade e, por conseguinte, jamais será virtuoso.
[...] liberdade não é uma coisa para ser buscada; não resulta de pensamento ou de anseios emocionais, histéricos. A liberdade vem sem ser buscada, quando há plena atenção. A atenção total é a qualidade própria de uma mente que não tem limites, não tem fronteiras e, por conseguinte, é capaz de receber toda e qualquer impressão, de ver e ouvir todas as coisas. E isso é possível, não é algo sobremodo difícil. Só é difícil porque nos achamos senhoreados pelos hábitos...
A maioria de nós tem hábitos inúmeros. Temos hábitos e idiossincrasias, de ordem física, e ao mesmo tempo hábitos de pensamento. Cremos nisto e não cremos naquilo; somos patriotas, nacionalistas; pertencemos a um certo grupo ou partido e observamos tenazmente o seu especial padrão de pensamento. Todas essas coisas se tornam hábitos; e a mente gosta de viver mergulhada nos hábitos, porquanto os hábitos dão-nos certeza, sentimento de segurança, sentimento de não temermos. Uma vez firmada numa série de hábitos, a mente parece funcionar um pouco mais livremente, mas na realidade ela é irrefletida, desatenta.
[...] observai, como num espelho, a vossa própria mente, para verdes quanto está enredada em seus hábitos. Os hábitos, que dão o sentimento de segurança, só podem tornar a mente embotada; por mais sutis que eles sejam, e quer estejamos cientes deles, quer não, eles invariavelmente obscurecem a mente. Isso é um fato psicológico; quer gosteis, quer não, é isso que acontece.
Em parte devido a nossa educação escolar, em parte devido ao condicionamento que a sociedade psicologicamente nos impõe, e também em virtude de nossa própria indolência, a nossa mente funciona numa série de hábitos. Se não aprovamos determinado hábito de que estamos conscientes, lutamos para quebrá-lo, e quando quebramos um hábito formamos outro. Parece não haver momento em que estejamos livres do hábito. Se vos observardes, vereis quanto vos é difícil não vos enredardes no hábito.
[...] mediante conflito ou resistência podeis eliminar um certo hábito, mas isso não liberta vossa mente do mecanismo formador de hábitos; o mecanismo que os cria não deixa de existir. E eu estou falando, não como livrar-nos de determinado hábito, porém sobre o deixarmos de criar hábitos.
[...] O importante é dar-vos conta de todo esse mecanismo, sem resistir-lhe, sem rejeitá-lo, sem desejardes ficar livre dele — estando, apenas, inteirado de cada movimento inerente a esse hábito.
[...] quando se introduz o fator tempo, não há possibilidade de libertação do hábito. Ou de pronto quebramos um hábito, ou ele continua existente, embotando de maneira gradual a própria mente, criando-se com isso novos hábitos.
Observai vossos próprios hábitos e vossa atitude em relação a eles.
Temos hábitos de pensamento, hábitos sexuais — oh, uma infinidade de hábitos, que tanto podem ser conscientes como inconscientes; e é sobretudo difícil percebermos os hábitos inconscientes. Socialmente e na escola e no colégio, somos educados nesse elemento do tempo. Toda a nossa psicologia baseia-se no tempo...
Ora, é possível a mente libertar-se instantaneamente dessa ideia de “chegar gradualmente a uma parte”, de gradualmente transcender uma coisa, gradualmente tornar-nos livres? Para mim, a liberdade não é uma questão de tempo; não há nenhum amanhã, no qual ficaremos livres de um hábito ou adquiriremos uma certa virtude. E se não há nenhum amanhã, também não há medo. Há só um “viver completo” agora; o tempo deixou de existir completamente e, por conseguinte, não há formação de hábito. Com a palavra “agora” refiro-me ao presente imediato, e esse estado “imediato” não é uma reação ao passado nem um evitar do futuro. Há só o momento de total percepção, toda a nossa atenção está aqui, no agora. Ora, por certo, toda existência se acha no agora; quer experimenteis imensa alegria, quer intenso sofrer, seja o que for, tudo isso só acontece no presente imediato. Entretanto, por meio da memória, a mente acumula a experiência do passado e a projeta no futuro.
Conscientizai-vos de vossa própria mente; observai como é que ela opera, pois, assim, podereis ir muito longe.
Poderemos libertar-nos do passado? O passado, na realidade, é a essência do hábito, constituído de todos os conhecimentos, sofrimentos, insultos, das inumeráveis experiências que tivestes, não só individualmente, mas também racial e coletivamente. Precisais sair dessa estrutura do passado, psicologicamente, realmente, porque, do contrário, não há liberdade. Mas não podeis fazê-lo se existe, na vossa mente, a ideia da continuidade. Para a maioria de nós, a continuidade importa muito; mas, afinal de contas, a continuidade, nas relações, é simples hábito. É a continuidade do pensamento que sustenta as limitações da mente; e é possível destruirmos, “numa explosão”, essa ideia da continuidade e ficarmos livres do passado?
Se não estamos livres do pretérito, não há liberdade nenhuma, porque, assim, a mente nunca está nova, fresca, ilesa. Só a mente nova, “inocente”, é livre. A liberdade nada tem que ver com a idade da pessoa, nada tem que ver com a experiência; e quer-me parecer que a própria essência da liberdade reside na compreensão de todo o mecanismo do hábito, consciente e inconsciente. A questão não é de acabar com o hábito, porém, antes, de ver-lhe totalmente a estrutura. Deveis observar como se formam os hábitos e como, pela rejeição de um hábito ou pela resistência a ele, outro hábito se forma. O relevante é estardes totalmente apercebido do hábito; porque então, como vós mesmos vereis, já não há formação de hábitos. O resistir ao hábito, o combatê-lo, ou rejeitá-lo, só pode dar-lhe continuidade. Quando lutais contra um hábito, dais vida a ele e, também, o próprio batalhar contra ele se torna um novo hábito. Mas, se ficais simplesmente apercebido de toda a estrutura do hábito, sem resistência nenhuma, verificais então que estareis livre dele e que, nessa liberdade, ocorre uma coisa nova.
É só a mente embotada, sonolenta, que cria o hábito e a ele se apega. A pessoa atenta de momento em momento — atenta para o que ela própria diz, atenta para o movimento de suas mãos, de seus pensamentos, de seus sentimentos — deixa de formar hábitos. É muito importante compreender isso, porque, evidentemente, enquanto a mente está empenhada em quebrar um hábito e, com esse próprio “mecanismo” criando outro hábito, ela nunca poderá ser livre; e só a mente livre pode perceber algo além de si própria. Essa mente é religiosa. Quem se limita a frequentar a igreja, a recitar orações, a apegar-se a dogmas, ou a abandonar uma seita para ingressar noutra, não tem uma mentalidade religiosa, mas, simplesmente, entorpecida. Religiosa é a mente livre, e a mente livre acha-se num estado de constante “explosão”; e nesse estado de constante explosão há o percebimento daquela verdade que ultrapassa as palavras, o pensamento, e toda experiência.
Krishnamurti, Saanen, 31 de julho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito