Só é criativa a mente vazia, livre do conhecido
Para muita gente, a religião é provavelmente uma espécie de entretenimento. Os velhos recorrem à religião, e o mesmo fazem as pessoas algo neuróticas. Com a palavra "religião", refiro-me não só às igrejas organizadas, com toda a segurança interior que oferecem, mas também às variadas e extravagantes formas de crença, dogma, ritual a que aderem tantas pessoas. A religião, para a maioria das pessoas, não é coisa séria. Na Rússia, o governo está atualmente permitindo a religião organizada, porque, politicamente, ela não tem muita importância; não contém o germe da revolta, não é um centro revolucionário e, portanto, deixam-na existir.
E qual será a importância que tem a religião na vida de cada um de nós, aqui presentes? Por "religião" estou agora entendendo algo inteiramente diferente, algo tão importante, se não muito mais importante do que ganhar o próprio sustento. Para mim, religião é algo a que damos todo o nosso coração e mente e corpo — tudo o que temos. Não é uma espécie de passatempo, ou coisa a que recorremos quando já velhos, "com um pé na cova", porque não temos mais o que fazer; é algo que se torna "devastadoramente" importante, extremamente necessário, como verdadeiro roteiro de nosso viver, do despertar ao adormecer — para que cada pensamento, cada ato, cada movimento de nosso sentir seja observado, considerado, pesado. A religião, para mim, abarca a totalidade da vida. Não é coisa reservada aos especialistas, aos ricos ou aos pobres, à elite ou ao intelectual. E, como o pão, algo de que tendes necessidade. E não sei quantos de nós a levam tão a sério — o que não significa que se deva ser intolerante, fanático, inacessível, sectário, ou uma pessoa excepcional. A religião não exige conhecimento ou crença, porém, tão só, extraordinária inteligência e, também, o homem religioso necessita de liberdade, liberdade completa.
Embora falemos de liberdade, a maioria de nós não deseja ser livre. Não sei se já observastes este fato. No mundo moderno — em que a sociedade está altamente organizada, onde se observa progresso e mais progresso, onde a produção de utilidades se tornou tão vasta e tão fácil — o indivíduo se torna escravo das posses, das coisas, e nelas encontra sua segurança física e emocional. Por conseguinte, não desejamos realmente ser livres. Por "liberdade" entendo "liberdade total", e não liberdade numa certa direção; e penso que devemos exigi-la, com firmeza, de nós mesmos.
Liberdade é diferente de revolta. Toda revolta é contra alguma coisa; o indivíduo se revolta contra algo e é pró algo. Revolta é reação, mas a liberdade não o é. No estado de liberdade, não estais livre de alguma coisa. Quando estais livre de alguma coisa, estais, com efeito, em revolta contra essa coisa; portanto, não sois livre. Liberdade não significa "estar livre de alguma coisa"; a mente, em si própria, é livre. Este é um sentimento extraordinário: a mente ser livre em si própria, conhecer a liberdade por amor à própria liberdade.
Ora, se o indivíduo não é livre, não vejo como possa ser criador. Não estou empregando a palavra "criador" no estreito sentido de "homem que pinta quadros, escreve poesias ou inventa máquinas". Tais indivíduos, para mim, não são criadores, absolutamente. Poderão ter momentânea inspiração; mas, criação é coisa muito diferente. Só pode haver criação quando há liberdade total. Nesse estado de liberdade, há plenitude, e, então, o escrever uma poesia, pintar um quadro, ou esculpir uma pedra, tem sentido completamente diferente. Já não é mera expressão da personalidade, nem resultado de frustração, nem busca de compradores; é coisa toda diferente. Acho que devemos reclamar nosso direito de conhecer esta liberdade, não apenas em nós mesmos, mas também no exterior; disto vou tratar por alguns instantes nesta manhã.
Em primeiro lugar, acho que devemos diferençar entre liberdade, por um lado, e revolta ou revolução, por outro lado. Revolta e revolução são, essencialmente, reação. Há a revolta da extrema-esquerda contra o capitalismo, e a revolta contra o predomínio da igreja. Há, também, revolta contra o Estado policial, contra o poder da tirania organizada — mas, hoje em dia tal revolta não compensa, pois, muito calmamente, "eles" vos liquidam, se desembaraçam de vós.
A liberdade, para mim, é coisa inteiramente diferente. Liberdade não é reação, porém, antes, o estado mental que se torna existente quando compreendemos a reação. Reação é "resposta a desafio", é prazer, cólera, medo, dor psicológica; e, na compreensão dessa tão complexa estrutura de reação, encontraremos a liberdade. Vereis, então, que liberdade não é estar livre da cólera, da autoridade, etc. Ela é um estado per se, que devemos experimentar por causa dele próprio e não por estarmos contra alguma coisa.
Em geral, estamos interessados em nossa própria segurança. Precisamos de companhia e esperamos achar a felicidade numa dada relação; queremos ser famosos, criar, expressar-nos, expandir-nos, realizar-nos; queremos poder, posição, prestígio. Em grau maior ou menor, é isso, com efeito, o que interessa à maioria de nós; e liberdade, Deus, verdade, amor, se tornam algo que se procurará depois. Assim, como disse, nossa religião é uma coisa superficial, uma espécie de entretenimento sem muita importância em nossa vida. Satisfazemo-nos com trivialidades e, por esta razão, não há o alertamento, o percebimento necessário para se compreender esse complexo mecanismo que se chama viver. Nossa existência é luta constante, esforço vão, interminável — com que fim? Ela é uma gaiola em que estamos aprisionados, gaiola que construímos com as nossas reações, nossos temores, desesperos, ansiedades. Todo o nosso pensar é uma reação; deveis lembrar-vos de que examinamos esta questão, há dias, quando foi feita a pergunta: "Qual a verdadeira função do pensamento?" Examinamo-la, muito atentamente, e descobrimos que todo o nosso pensar é reação, "resposta" da memória. Toda a estrutura de nossa consciência, de nosso pensamento, é o resíduo, o reservatório de nossas reações. O pensamento, evidentemente, nunca poderá produzir liberdade, porquanto a liberdade não resulta de reação. Liberdade não é rejeição das coisas que nos causam dor e, tampouco, afastamento das coisas que nos dão prazer e das quais nos tornamos escravos.
Por favor, como disse outro dia, não aceiteis nada do que está dizendo este orador. Olhai-o, sem aceitá-lo, nem rejeitá-lo, mas procurando perceber o fato, individualmente, pela observação de vós mesmo.
A consciência constitui toda a esfera de nosso pensamento, todo o campo da ideia e da ideação. O pensamento organizado se torna a ideia, da qual resulta a ação; e a consciência se constitui de muitas camadas de pensamento, ocultas e patentes, conscientes e inconscientes. É a esfera do conhecido, da tradição, da memória do que foi. É o que temos aprendido, o passado em relação ao presente. O passado transmitido através de séculos, o passado da raça, da nação, da comunidade, da família; os símbolos, as palavras, as experiências, o choque dos desejos contraditórios; as inumeráveis lutas, prazeres e dores; as coisas que aprendemos de nossos antepassados e as modernas tecnologias que se lhes acrescentaram — tudo isso constitui a consciência, é o campo do pensamento, o campo do conhecido, e nós vivemos na superfície desse campo. Somos exercitados desde a infância para adquirir conhecimentos, competir; aprendemos uma técnica, especializamo-nos numa certa direção, a fim de termos um emprego e ganhar a vida. Nisso consiste toda a nossa educação, de modo que continuamos a viver na superfície; e, abaixo da superfície, está o passado imenso, o tempo incalculável. Tudo isso constitui o conhecido. Embora não estejamos apercebidos do inconsciente, ele está, contudo, no campo do conhecido.
Tende a bondade de ir seguindo isto, observando a vós mesmos, observando vossa própria consciência. Quanto mais sensíveis, quanto mais vigilantes fordes, tanto melhor percebereis o conflito existente entre o consciente e o inconsciente. Se esse conflito exige ação e não encontrais um modo de agir, tornais-vos neuróticos ou ides acabar num hospício; e, assim sendo, tendes inúmeros psicólogos, analistas, que procuram lançar uma ponte sobre esse abismo, e resolver o conflito.
O inconsciente, embora esta palavra sugira algo oculto, de que não temos percebimento, faz também parte do conhecido; ele é o passado. Podeis desconhecer o inteiro conteúdo do inconsciente, podeis não o ter examinado, observado, mas provavelmente tendes sonhos, comunicações procedentes daquela vasta região subterrânea da mente. Ela existe, e é o conhecido, porque é o passado. Nela nada existe de novo; e devemos compreender por nós mesmos o que se encerra neste estado que não é novo, já que "inocência" é independência do conhecido.
Este é um dos problemas mais importantes da vida moderna, porque somos educados, exercitados, condicionados para permanecer na esfera do conhecido, na qual existe ansiedade, desespero, sofrimento, confusão, aflição. Só os "inocentes" podem ser criadores, são capazes de criar algo novo, e não apenas produzir mecanicamente um quadro, um poema, ou o que quer que seja. O inconsciente faz parte do "conhecido", e a maioria de nós permanece na superfície do "conhecido", porque é o roteiro que seguimos na vida. Dirigimo-nos todos os dias ao escritório, à sua rotina, seu tédio; tememos perder nosso emprego; sujeitamo-nos às exigências, pressões, tensões da vida moderna; somos solicitados por apetites sexuais e outros mais. Tal é o nível em que vivemos. Desse nível queremos achar algo muito mais profundo, porque não estamos satisfeitos com ele, e, assim, nos voltamos para a música, a pintura, a arte, os deuses, as inumeráveis religiões. Quando tudo isso falha, passamos a adorar o Estado, como se fosse a suprema maravilha, ou a praticar a vida de comunidade — sabeis com quantas falácias gostamos de entreter-nos, quantas novidades inventamos, inclusive foguetes para irmos à Lua. E, quando nos vemos insatisfeitos com tudo isso, voltamo-nos para dentro; ou, se somos muito intelectuais, analisamos, desmantelamos tudo, mas temos nosso Jesus, nosso Cristo particular. Tal é nossa vida.
Ora, a única liberdade verdadeira é a que consiste em estar livre do "conhecido". Acompanhai-me por um instante. É estar livre do passado. O conhecido tem seu lugar próprio, é claro. Preciso conhecer certas coisas, para que possa "funcionar" na vida de cada dia. Se eu não soubesse onde resido, perder-me-ia. E há o saber acumulado das ciências, da medicina e de várias tecnologias, o qual se vai acrescentando constantemente. Tudo isso está contido no campo do "conhecido", e tem seu lugar próprio. Mas o "conhecido” é sempre mecânico. Toda experiência que tivestes, seja do passado remoto, seja apenas de ontem, está no campo do "conhecido", e dai, desse fundo, reconheceis toda experiência ulterior. No campo do conhecido, há sempre apego, com os concomitantes temores e desesperos, e a mente aprisionada nesse campo, por mais extenso e amplo que seja, não é livre. Poderá escrever livros muito engenhosos, poderá saber como se vai à Lua, inventar máquinas as mais complicadas e maravilhosas — se tivestes ocasião de ver algumas dessas máquinas, sabereis que são realmente maravilhosas — mas essa mente está ainda aprisionada na esfera do conhecido.
A consciência é produto do tempo; o pensamento está alicerçado no tempo, e o que o pensamento produz está sempre na sujeição do tempo. Assim, o homem que deseja livrar-se do sofrimento, precisará livrar-se do "conhecido" — o que significa que precisará compreender toda essa estrutura da consciência. E pode-se compreendê-la por meio da análise, que é também um "mecanismo" de pensamento? Que significa "compreender uma coisa"? Qual o estado da mente que compreende? Estou falando sobre compreender, e não sobre aquilo que se compreende. Entendeis o que quero dizer? Estou investigando o estado da mente que diz "compreendo". A compreensão é resultado de pensamento e dedução? Examinais uma coisa crítica, razoável, sã e logicamente e dizeis depois "compreendo-a"? Ou a compreensão é coisa de todo diferente?
Outro dia, quando aquele senhor perguntou "Qual a verdadeira função do pensamento?" — deveis lembrar-vos de que falamos sobre a "resposta" da mente a "desafio". Quando a pergunta nos é familiar, a resposta é imediata. Quando um pouco mais complicada, ou obscura, a resposta leva tempo, pois nesta demora estais a pensar, a rebuscar na memória, para depois responderdes, tal como os computadores, por associação. Uma pergunta mais complicada requer intervalo maior ainda. Ora, estas três "respostas", que naquele dia chamamos (a), (b) e (c), constituem, todas, partes do "mecanismo" do pensamento, e se acham no campo do "conhecido". Dentro desse campo, pode-se produzir, pode-se inventar, pode-se pintar quadros, fazer as coisas mais extraordinárias, até mesmo ir à Lua; nada disso, porém, é criação. Essa perene busca de grandes feitos e de expressão pessoal é de todo em todo pueril, pelo menos para mim.
Ora, estar livre de tudo isso é estar livre do "conhecido"; é o estado da mente que diz: "Não sei" — e não está procurando resposta. Essa mente se acha, toda ela, num estado, de "não-procura", de "não-expectativa"; e só nesse estado pode-se dizer "compreendo". É o único estado em que a mente é livre, e desse estado podeis olhar as coisas conhecidas — mas não vice-versa. Do conhecido não tendes possibilidade de ver o desconhecido; mas, uma vez compreendido o estado da mente que é livre, ou seja a mente que diz "não sei" e permanece "não sabendo" e é, por conseguinte, "inocente" — então, desse estado, podeis "funcionar", ser cidadão, homem casado, etc. Então, o que fazeis tem cabimento, tem significação na vida. Mas, nós permanecemos no campo do conhecido, com todos os seus conflitos, lutas, disputas, agonias, e, desse campo, queremos encontrar o "desconhecido". Por conseguinte, não estamos verdadeiramente em busca da liberdade. O que queremos é a continuação, o prolongamento da mesma velharia: do conhecido.
Assim, a meu ver, o importante é compreendermos por nós mesmos esse estado em que a mente está livre do conhecido, porque só então ela pode descobrir, por si mesma, se há ou não uma Imensidade. O ficar meramente a funcionar no campo do conhecido — quer esse funcionamento se verifique à esquerda, à direita, ou no centro — é materialismo grosseiro, ou como preferirdes chamá-lo. Aí, não há solução para nada, porque aí só há desdita, luta, competição sem fim, a busca de uma segurança nunca encontrável. E isso o que interessa à maioria dos jovens, não? Querem, em primeiro lugar, segurança para si próprios, sua família, segurança em seus empregos, e mais tarde, talvez, se lhes sobrar tempo e tiverem inclinação para isso, irão procurar outra coisa mais. Quando a crise se torna demasiado intensa, tratais de procurar uma solução feliz, conveniente, e com ela ficais satisfeito. Não me refiro, absolutamente, a esta espécie de busca. Refiro-me a coisa toda diferente. Refiro-me à mente que compreendeu por inteiro a função do "conhecido"; e a mente não tem possibilidade de compreender esse campo tão extremamente complexo, se não compreender a si própria, a totalidade de sua consciência.
Ora, ninguém pode compreender a si próprio mediante auto-exame, introspecção, análise. Isto é bastante claro. Não há necessidade de me estender a este respeito, há? A mente, de modo nenhum, pode compreender a si própria por meio de análise, porque, na análise, há separação entre o analista e a coisa analisada, e, por conseguinte, conflito crescente e contínuo. Toda análise, todo esforço de sondagem, indagação, pesquisa, parte do centro, já condicionado, carregado das acumulações do tempo, que é o conhecido. Por mais que tente penetrar o inconsciente, o analista faz sempre parte do "conhecido". Uma vez tenhais apreendido a verdade desta asserção, então — apesar de todos os analistas e psicólogos — vereis o total conteúdo do inconsciente e o compreendereis num relance de olhos. A compreensão só ocorre num súbito clarão, e não no decurso do tempo, pela acumulação de conhecimentos livrescos, etc. Ou vedes uma coisa imediatamente, ou absolutamente não a vedes. Os sonhos poderão dar indicações, símbolos, sugestões a respeito de algo, mas esse algo ainda é parte do "conhecido"; e a mente deve esvaziar-se, de todo, do "conhecido". Deve estar livre desse mecanismo que chamamos "pensar".
Se estais ouvindo pela primeira vez esta asserção de que deveis ficar livres do pensamento, talvez digais: "Pobre homem, perdeu o juízo!" Mas, se escutastes realmente, não só desta vez, mas em todos os anos em que — alguns dentre vós — vindes lendo a respeito desta matéria, sabereis que o que se está dizendo é de extraordinária vitalidade, contém uma penetrante verdade. Só a mente que se "esvaziou" do conhecido, é criadora. Esse estado é ação. O que a mente cria então não interessa a si própria. Esse estado livre do conhecido, é o estado em que a mente se acha em criação. Como pode a mente que se acha em criação estar interessada em si própria? Por conseguinte, para poderdes compreender aquele estado mental, deveis conhecer a vós mesmo, observar o mecanismo de vosso próprio pensar — observá-lo, e não alterá-lo, modificá-lo; observá-lo, simplesmente, assim como vos vedes num espelho. Quando há liberdade, pode-se então fazer uso do conhecimento, sem destruir a humanidade. Mas, quando não há liberdade e se faz uso do conhecimento, cria-se sofrimento para todos, não importa que isso aconteça na Rússia, na América, na China ou onde quer que seja. Chamo séria a mente que, apercebida do conflito do conhecido, nele (no conhecido) não se acha enredada, não está tentando modificá-lo, melhorá-lo; porque, por esse caminho, nunca terá fim o sofrimento e a aflição.
Krishnamurti, Saanen, 11 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho