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terça-feira, 10 de abril de 2018

O sofrimento e a mente religiosa


O sofrimento e a mente religiosa

Esta é a última palestra. Discorrerei sobre o sofrimento e a mente religiosa. Há sofrimento em toda a parte, exterior e interiormente. Vemo-lo tanto nas altas como nas baixas camadas sociais. Ele existe há milhares de anos, diversas teorias já se conceberam a seu respeito e as religiões dele já falaram muito; entretanto, ele continua. É possível extinguir o penar, ficar realmente, interiormente, de todo livre dele? Não existe só o sofrimento da velhice e da morte, mas também o sofrimento do insucesso, da ansiedade, da culpa, do medo, o sofrimento causado pela contínua brutalidade, pela crueldade do homem para com o homem. Pode-se extirpar a causa desse sofrimento — não em outrem, mas em nós mesmos? Ora, por certo, se desejamos efetuar qualquer transformação, ela deve começar em nós mesmos. Afinal, não há separação entre o indivíduo e a sociedade. Nós somos a sociedade, o “coletivo”. Como franceses, russos, ingleses, hindus, somos o resultado de reações coletivas, desafios e influências coletivas. E no transformar esse centro individual, talvez se possa alterar a consciência coletiva.

A meu ver, a presente crise não é tanto uma crise do mundo exterior, mas uma crise existente na consciência, no pensamento, em nosso ser inteiro. E acho que só a mente religiosa pode resolver esse sofrimento, pode dissipar inteira e completamente todo o mecanismo do pensamento e o resultado que o pensamento produz, na forma de sofrimento, medo, ansiedade e culpa.

Já tentamos tantas maneiras de nos livrarmos do sofrimento: frequentar a igreja, refugiar-nos em crenças e dogmas, aderir a várias atividades sociais e políticas — e inumeráveis outras maneiras de fugir a essa perpétua corrosão do medo e do sofrimento. Só a mente religiosa pode resolver o problema. E por “mente religiosa” entendo algo completamente diferente da mente, do intelecto que crê na religião. Não há religião onde há crença. Não há religião se existe dogma, perpétua repetição de palavras, palavras, palavras, sejam em sânscrito, sejam em latim, sejam noutra língua qualquer. “Ir à missa” é uma forma de entretenimento como outra qualquer; não é religião. Religião não é propaganda. Quer vosso intelecto seja condicionado pela “gente da igreja”, quer pelos comunistas, é a mesma coisa. Religião é algo inteiramente diferente de crença e não crença; e desejo penetrar bem na questão relativa à mente religiosa. Fique, portanto, bem claro para nós que religião não é a fé que professais: isso é muito infantil. E onde não há madureza, não pode deixar de haver sofrimento. Requer-se muita madureza para se descobrir o que é uma mente verdadeiramente religiosa. Esta não é, por certo, a mente que crê, nem aquela que segue qualquer espécie de autoridade, seja a do maior dos instrutores, seja a do chefe de determinada seita. Assim, evidentemente, a mente religiosa está livre de todo sectarismo e, por conseguinte, de toda autoridade.

Posso digressionar agora um pouco, para dizer umas breves palavras a respeito de outra coisa? Alguns de vós vindes escutando estas palestras com bastante assiduidade, nestas últimas semanas. E se vos fordes daqui com uma grande coleção de conclusões, com um novo conjunto de ideias e frases, ir-vos-eis de mão vazias, ou com as mãos cheias de cinzas. Conclusões e ideias, de qualquer espécie que sejam, não resolvem o sofrimento. Assim, espero sinceramente que não fiqueis apegados às palavras mas viajeis junto comigo, a fim de podermos ultrapassar as palavras e descobrir, por nós mesmos, o que é real e, daí, empreender viagem para mais longe. O descobrimento do que existe em nós mesmos, como fato e realidade, faz nascer uma reação e ação de natureza completamente diferente. Espero, pois, não leveis convosco as cinzas das palavras, da memória.

Como dizia, a mente religiosa está livre de toda autoridade. E é muito difícil estar livre da autoridade — não só da autoridade imposta por outrem, mas também da autoridade da experiência que acumulamos, que é do passado, que é tradição. E a mente religiosa não tem crenças, não tem dogmas; ela se move de fato para fato e é, portanto, uma mente científica. Mas a mente científica não é a mente religiosa. A mente religiosa inclui a mente científica; mas a mente treinada no saber científico não é mente religiosa.

A mente religiosa se interessa pela totalidade — não por uma determinada função mas, sim, pelo total funcionamento da existência humana. O intelecto se interessa por determinada função; especializa-se. Ele funciona especializadamente, como cientista, médico, engenheiro, músico, artista, escritor. São estas técnicas especializadas, limitadas, que criam a divisão, não só exterior, mas também interiormente. O cientista, provavelmente, é considerado como a pessoa mais importante de que necessita a sociedade hoje em dia, tal como o é o médico. A função, portanto, se torna de suma importância; e a ela está ligada a posição, e posição é prestígio. Assim, onde há especialização tem de haver contradição e uma limitação, e esta é a função do intelecto.

Cada um de nós, por certo, funciona dentro de uma estreita rotina de reações autoprotetórias. É aí que tem nascença o “eu”, o “ego” — no intelecto, com suas defesas, agressões, ambições, frustrações e sofrimentos.

Há, pois, uma diferença entre o intelecto e a mente. O intelecto é “separativo”, “funcional”, não pode ver o todo; ele funciona dentro de um padrão. E a mente é a totalidade que pode ver o todo. O intelecto está contido na mente; mas o intelecto não contém a mente. E por mais que o pensamento se purifique, se requinte e se controle, ele de modo nenhum pode conceber, formular ou compreender o todo. É a capacidade da mente que percebe o todo, e não o intelecto.

Mas nós desenvolvemos o intelecto num grau espantoso. Toda nossa educação se restringe ao cultivo do intelecto, porque há vantagem no cultivo de uma técnica, na aquisição de conhecimento. A capacidade de perceber o todo, a totalidade da existência — esta percepção não tem o móvel da vantagem; por esse motivo a desprezamos. Para nós, função importa mais que a compreensão. E só há compreensão quando há o percebimento do todo. Ainda que o intelecto seja capaz de discernir a razão, o efeito, a causa das coisas, o sofrimento não pode ser resolvido pelo pensamento. É só quando a mente percebe a causa, o efeito, o mecanismo total, e passa além, é só então que tem fim o sofrimento.

Para a maioria de nós, a função se tomou muito importante porque a ela está ligada a posição, a situação, a classe. E quando a posição se torna existente em virtude da função, há contradição e conflito. Como respeitamos o cientista e desprezamos o cozinheiro! Como veneramos o Primeiro Ministro, o General, e desconsideramos o soldado! Vemos, pois, que há contradição quando a posição está aliada à função; há distinção de classes, lutas de classes. Uma sociedade poderá procurar extirpar as classes, mas enquanto a posição acompanhar a função, tem de haver classes. E é isso o que todos desejamos. Todos desejamos posição, que significa poder.

Como sabeis, o poder é uma coisa extraordinária. Todos o ambicionam: o eremita, o general, o cientista, a dona-de-casa, o marido. Todos desejamos o poder: o poder que o dinheiro confere, poder para dominar, o poder do saber, o poder da capacidade. Ele nos dá posição, prestígio, e é isso que desejamos. E o poder é coisa má, seja o poder do ditador, seja o poder da esposa sobre o marido ou do marido sobre a esposa. É mau, porque força outrem a submeter-se, a ajustar-se; e nesse processo não há liberdade. Mas nós o ambicionamos, muito sutilmente ou muito cruelmente; e é por isso que buscamos o saber. O conhecimento é importantíssimo para a maioria de nós, e temos na mais alta consideração o homem ilustrado, com suas sutilezas intelectuais, porque ao saber se associa o poder.

Tende a bondade de escutar, não apenas a mim, mas à vossa mente, vosso intelecto e coração. Observai-os, para verdes com que avidez a maioria de nós deseja esse poder. E, quando há busca de poder, não há aprender. Só a mente “inocente” pode aprender; só a mente jovem, fresca, se deleita em aprender, e não a mente, o intelecto pejado de saber, de experiência. A mente religiosa, pois, está sempre aprendendo, e não há fim ao aprender. Aprender não é acumulação de conhecimentos. No conservar e aumentar o saber, deixamos de aprender. Segui isto até o fim.

Quando se observam todas essas coisas, pode-se ficar apercebido de um extraordinário sentimento de isolamento, solidão. Em geral, temos experimentado ocasionalmente esse sentimento de estar completamente só, fechado, sem relação com nenhuma coisa ou pessoa. E ao se perceber isso, sente-se medo; quando existe medo, apresenta-se imediatamente o impulso, a ânsia de fugir-lhe. Segui tudo isso interiormente, porque não estou aqui pronunciando uma conferência; estamos, realmente, jornadeando juntos. E se puderdes fazer essa viagem, saireis daqui com uma mente bem diversa, um diferente intelecto.

Temos de passar por esse sentimento de solidão, mas não o podeis fazer se tendes medo. Essa solidão é, em verdade, criada pela mente, com suas reações autoprotetórias, suas atividades egocêntricas. Se observardes vosso próprio intelecto, vereis como vos estais isolando em tudo o que fazeis e pensais. Tudo isso que se relaciona com “meu nome, minha família, minha posição, minhas qualidades, minhas aptidões, minha propriedade, meu trabalho” — vos está isolando. Assim, tendes a solidão, e não a podeis evitar. Vós tendes de passar por ela de maneira tão real como passais por uma porta. E para passardes por ela, tendes de “viver com ela”. E “viver com a solidão”, “passar pela solidão”, significa alcançar uma coisa muito superior, um estado muito mais profundo, que é o “estar só” — completamente só, sem conhecimento. Com isso não quero dizer que nos privemos do conhecimento mecânico superficial, necessário à existência diária; o intelecto não precisa ser completamente drenado, mas o que quero dizer é que o conhecimento que adquirimos e armazenamos não deve ser usado para nossa própria expansão e segurança psicológica. Com a palavra “solidão” me refiro a um estado não atingível por nenhuma espécie de influência. Já não é um estado de isolamento, porque o isolamento foi compreendido; compreendeu-se todo o processo mecânico do pensar, da experiência, do desafio e reação.

Não sei se já refletistes alguma vez sobre este problema do desafio e reação. O intelecto está sempre reagindo a toda espécie de desafio, consciente ou inconsciente. Toda influência se imprime no intelecto, e o intelecto reage. Tende a bondade de seguir isto, porque, se penetrardes mais profundamente, vereis que não há mais desafio nem reação — mas isso não significa que a mente se acha adormecida. Pelo contrário, está completamente desperta, tão desperta que já não necessita de nenhum desafio e nem há necessidade de nenhuma reação. Esse estado, em que não há na mente desafio ou reação, porque ela compreendeu todo o mecanismo — esse estado é “solidão”. Assim, a mente religiosa compreende tudo isso, passa por tudo isso, não através do tempo, mas pelo imediato percebimento.

O tempo traz compreensão? Tereis compreensão amanhã? Ou só há compreensão no presente ativo, agora? Compreensão é ver uma dada coisa totalmente, imediatamente. Mas essa compreensão é impedida pela avaliação, sob qualquer, forma. Todo verbalizar, condenar, justificar, etc., impede o percebimento. Dizeis: “Precisa-se de tempo para compreender. Preciso de muitos dias para isso”. E durante “estes muitos dias” o problema vai lançando raízes mais profundas na mente, e se torna muito mais difícil erradicado, seja qual por esse problema. A compreensão, pois, está no presente imediato e não em prazos de tempo. Quando percebo uma coisa com toda a clareza, imediatamente, há compreensão. O “imediato” é que importa, e não o adiamento. Se bem percebo o fato de que sou colérico, ciumento, ambicioso, etc., se o percebo sem emitir opinião, avaliação, ou juízo, então o próprio fato começa a operar imediatamente.

Assim, a qualidade da “solidão” é o estado próprio de uma mente de todo desperta. Ela não está pensando em termos de tempo. E isso é verdadeiramente extraordinário, como vereis se o investigardes. A mente religiosa, pois, não é uma mente “evolucionária”; porque à Realidade está fora do tempo. Importa realmente compreender isso, se chegastes até aí em vossa viagem de descobrimento.

Notai que o tempo cronológico e o tempo psicológico são duas coisas diferentes. Nós estamos falando sobre o tempo psicológico, a exigência interior de mais dias, mais tempo para realizar algo — e isso sugere o ideal, o herói, o intervalo entre o que sois e o que deveríeis ser. Dizeis que para transpor esse intervalo, lançar uma ponte sobre ele, necessita-se de tempo; mas tal atitude é uma forma de indolência, porque podereis ver essa coisa imediatamente, se lhe derdes toda a vossa atenção.

À mente religiosa, portanto, não interessa o progresso, o tempo; ela se acha num estado de constante atividade, mas não no sentido de “vir a ser” ou “ser”. Podeis verificar isso agora, embora provavelmente não o desejeis fazer. Porque, se o fizerdes, vereis que a mente religiosa é destrutiva; pois sem destruição não há criação. Há destruição, quando a totalidade da mente aplicou sua atenção ao que é. O perceber o falso como falso, percebê-lo completamente, é a destruição do falso. Não é a ação destrutiva dos comunistas, dos capitalistas — nenhuma dessas infantilidades. A mente religiosa é destrutiva e, por ser destrutiva, é criadora. Criação é destruição.

E não há criação quando não há amor. Para nós, o amor é uma coisa estranha. Vós dividistes o amor em paixão, concupiscência, amor carnal e amor divino, amor da família, amor da pátria, e continuais por aí além a dividi-lo e tomar a dividir. E na divisão, há contradição, conflito e sofrimento.

O amor, para a maioria de nós, é paixão, concupiscência; e neste próprio mecanismo de identificação com outro há contradição, conflito, e o começo do sofrimento. E, para nós, o amor se extingue. O fumo (criado por esse processo) — o ciúme, o ódio, a inveja, a avidez — destrói a chama. Mas onde está o amor, aí está a beleza e a paixão. Deveis ter paixão, mas não traduzais prontamente esta palavra em “paixão sexual”. Por “paixão” entendo a “paixão da intensidade”, essa energia que de pronto percebe as coisas, claramente, ardentemente. Sem paixão, não há austeridade. A austeridade não é mera renúncia, nem o possuir restrito, ou autocontrole, pois tudo isso é sem importância, insignificante. A austeridade vem com o desprendimento, e no desprendimento, há paixão e, por conseguinte, beleza. Não a beleza criada pelo homem; não a beleza artística, embora eu não queira dizer que aí não haja beleza. Mas refiro-me a uma beleza que transcende o pensamento e o sentimento. E esta só pode surgir quando há alta sensibilidade intelectual, bem como corpórea e mental. E não pode haver sensibilidade dessa natureza e qualidade quando não há completo desprendimento, quando o intelecto não se está abandonando inteiramente à totalidade daquilo que a mente percebe. Porque só com esse abandono há paixão.

A mente religiosa, pois, é a mente destrutiva. E é a mente religiosa que é mente criadora, porque o que a interessa é a totalidade da existência. O seu criar não é como a ação criadora do artista, porque a este só interessa um certo segmento da existência e ele procura expressar o que aí sente, assim como o homem mundano procura expressar-se nas atividades de seus negócios — embora o artista se considere superior a qualquer outro. A criação, pois, se verifica quando há compreensão da totalidade da vida, e não de uma única parte dela.

Agora, se o intelecto alcançou este ponto e compreendeu todo o mecanismo da existência, descartando-se de todos os deuses que o homem fabricou, de seus salvadores, seus símbolos, seu céu, seu inferno, então, como há completa solidão, poder-se-á empreender uma jornada de todo diferente. Mas é necessário chegar até aí, antes de se poder negar ou afirmar a existência de Deus. Daí por diante, há o verdadeiro descobrimento, porque o intelecto, a mente destruiu completamente tudo o que conhecia. Só então é possível penetrar no “desconhecido”; só então se apresenta o Incognoscível. Ele não é o Deus das igrejas, dos templos, das mesquitas; não é o Deus de vossos temores e crenças. Existe uma realidade que só pode ser encontrada na compreensão total do mecanismo integral da existência, e não de apenas uma parte dela.

Então a mente, como vereis, se torna sobremodo quieta e tranquila, e o intelecto também. Não sei se já alguma vez notastes o vosso intelecto em funcionamento, se vosso intelecto já alguma vez percebeu a si mesmo em ação! Se estivestes assim atento, sem escolha, negativamente, deveis ver que o intelecto está perenemente “tagarelando”, “falando sozinho” ou sobre alguma coisa, acumulando e armazenando conhecimentos. Está em ação a todas as horas, conscientemente, nos níveis superficiais, e também profundamente, em sonhos, sugestões, comunicações de ideias, etc. Ele está sempre em movimento, mudando, atuando; jamais tranquilo. E é necessário que a mente, o intelecto se mantenha sereno, quieto, sem nenhuma contradição, nenhum conflito. Do contrário, é inevitável a “projeção” da ilusão. Mas, quando a mente e o intelecto estão completamente tranquilos, sem movimento algum — após terem-se apagado todas as formas de visão, influência e ilusão — então, nessa tranquilidade, a totalidade irá mais longe, em sua jornada, para receber aquilo que não é mensurável pelo tempo, o Indenominável, o Eterno, o Imperecível.

Krishnamurti, Paris, 24 de setembro de 1961, O Passo Decisivo

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Para ver o real, o pensar e a reação devem cessar

Para ver o real, o pensar e a reação devem cessar

[...] Ora, quando escutamos — e isso é uma verdadeira arte — é necessária uma certa tranquilidade do intelecto. Como acontece com a maioria de nós, o intelecto está incessantemente ativo, sempre a reagir ao desafio de uma palavra, ideia ou imagem; e esse constante mecanismo de reação e desafio não produz compreensão. O que produz compreensão é estar com o intelecto muito tranquilo. O intelecto, afinal, é o instrumento que pensa, que reage; é o reservatório da memória, resultado do tempo e da experiência; e a compreensão é impossível se esse instrumento está sempre agitado, reagindo, comparando o que se diz com o que antes acumulou. Escutar, se posso dizê-lo, não é mecanismo de concordar, de condenar, interpretar, mas, sim, de olhar cada fato totalmente, globalmente. Para isso, o intelecto deve estar quieto, porém muito vivo, capaz de seguir (o que se diz) correta e racionalmente, não sentimental ou emocionalmente. Só então é possível considerar os problemas da existência humana como um mecanismo total e, não, fragmentariamente.

Como quase todos sabemos, os políticos de todo o mundo, na atualidade, são infelizmente os senhores de nossos destinos. Nossa própria vida, talvez, depende de uns poucos políticos — franceses, ingleses, russos, americanos ou hindus; e isto é muito triste. Mas é um fato. E ao político só interessam as realidades imediatas — seu país, sua posição, seu programa de ação, seus ideais nacionalistas. E, por conseguinte, existem os problemas imediatos da guerra, do conflito entre o Oriente e o Ocidente, da luta do comunismo contra o capitalismo, da oposição do socialismo a qualquer outra forma de autocracia; e, assim, o problema imediato é um problema de guerra e de paz, e de como manejarem as nossas vidas de modo que não sejamos esmagados por esse descomunal processo histórico.

Mas parece-me que seria muito lamentável nos preocuparmos unicamente com a realidade imediata — a posição da França na Argélia, o que está para suceder em Berlim, se irá haver guerra e como sobreviveremos a ela. São estes os problemas que nos estão sendo impostos pela imprensa e pela propaganda; mas acho muito mais importante considerarmos o que irá suceder ao intelecto humano, à mente humana. Se cuidamos unicamente dos acontecimentos atuais e não do desenvolvimento total da mente e do intelecto humanos, nossos problemas só haverão de crescer e multiplicar-se.

Pode-se ver — não achais? — que nossa mente, nosso intelecto se tornou mecânico. Somos influenciados em todos os sentidos. Tudo o que lemos deixa-nos sua impressão e toda propaganda sua marca; o pensamento é sempre convencional e, assim, o intelecto e a mente se tornaram mecânicos, tal qual uma máquina. Exercemos mecanicamente nossas ocupações, mecânicas são nossas mútuas relações, e nossos valores meramente tradicionais. Os computadores eletrônicos são muito semelhantes à mente humana, só que nós somos um pouco mais engenhosos — pois somos seus criadores; mas eles funcionam exatamente como nós funcionamos, por meio de reação, repetição, memória. E parece que só desejamos saber como fazer esse mecanismo radicado no hábito e na tradição funcionar mais suavemente, sem perturbações; e isso, talvez, virá a ser a extinção da vida humana. Tudo isso implica — não achais? — não, liberdade, porém busca de segurança. Os ricos exigem segurança; e os pobres da Ásia, que mal conseguem uma refeição diária, esses também desejam segurança. E a reação da mente humana, diante de tanta desdita, é puramente mecânica, “habitual”, indiferente. Por conseguinte, o problema urgente é este: Como libertar o intelecto e a mente? Porque, se não há liberdade, não pode haver ação criadora. Temos invenções mecânicas, viagens à Lua, descobrimento de novos meios de locomoção, etc.; mas isso não é criação, é invenção. Só há criação quando há liberdade. A liberdade não é uma simples palavra; a palavra é bem diferente do estado real. Tampouco a liberdade não pode ser convertida em ideal, porque todo ideal não passa de simples adiamento. Assim, o que desejo examinar durante estas reuniões é se há possibilidade de libertar a mente e o intelecto. Dizer apenas que é ou que não é possível, é ocioso; mas o que podemos fazer é descobrir, nós mesmos, diretamente, pelo experimentar, pelo autoconhecimento, pela investigação, pela busca intensa. E isso exige capacidade de raciocinar, de sentir, para quebrarmos a tradição e destroçarmos todas as muralhas que erguemos para nossa segurança. Se não estais dispostos a isso, da primeira à última destas nossas palestras, penso então que estais perdendo tempo em vir aqui. Os problemas que se nos apresentam são muito graves; são os problemas do medo, da morte, da ambição, da autoridade, da meditação, etc. Todo problema deve ser atendido realisticamente — não emocional, intelectual ou sentimentalmente. E isso requer um pensar preciso, uma grande energia, a fim de podermos levar inteiramente a cabo cada investigação e descobrirmos a essência das coisas. Isso me parece indispensável.

Se observamos, não apenas os fatos mundanos externos, mas também o que está sucedendo interiormente, em nós mesmos, descobrimos — não é verdade? — que somos escravos de certas ideias, escravos da autoridade. Há séculos que somos moldados pela propaganda para sermos cristãos, budistas, comunistas ou o que mais seja. Mas, certamente, para descobrirmos a verdade, não devemos pertencer a religião alguma. É muito difícil não nos deixarmos comprometer com um dado padrão de ação ou de pensamento. Não sei se já alguma vez tentastes não pertencer a coisa alguma, rejeitar completamente a tradicional aceitação de Deus — o que não significa tornar-se ateísta, coisa tão estúpida quanto crer, porém rejeitar a influência da Igreja, com toda a sua bimilenar propaganda.

Tampouco é fácil negardes que sois francês, hindu, russo ou americano; isso talvez seja até mais difícil. É relativamente fácil rejeitarmos uma coisa quando sabemos aonde nos levará a rejeição; mas isso é meramente trocar de prisão. Mas se rejeitais todas as prisões, e não sabeis aonde a rejeição vos levará, então vos vedes só. E parece-me absolutamente essencial que nos vejamos completamente sós, livres de influências; porque só então seremos capazes de descobrir por nós mesmos o que é verdadeiro — não só neste mundo em que decorre nossa existência diária, mas também além dos valores mundanos, além do pensamento e do sentimento, além de todas as medidas. Só então saberemos se existe um realidade transcendente ao espaço e ao tempo; e este descobrimento é criação. Mas, para se descobrir o que é verdadeiro, necessita-se desse sentimento de solidão, de liberdade. Não podemos viajar com rapidez se estamos ligados a alguma coisa — nossa pátria, nossas tradições, nossas habituais tendências de pensamento. Isso é o mesmo que estar preso a uma estaca.

Assim, se desejais descobrir o que é verdadeiro, deveis quebrar todos os elos que vos prendem, para investigardes não só o exterior, vossas relações com coisas e pessoas, mas também o interior, i.e., conhecer a vós mesmo — tanto superficialmente, na consciência desperta, como no inconsciente, nos ocultos recessos do intelecto e da mente. Requer isso observação constante; e se observardes dessa maneira, vereis que não existe uma separação real entre o exterior e o interior; porque o pensamento, como a maré, tanto flui para fora como para dentro. Tudo constitui um só processo de autoconhecimento. Não podeis rejeitar o exterior, porquanto não sois uma entidade separada do mundo. O problema do mundo vos concerne, e o “exterior” e o “ interior” são as duas faces da mesma moeda. Os eremitas, os monges, e os chamados religiosos que renunciam ao mundo estão apenas, com todas as suas disciplinas e superstições, fugindo para suas próprias ilusões.

Pode-se ver que exteriormente não somos livres. Em nossos empregos, nossas religiões, nossas pátrias, em nossas relações com esposa, marido, filhos, em nossas ideias, crenças e atividades políticas, não somos livres, Interiormente, também, não somos livres, porque não conhecemos nossos “motivos”, nossos impulsos, compulsões, exigências inconscientes. Assim, não há liberdade, nem interior nem exteriormente, e este é que é o fato. Mas, em primeiro lugar, cumpre-nos perceber esse fato, pois em geral recusamo-nos a percebê-lo; sofismamos a respeito dele, encobrimo-lo com palavras, com ideias, etc. O fato é que, tanto na esfera psicológica, como na exterior, desejamos segurança. Exteriormente, desejamos estar seguros em nosso emprego, nossa posição, nosso prestígio, nossas relações; e quando um reduto é destruído, passamos a outro.

Assim, reconhecendo as condições extremamente complexas em que o intelecto e a mente funcionam, que possibilidade temos de romper essas muralhas? Espero estejais vendo o impasse a que chegamos. A questão é esta: Tratamos alguma vez de enfrentar realmente o fato? O fato é que o intelecto e a mente buscam a segurança numa dada forma, e quando existe essa ânsia de segurança, existe medo. Nunca encaramos realmente esse fato; ou dizemos que ele é inevitável ou, ainda, perguntamos como nos libertarmos do temor. Já se pudermos encarar o fato, sem tentar fugir-lhe, interpretá-lo ou transformá-lo, então o fato atua por si mesmo.

Não sei se, psicologicamente, chegastes até este ponto, experimentastes até este ponto, pois me parece que a maioria de nós não percebe o quanto a nossa mente, o nosso intelecto, se mecanizou; e não perguntamos a nós mesmos se é possível encarar esse fato completamente, com intensidade. Desejo fique bem claro que não estou procurando convencer-vos de coisa alguma; isso seria muito infantil. Não estamos aqui fazendo propaganda — deixemos isso aos políticos, às Igrejas e a todos aqueles que “oferecem” coisas. Não estamos a oferecer-vos novas ideias, porquanto as ideias nada significam; podemos entreter-nos com elas intelectualmente, porém elas não nos levam a parte alguma. O que é significativo, o que tem vitalidade, é enfrentar um fato; e o fato é que a mente, todo o nosso ser está sendo mecanizado há séculos. Todo pensamento é mecânico; e para compreendermos esse fato e transcendê-lo, precisamos primeiramente vê-lo.

Pois bem; como podemos entrar em contato, emocionalmente, com um fato? Intelectualmente eu posso dizer que tenho o hábito de beber e que é muito nocivo beber — física, emocional e psicologicamente — e, no entanto, continuar a beber. Mas entrar em contato com o fato emocionalmente é coisa bem diferente. Pois o contato emocional com o fato tem ação própria. Sabeis como — quando guiais um carro por muito tempo — começais a cochilar e, então, dizeis: “Preciso despertar” — mas continuais a guiar. Depois, ao passardes perigosamente próximo a outro carro, dá-se então, repentinamente, um contato emocional direto e despertais imediatamente, e levais o carro para a margem da estrada, a fim de descansardes um pouco. Já alguma vez vistes um fato repentinamente, da mesma maneira, entrando em contato com ele totalmente, completamente? Já apreciastes realmente uma flor? Duvido, porque nunca olhamos realmente para uma flor; o que fazemos é classificá-la imediatamente, dar-lhe um nome, chamá-la “rosa”, cheirá-la, dizer “como é bela!” e pô-la de lado, como coisa já conhecida. A denominação, a classificação, a opinião, o julgamento, a escolha — tudo isso vos impede de efetivamente olhá-la.

Da mesma maneira, para entrarmos emocionalmente em contato com um fato não deve haver denominação, nem classificação, nem julgamento; todo pensar e toda reação devem cessar. Só então podeis olhar. Experimentai, de vez em quando, olhar para uma flor, uma criança, uma estrela, uma árvore ou o que quer que seja, livre de todo o mecanismo do pensar, pois, se o fizerdes, vereis muito mais. Não haverá então nenhuma cortina de palavras entre vós e o fato e, portanto, estareis em contato direto com ele. Há séculos que somos educados para avaliar, condenar, aprovar, classificar; e tornar-se apercebido de todo esse mecanismo é começar a ver o fato.

Atualmente, a totalidade de nossa vida está confinada no tempo e no espaço, e os problemas imediatos nos absorvem. Nossos empregos, nossas relações, os problemas do ciúme, do medo, da morte, da velhice, etc. tudo isso nos enche a vida. A mente, o intelecto, é capaz de libertar-se de todos esses problemas? Digo que sim, pois já o experimentei, já desci até suas últimas profundezas e deles me libertei. Mas de modo nenhum deveis aceitar o que vos diz este orador, porquanto a simples aceitação nenhum valor tem. A única coisa valiosa é empreenderdes também a jornada; mas, para a empreenderdes, necessitais de liberdade desde o começo, necessitais do impulso para descobrir — não, aceitar, não, duvidar, mas, sim, descobrir. Vereis, então, ao aprofundardes a questão, que a mente pode ser livre; e só essa mente livre pode descobrir o que é verdadeiro. [...]

PERGUNTA: Como podemos entrar em contato com um fato emocionalmente?

KRISHNAMURTI: Para se entrar em direto contato com uma coisa, requer-se que dela nos abeiremos de maneira total, isto é, não apenas intelectual, emocional ou sentimentalmente. Requer-se compreensão total.

PERGUNTA: Não devemos manter-nos atentos ao mecanismo dual, sempre em ação dentro em nós, e isso não é autoconhecimento?

KRISHNAMURTI: Foram empregadas as palavras “atento”, “dualidade” e “autoconhecimento”. Consideremos estas três palavras, uma a uma, pois se não as compreendermos, não haverá possibilidade de comunicação entre nós.

Ora, que significa estar “atento”? Prestai atenção, por favor, pois não desejo parecer-vos pedante; só quero certificar-me de que nós dois compreendemos as palavras que estamos empregando. Para vós elas podem ter um significado e para mim outro. Para mim, quando prestamos atenção total, não há concentração, nem exclusão, nem nada. Sabeis como um colegial que deseja olhar pela janela é forçado a olhar para seu livro; mas isso não é atenção. Atenção é ver o que se está passando do lado de fora e também o que se acha à nossa frente. Observar sem exclusão de nada é muito difícil.

E, agora, que entendemos por “mecanismo dual”? Sabemos que existe um mecanismo dual, o bom e o mau, o ódio e o amor, etc.; e manter-se atento para essas coisas é muito difícil, não achais? E por que criamos esse mecanismo dual? Ele existe realmente ou é uma invenção do intelecto, a fim de fugir ao fato? Sou violento, digamos, ou ciumento, e isso me incomoda. Não gosto desse estado; digo, portanto, que não devo ser ciumento, violento — e isso é uma fuga ao fato, não achais? O ideal é uma invenção do intelecto, que quer fugir ao que é; por isso, existe dualidade. Mas, se enfrento integralmente o fato de que sou ciumento, então já não há dualidade. Enfrentar o fato significa penetrar completamente o problema da violência e do ciúme; e, então, ou descubro que isso me agrada (ser violento, ciumento) e neste caso o conflito continua necessariamente, ou, ainda, percebo tudo o que o problema implica e fico livre do conflito.

E, agora, que entendemos por “autoconhecimento”? Que significa “conhecer a si mesmo”? Conheceis a vós mesmo? O “eu” é uma coisa estática, ou uma coisa em constante mutação? Posso conhecer-me? Conheço minha mulher, meu marido, meu filho, ou conheço apenas o retrato feito pela minha mente? É bem de ver que não posso conhecer uma coisa viva, não posso reduzir uma coisa viva a uma fórmula; o que posso fazer é, tão somente, segui-la, aonde quer que leve; e se a sigo, nunca poderei dizer que a conheço. Assim, o conhecimento do “eu” significa seguir o “eu”, seguir todos os pensamentos, sentimentos, motivos, sem nunca dizer “conheço”. Só se pode conhecer o que é estático, morto.

Estais vendo, pois, a dificuldade relativa às três palavras contidas nesta pergunta: “atenção”, “dualidade” e “autoconhecimento”. Se puderdes compreender todas estas palavras e passar adiante, transcendê-las, conhecereis então o inteiro significado de enfrentar um fato.

PERGUNTA: Existe algum meio de aquietar a mente?

KRISHNAMURTI: Em primeiro lugar, ao formulardes esta pergunta, estais percebendo que vossa mente está agitada? Estais apercebido de que vossa mente nunca está quieta, que está constantemente a “tagarelar”? Eis um fato. A mente fala incessantemente, seja a respeito de alguma coisa, seja para si própria; está constantemente ativa. Por que fazeis esta pergunta? Pensai até o fim junto comigo. Se a fazeis porque estais parcialmente apercebido da “tagarelice” e desejais livrar-vos dela, neste caso podeis também tomar uma droga, uma pílula que faça a mente dormir. Mas, se estais investigando e desejais realmente descobrir porque tagarela a mente, o problema se torna então muito diferente. No primeiro caso trata-se de uma fuga, no segundo de seguir a tagarelice até o fim.

Pois bem; por que tagarela a mente? Com “tagarelar” queremos dizer que ela está sempre ocupada com alguma coisa — o rádio, seus problemas, seu emprego, suas visões, suas emoções, seu mitos. Ora, por que está ela ocupada e que aconteceria se não estivesse ocupada? Já tentastes alguma vez não estar ocupado? Se já o fizestes, tereis visto que no mesmo instante em que o intelecto deixa de estar ocupado, manifesta-se o medo. Porque isso significa “estar só”. Se vos vedes sem ocupação alguma, esta é uma experiência muito dolorosa, não? Já estivestes só, alguma vez? Duvido. Podeis passear a sós, sentar-vos sozinho num ônibus ou em vosso quarto, mas vossa mente está sempre ocupada, vossos pensamentos sempre a fazer-vos companhia. O cessar da ocupação faz-vos descobrir que estais completamente só, isolado, e isso gera medo; eis por que a mente prossegue tagarelando, tagarelando...

Krishnamurti, Paris, 5 de setembro de 1961, O Passo Decisivo

sábado, 6 de setembro de 2014

Ser intelectual ou ser emotivo é um tanto estúpido

Vocês podem olhar para os seus deuses, seus prazeres favoritos, seus sentimentos de nobreza, de espiritualidade, etc. — despojados da palavra? Isso é dificílimo, e são muito poucos os que se sentem dispostos a olhar assim. Esse VER é total, porque já não está associado com a palavra e as lembranças, os sentimentos que a palavra evoca. Desse modo, o ver uma coisa totalmente significa que não existe divisão, que não há reação ao que se está vendo: há, apenas, VER. E a percepção do fato em si provoca uma série de ações dissociadas da palavra, da memória, das opiniões e ideias. Isso não é uma façanha intelectual, embora o pareça. Ser intelectual ou ser emotivo é um tanto estúpido. Mas o ver o medo totalmente liberta a mente do medo. 

Ora, nunca vemos uma coisa totalmente, porque estamos sempre olhando as coisas com o intelecto. Isso não significa que não se deva fazer uso do intelecto; ao contrário, temos de fazer uso do intelecto em sua capacidade máxima. Mas a função do intelecto é fracionar as coisas; foi ele educado para observar por partes, não totalmente. Estar inteiramente cônscio do mundo, da Terra, isso não implica nenhum senso de nacionalidade, nem tradições, nem deuses, nem igrejas, nem repartição das terras, nem divisão da Terra em mapas coloridos. E ver a humanidade como constituída de entes humanos não significa segregá-los em europeus, americanos, russos, chineses ou indianos. Mas o intelecto recusa-se a ver totalmente a Terra e o homem que a habita, porque o intelecto foi condicionado através de séculos de educação, tradição e propaganda. Assim o intelecto com todos os seus hábitos mecânicos, seus instintos animais, seu impulso para permanecer em segurança, protegido, jamais pode ver coisa alguma em sua totalidade. Entretanto, é o intelecto que nos domina; é o intelecto que está sempre funcionando. 

Por favor, não saltem logo para a ideia de que deve haver algo além do intelecto, de que em nós deve habitar um espírito, com o qual devemos entrar em contato, e outros absurdos de igual espécie. Estou caminhando passo a passo; assim, tende a bondade de seguir-me, se o desejarem. 

O intelecto, pois, foi condicionado — pelo hábito, pela propaganda, pela educação, por todas as influências diárias, pela insignificância da vida e por seu próprio e incessante tagarelar. E é com esse intelecto que olhamos. Esse intelecto, ao escutar o que se diz, ao contemplar uma árvore, um quadro, ao ler um poema ou ouvir um concerto, , é sempre fracionário; sempre reage em termos de "gosto" e "não gosto", em termos de vantagens ou desvantagens. A função do intelecto é reagir e, se assim não fosse, seríamos destruídos da noite para o dia. É, portanto, o intelecto, com todas as suas reações, lembranças, impulsos e compulsões — tanto conscientes como inconscientes — que olha, vê escuta e sente.  Mas o intelecto, sendo em si, parcial, produto do tempo e do espaço, da educação — conforme já descrevemos — não pode ver totalmente. Está sempre comparando, julgando, avaliando. Mas a função do intelecto é reagir, avaliar; por conseguinte, para poder ver as coisas totalmente, o intelecto tem de suspender sua atividade. Espero que esteja me explicando claramente. 

Deste modo, o percebimento total de uma coisa só pode ser verificada quando o intelecto é altamente receptivo à razão, à dúvida, à indagação, mas ao mesmo tempo reconhece as limitações do raciocinar, do duvidar, do indagar e, portanto, não permite a si mesmo interferir no que está vendo. Se desejam realmente descobrir algo que seja mais do que produto do intelecto, este deve em primeiro lugar alcançar os seus limites, interrogando, argumentando, examinando, desejando descobrir e conhecer sua existência limitada, parcial; e essa própria existência , esse conhecer da limitação, aquieta a mente, o intelecto. Há então a visão total. 

Quando se puder ver a totalidade da ordem — com todas as implicações que já examinamos — ver-se-á surgir, dessa compreensão total, uma qualidade inteiramente diferente. Por certo, só poderá apresentar-se a ordem correta com a destruição da mente que exige ordem para sua própria satisfação e segurança. Depois de o intelecto despedaçar tudo o que ele próprio criou, de destruir o solo em que cultiva toda espécie de fantasias, ilusões, desejos, então surgirá, em consequência dessa destruição, uma amor que criará sua ordem própria ordem

Krishnamurti em, O PASSO DECISIVO


quarta-feira, 4 de setembro de 2013

A fuga pelo intelecto e pelo misticismo

Senhor, quando a vida se afigura muito difícil, quando os problemas crescem, costumamos fugir pelo caminho do intelecto ou pelo caminho do misticismo. Conhecemos a fuga intelectual: racionalização, mais e mais planos engenhosos, técnica e mais técnica, mais e mais reações econômicas à vida, todas muito sutis e intelectuais. E há a fuga através do misticismo, dos livros sagrados, da adoração de uma ideia estabelecida, ideia essa constituída de uma imagem, um símbolo, uma entidade superior, etc. — e pensamos que essa fuga não é inspirada pela mente. Ora, tanto o intelectual como o místico são produtos da mente. A um chamamos intelectual, e ao outro desprezamos, porque a moda agora é desprezar o místico, afastá-lo com o pé; mas todos os dois funcionam pela ação da mente. O intelectual pode ter a capacidade de falar, de expressar-se com mais clareza, mas também ele se recolhe nas suas ideias e ali vive muito tranquilo, indiferente à sociedade, acalentando suas ilusões, nascidas da mente; nessas condições, não vejo nenhuma diferença entre os dois. Tanto um como o outro estão seguindo ilusões da mente, e nem o letrado nem o iletrado, nem o místico, o yogi, que foge, que se retrai do mundo, nem o comissário — nenhum deles pode dar-nos a solução. Somos nós, vocês e eu, a gente comum, que temos de resolver este problema, sem sermos intelectuais nem místicos, sem escaparmos pela racionalização nem por meio de termos vagos e de hipnose por palavras e métodos que são autoprojeções nossas. O que vocês são o mundo é, e se não compreendem a vocês mesmos, o que criarem aumentará sempre a confusão e o sofrimento; mas a compreensão de vocês mesmos está justamente na ação das relações. Ação é relação na qual compreendem a si mesmos, na qual se veem claramente; mas se esperam pela perfeição ou pela compreensão de si mesmos, essa espera equivale a morrer. A maior parte de nós estivemos ativos, e essa atividade deixou-nos vazios, estéreis; e, sendo mordidos, detemo-nos e interrompemos a ação dizendo: “Não quero agir enquanto não compreender”. Esperar, para compreender, é um processo de morte; mas se compreendem inteiramente o problema da ação, do viver minuto por minuto, o que não exige espera, então a compreensão está naquilo que fazem, está na própria ação, e não separada do viver. Viver é ação, viver é relação, e porque não compreendemos as relações, porque evitamos as relações, ficamos na rede das palavras; e as palavras nos mesmerizam de tal sorte que a nossa ação sempre conduz a um caos e a um sofrimento maiores ainda.

(...) Senhor, compreende quais são os valores que estou advogando? Estarei advogando alguma coisa — pelo menos para aqueles poucos que me têm ouvido com sinceras intenções? Não estou lhes dando uma nova coleção de valores para substituir os valões antigos, não estou oferecendo-lhes nenhum substituo; o que digo é que devem olhar para as coisas que possuem nas mãos, que devem examiná-las, investigar a sua verdade, e os valores que então estabelecerem criarão uma nova sociedade. Não cabe a outro qualquer traçar um plano, para o seguirem cegamente, sem saber porque e nem para que, mas é a vocês mesmos que cabe descobrir o valor, a verdade de cada problema. O que estou dizendo é muito claro e muito simples, se o quiserem compreender. A sociedade é o próprio produto de vocês, ela é a “projeção” de vocês. O problema do mundo é o problema de vocês, e para compreenderem esse problema, precisam compreender a si mesmos; e só podem se compreender nas relações, e não nas fugas. Porque para vocês, religião e saber representam meios de fuga, não tem vitalidade, não tem significação. Não querem alterar fundamentalmente as suas relações com os outros, porque fazê-lo significa incômodo, significa perturbação, revolução; por isso ficam falando a respeito do intelectual, do místico, e todos os demais absurdos desse gênero. Senhor, uma nova sociedade, uma nova ordem, não pode ser estabelecida por outras pessoas; ela tem de ser estabelecida por você mesmo. Uma revolução baseada numa ideia, não é revolução, absolutamente. A verdadeira revolução vem de dentro, e essa revolução não pode ser realizada pela fuga, só vem quando compreende as suas atividades diárias, sua maneira de proceder, de pensar, de falar, sua atitude para com o próximo, para com a sua esposa, seu marido, seus filhos. Se não compreende a si mesmo, pode fazer o que quiser, fugir para o mais longe possível, mas só produzirá mais sofrimento, mais guerras, mais destruição.

Jiddu Krishnamurti — O que estamos buscando?  

domingo, 25 de agosto de 2013

O entrave da “cortina de palavras” do intelecto

Pergunta: Você diz que, para haver compreensão, a mente, a memória e o processo do pensamento precisam desaparecer; todavia, você está nos comunicando algo. O que você diz representa experiência de algo do passado, ou o experimenta no momento em que o comunica?

Krishnamurti: Quando é que vocês se comunicam? Quando é que comunicam ao outro a experiência de vocês? Depois de ter tido a experiência, e não no momento do experimentar. A comunicação não é mais do que um resultado anterior. Precisam da memória, das palavras, dos gestos, para transmitir uma experiência que tiveram. A comunicação de vocês é, pois, a expressão de uma experiência já terminada.

Ora, quando é que compreendem, quando é que há compreensão? Não sei se já notaram que só há compreensão quando a mente está muito quieta, ainda que seja por um segundo; dá-se o lampejo da compreensão quando não há verbalização do pensamento. Experimentem e verão que terão o clarão da compreensão, aquela extraordinária rapidez da intuição, quando a mente está muito tranquila, quando o pensamento está ausente, e quando a mente não está cheia de barulho por ela mesma produzido. Nessas condições, a compreensão de qualquer coisa — de um quadro moderno, de uma criança, de sua esposa ou seu vizinho — ou a compreensão da verdade, que está em todas as coisas, só pode despontar quando a mente está muito tranquila. Mas tal tranquilidade não pode ser cultivada, porquanto, se cultivam a mente para a tranquilidade, não terão uma mente tranquila, mas sim, uma mente morta.

É essencial ter-se uma mente tranquila, a fim de compreender-se, o que é bastante óbvio para aqueles que já experimentaram tudo isso. Quanto mais se interessarem por alguma coisa, quanto maior a intenção de compreender, tanto mais simples, clara e livre estará a mente. Cessa, então, a verbalização. Afinal de contas, o pensamento é palavra, e a palavra é que perturba. É “a cortina de palavras, a memória, que se interpõe entre o desafio e a “resposta”. É a palavra que está respondendo ao desafio, o que chamamos intelectualização. Assim sendo, a mente que vive a tagarelar, a verbalizar, não pode compreender a verdade — a verdade nas relações, não é uma verdade abstrata. Não existe verdade abstrata. Mas a verdade é muito sutil. É a sua sutilidade que é difícil seguir. A verdade não é abstrata. Ela nos vem súbita, às escuras, e por isso a mente não a pode reter. Como um ladrão, nas sombras da noite, ela vem às escuras, e não quando preparamos para recebê-la. A recepção de vocês não é mais do que um convite da avidez. Assim, pois, uma mente que está presa na rede das palavras, não pode compreender a Verdade.

A segunda questão é a seguinte: Não é possível comunicar a experiência no momento do experimentar? Para a comunicação, necessita-se da memória “factual”. Quando falo a vocês, emprego palavras, as quais vocês e eu compreendemos. A memória é resultado do cultivo da faculdade de aprender e armazenar palavras.

Deseja saber o interrogante como é possível haver uma mente que não expresse ou comunique simplesmente um fato depois de passado, depois da experiência, mas, sim, que seja capaz de experimentar e ao mesmo tempo comunicar a experiência. Isto é, uma mente nova, uma mente fresca, uma mente que experimenta  sem a interferência da memória, da memória do passado. Vejamos, pois, primeiro, a dificuldade aqui existente.

Como já disse, em geral, nós comunicamos depois da experiência; por conseguinte, a comunicação se torna um obstáculo a novas experiências; porque a comunicação, a verbalização, só tem o efeito de fortalecer a lembrança daquela experiência. E esse fortalecer da lembrança de uma experiência impede-nos de receber livremente a próxima experiência. Comunicamos uma experiência, ou para fortalecê-la ou para a retermos. Nós a verbalizamos, a fim de fixa-la como lembrança, ou para comunica-la. O próprio fixar de uma experiência pela verbalização representa o fortalecimento de uma experiência já terminada. O que se fortifica, por conseguinte, é a memória; e, por isso, é a memória que faz frente ao desafio. Em tal estado, no qual a resposta ao desafio é puramente verbal, a experiência do passado se torna um obstáculo. Nessas condições, a nossa dificuldade consiste em experimentar e comunicar, sem que a verbalização constitua um obstáculo a novas experiências.

Se em todas estas discussões e palestras, eu me limitasse a repetir a experiência do passado isso não somente seria terrivelmente enfadonho para vocês e para mim, mas também iria fortalecer o passado e, portanto, impedir o “experimentar” no presente. O que, com efeito, se dá é que a “experiência” se processa simultaneamente com a sua comunicação. A comunicação não é verbalização, não é o vestir a experiência. Se vestimos a experiência, se lhe colocamos uma vestimenta, se a moldamos, perder-se-á o seu perfume e a sua profundeza. Só pode haver, portanto, uma mente fresca, uma mente nova, quando o experimentar não é revestido de palavras. E no expressar verbalmente a experiência existe o perigo de a vestir, dar-lhe forma e figura e, portanto, de carregar a mente com a imagem, com o símbolo. Só é possível ter-se uma mente nova, uma mente fresca, quando não é a palavra que importa, mas a experiência. Esse experimentar, se dá momento por momento. Não pode haver “experimentar”, se isso se torna um processo acumulativo, porquanto, em tal caso, é a acumulação que experimenta, e não existe o experimentar. Só há experimentar, momento por momento, quando há acumulação. A verbalização é acumulação. É extremamente difícil e árduo expressar e ao mesmo tempo não nos deixarmos prender na rede das palavras.

A mente é, afinal, de contas, o resultado do passado, de ontem. E aquilo que não está subordinado ao tempo não pode ser seguido pelo tempo. A mente não pode seguir aquilo que é extraordinariamente veloz, que não está no espaço, nem no tempo, mas naquele estado da mente em que há o experimentar, em que não há “vir a ser”, em que tudo é novo. É a palavra que faz velho “o que é”. É a memória de ontem que veste o presente. E para se compreender o presente, é necessário o experimentar. Mas o experimentar é impedido quando a palavra se torna de suma importância. Nessas condições, só há uma mente nova, uma mente que está a experimentar continuamente, sem moldar nem ser moldada pela experiência, quando a palavra, o passado não é utilizado como meio de “vir a ser”.

Jiddu Krishnamurti — O que te fará feliz?

quarta-feira, 31 de julho de 2013

É possível explorar além da estreita janela do pensamento?

Os seres humanos, por todo o mundo, têm feito do intelecto um dos fatores de maior importância na nossa vida diária. Observamos que os antigos hindus, os egípcios  e os gregos, todos eles consideravam o intelecto como sendo a função mais importante na vida. Mesmo os budistas deram importância a ele. Em cada universidade, faculdade e escola pelo mundo todo, seja em um regime totalitário ou nas chamadas democracias, o intelecto tem um papel dominante. Queremos dizer por intelecto a capacidade de entender, de discernir, de escolher, de pesar, ponderar, e toda a tecnologia da ciência moderna.  A essência do intelecto é todo o movimento do pensamento, não é? O pensamento domina o mundo tanto na vida exterior como interior. O pensamento também criou o mundo, todos os rituais, os dogmas, as crenças. O pensamento também criou as catedrais, os templos, as mesquitas com sua maravilhosa arquitetura e santuários locais. O pensamento tem sido responsável por uma infindável tecnologia em expansão, as guerras e os materiais bélicos, a divisão dos povos em nações, em classes e raças. O pensamento tem sido e provavelmente ainda é o instigador de tortura em nome de Deus, da paz, da ordem. Ele também tem sido responsável pela revolução, pelos terroristas, pelo princípio supremo e os ideais de valores absolutos. Vivemos pelo pensamento. Nossas ações são baseadas no pensamento, nossos relacionamentos também são fundados no pensamento, assim o intelecto tem sido adorado em todos os tempos.

Mas o pensamento não criou a natureza — o firmamento com suas estrelas em expansão, a terra com toda a sua beleza, com seus vastos mares e campos verdes. O pensamento não criou a árvore, mas ele a tem usado para construir a casa, para fazer a cadeira. O pensamento usa e destrói.

O pensamento não pode criar o amor, a afeição e a qualidade de beleza. Ele tece uma rede de ilusões e realidades. Quando vivemos unicamente pelo pensamento, com todas as suas complexidades e sutilezas, com seus propósitos e direções , perdemos a grande profundidade da vida, pois o pensamento é superficial. Embora ele tenha a pretensão de mergulhar profundamente, o próprio instrumento é incapaz de penetrar além de suas limitações próprias. Ele pode projetar o futuro, mas esse futuro nasce das raízes do passado. As coisas que o pensamento criou são reais, existem de fato — como a mesa, como a imagem que você adora —, mas a imagem, o símbolo que você adora são formados pelo pensamento, incluindo todas as muitas ilusões — românticas, idealistas, humanitárias. Os seres humanos aceitam e vivem com as coisas do pensamento — dinheiro, posição, status e a luxúria de uma liberdade que o dinheiro traz. Isso é todo o movimento do pensamento e do intelecto — e através dessa janela estreita de nossa vida olhamos para o mundo.

Existe algum outro movimento que não seja do intelecto e do pensamento? Essa tem sido a investigação de muitas religiões e esforços científicos e filosóficos. Quando usamos a palavra religião, não estamos nos referindo ao absurdo das crenças, dogmas, rituais e estrutura hierárquica.  Ao falar de uma mulher ou um homem religioso, nos referimos àqueles que se libertaram de séculos de propaganda, do peso morto da tradição, moderna ou antiga. Os filósofos que se contentam com teorias, conceitos e jogos de ideias, não têm a possibilidade de explorar além da janela estreita do pensamento, nem o cientista com suas capacidades extraordinárias, com seu pensamento talvez original, com seu imenso conhecimento. O conhecimento é o depósito da memória e deve haver liberdade do conhecido para explorar o que está para além dele. Deve haver liberdade para investigar sem qualquer laço, escravidão, sem qualquer apego à experiência própria, às próprias conclusões, a todas as coisas que o homem impôs a si mesmo. O intelecto deve estar tranquilo, em quietude absoluta, sem nenhum tremor, nenhum movimento do pensamento.

A nossa educação agora está baseada no cultivo do intelecto, do pensamento e do conhecimento — que são necessários no campo da nossa ação diária, mas que não têm lugar no nosso relacionamento psicológico uns com os outros, pois a própria natureza do pensamento divide e destrói. Quando o pensamento domina todas as nossas atividades e todos os nossos relacionamentos, ele produz um mundo de violência, terror, conflito e miséria.

Nessas escolas, todos nós — tanto os jovens quanto os mais velhos — devemos dar atenção a isso.

Jiddu Krishnamurti — A arte de aprender – Cartas às escolas

sexta-feira, 21 de junho de 2013

Intelecto: a venda da visão holística

Nunca vemos algo por inteiro, porque estamos sempre olhando com o intelecto. Isto não significa que não se deva fazer uso do intelecto; pelo contrário, temos de fazer uso do intelecto em sua máxima capacidade. Mas a função do intelecto é fracionar as coisas; ele foi educado para observar por partes, não totalmente. Estar inteiramente consciente do mundo, da Terra, isso implica nenhum senso de nacionalidade, nem tradição, nem deuses, nem igrejas, nem repartições de terras, nem divisão da Terra em coloridos mapas. E ver a humanidade como constituída de entes humanos não significa segregá-los em europeus, americanos, russos, chineses ou indianos. Mas o intelecto recusa-se a ver totalmente a Terra e o homem que a habita, porque o intelecto foi condicionado através de séculos de educação, tradição e propaganda. Assim, o intelecto com todos os seus mecânicos hábitos, seus instintos animais, seu impulso para permanecer em segurança, protegido, jamais pode ver coisa alguma em sua totalidade. Entretanto, é o intelecto que nos domina; é o intelecto que está sempre funcionando.

Por favor, não salte logo para a ideia de que deve haver algo além do intelecto, de que em nós deve habitar um espírito, com o qual devemos entrar em contato, e outros absurdos de igual espécie. Estou caminhando passo a passo; assim, tenha a bondade de seguir-me, se o desejar.

O intelecto, pois, foi condicionado — pelo hábito, pela propaganda, pela educação, por todas influências diárias, pela insignificância da vida e por seu próprio e incessante tagarelar. E é com esse intelecto que olhamos. Esse intelecto, ao escutar o que se diz, ao contemplar uma árvore, um quadro, ao ler um poema ou ouvir um concerto, é sempre fracionário; sempre reage em termos de "gosto" e "não gosto", em termos de vantagem ou desvantagem. A função do intelecto é reagir e, se assim não fosse, seríamos destruídos da noite para o dia. É, portanto, o intelecto, com todas as suas reações, lembranças, impulsos e compulsões — tanto conscientes como inconscientes — que olha, vê, escuta e sente. Mas o intelecto, sendo, em si, parcial, produto do tempo e do espaço, da educação — conforme já descrevemos — não pode ver totalmente. Está sempre comparando, julgando, avaliando. Mas a função do intelecto é reagir, avaliar; por conseguinte, para poder ver a coisa totalmente, o intelecto tem de suspender sua atividade. Espero que esteja me explicando claramente.

Deste modo, o percebimento total de uma coisa só pode ser verificado quando intelecto é altamente receptivo à razão, à dúvida, à indagação, mas ao mesmo tempo reconhece as limitações de raciocinar, de duvidar, do indagar e, portanto, não permite a si mesmo interferir no que está vendo. Se você deseja realmente descobrir algo que seja mais do que produto do intelecto, este deve em primeiro lugar alcançar os seus limites, interrogando, argumentando, examinando, desejando descobrir e conhecer sua existência limitada, parcial; e essa própria experiência, esse conhecer da limitação, aquieta a mente, o intelecto. Há então a visão total.

(...) O importante é compreender o que se entende por "ver totalmente", e não apenas ver uma coisa, tal como o medo, o amor, o ódio, isto ou aquilo. Quando você deseja ver o medo totalmente, seu desejo é de se livrar do medo, não é verdade? E o próprio desejo de "se livrar" ou de "ganhar" impede a visão total. Como você sabe, tudo isso implica uma grande soma de autoconhecimento — conhecimento de tudo o que lhe diz respeito, de todos os escaninhos de si mesmo. Quando você vê no espelho o seu rosto, o conhece muito bem, cada curva, cada linha, cada ângulo; e da mesma maneira uma pessoa deve se conhecer profundamente, não apenas seu "eu" consciente, mas também todas as camadas ocultas do inconsciente.

O que desejo lhe transmitir, se possível, é só uma coisa — não ideias, nem sentimentos, nem uma certa coisa extraordinária, "espiritual", porém o quanto é importante VER TOTALMENTE. E ver totalmente significa ver sem julgamento, sem condenação, sem avaliação. Significa também que o intelecto não está reagindo àquilo que vê, porém, tão-só, observando, naquele estado em que não existe pensador separado da coisa observada. Isso é sumamente difícil e, portanto, não pense em alcançar esse estado por meio de palavras. Significa compreender por inteiro a questão da contradição, porque todos nós nos achamos num estado contraditório.

Krishnamurti — O Passo Decisivo


sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Do intelecto analítico à razão intuitiva

Sentidos, intelecto, razão...

Esta trilogia marca o itinerário evolutivo do homem sobre a face da Terra. No princípio da grande jornada, o homem só atingia aquilo que os sentidos lhe ofereciam, como reflexo do mundo circunjacente. E neste plano o homem se parece com o animal.

Mais tarde, despertou o homem a faculdade analítica do intelecto — e com isso o homem entrou no primeiro estágio da sua característica hominalidade. Nasceu o homem-ego, o homem-persona, o homem-intelecto.

O grosso da presente humanidade se acha ainda neste primeiro estágio hominal, incluindo, naturalmente, o estágio animal dos sentidos.

Sentidos e intelecto formam o homem-ego, cuja inteligência atingiu, sobretudo nos últimos tempos, notável desenvolvimento. A inteligência humana se revela pela ciência, cujo campo é a investigação das relações de causa e efeito que vigoram entre os fenômenos que os sentidos nos apresentam. O intelecto conhece causas e efeitos — mas ignora a Causa Única dessas causas e desses efeitos múltiplos.

Entretanto, faz parte da natureza humana uma faculdade ultra-intelectiva, que os gregos chamavam "Lógos" (diferenciando-a do "nóos", ou intelecto) e que os romanos designavam pelo termo "ratio". Infelizmente, em nossos dias, raras vezes se faz a devida distinção entre "intelecto" e "razão". No uso geral, as palavras razão e racional e o termo "lógico" (derivado de "lógos", razão) se referem, quase sempre, à atividade do intelecto; dizemos que fulano é um intelectualista unilateral, meramente analítico, e dizemos que sicrano pensa logicamente, quando entendemos que ele se guia pelos ditames da inteligência.

Na Filosofia Univérsica, porém, que prima por uma terminologia de precisão matemática, fazemos questão de pensar e falar com a mais alta e rigorosa precisão;  não confundimos razão com intelecto.

O intelecto age analiticamente — a razão reage intuitivamente.

O intelecto é ego-pensante — a razão é cosmo-pensada. E pode mesmo chegar a ser cosmo-pensante, no caso que atinja o clímax do seu poder. No estágio racional aparece o homem-Eu, o homem-indivíduo (indiviso).

O homem-Eu, no estágio da razão, age pela sapiência ou sabedoria. Ultrapassou a simples ciência do homem-ego, que age analiticamente.

A humanidade do presente, raras vezes, age com sapiência; conhece apenas a ciência, que é do ego intelectual. Só de vez em quando aparece um ser humano que se guia pela sapiência do Eu intuitivo.
O modo de agir sapiencial é, para o homem intelectual, um absurdo, um paradoxo — e o é na verdade, porque "absurdo" em latim e "paradoxal" em grego querem dizer "para além do intelecto".No primeiro século, Paulo de Tarso escreveu aos cristãos de Corinto:

"O homem intelectual (psychikós) não compreende as coisas que não são do espírito (pnêuma, sinônimo de Lógos), que lhe parecem tolices; nem as pode compreender, porque as coisas do espírito devem ser compreendidas espiritualmente".
Que diríamos de um homem que quisesse ouvir diretamente, com os ouvidos, as ondas eletrônicas de uma estação emissora? Não as pode ouvir, porque os ouvidos só percebem ondas aéreas, que estão em outra dimensão de frequência vibratória. Os nossos ouvidos só podem ouvir vibrações eletrônicas depois de convertidas em vibrações aéreas pelo aparelho receptor e transformador do rádio.

O intelectual analítico não pode perceber a irradiação do racional intuitivo, a não ser que ele racionalize primeiro a sua inteligência.

(...) A inteligência ego-pensante é prelúdio necessário para a razão cosmo-pensada. De fato, não se trata de duas faculdades separadas, como à primeira vista parece; trata-se de uma única faculdade, a qual, quando imperfeitamente realizada, se chama intelecto ou inteligência e, quando em plena maturação, se chama Razão ou Lógos. Semente e a planta são essencialmente a mesma coisa, embora existencialmente diferentes.

Quando o homem atinge a plenitude de sua evolução hominal, verifica ele que é tanto ego-pensante como cosmo-pensado — verifica que é cosmo-pensante, homem cosmificado, universificado.

(...) Quando o homem atinge a plenitude da sua consciência ou conscientização, nada mais sabe ele de um aquém ou de um além, porque a dimensão espacial do Finito se dilui na indimensão do Infinito. O mesmo se dá com o conceito ilusório do tempo, que se dilui na verdade do eterno, que é a ausência do tempo. Quando o homem-ego ultrapassa a sucessividade analítica da sua mente e entra, como homem-Eu, na simultaneidade intuitiva da razão, então tudo isto se torna natural, evidente e compreensível.

(...) Por via de regra, o homem só conhece as suas periferias sensoriais ou, quando muito, a sua zona semiperiférica mental. Mas nem os sentidos nem a mente representam a realidade central do homem; atingem o factual, mas não o real. Para além de todas as facticidades desponta a realidade.

O homem irreal ou semi-real deve ser plenamente realizado, para que seu ego doente seja saturado pelo seu Eu sadio. No homem pleni-real não há males. Todos os males de que o homem sofre vem da zona do seu ego mental, da sua persona. Somente o contato com a individualidade real pode curar a personalidade irreal; somente a verdade pode libertar o homem da inverdade, que gera os males. 

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O intelecto é um excelente instrumento a serviço da ignorância

A validade do intelecto é limitada por sua origem, isto é, pela  ignorância primordial. Aos que não têm a consciência de sua sujeião a essa ignorância, e aos que se sentem satisfeitos continuando submissos a ela, o intelecto é o instrumento mais do que suficiente para todos os seus objetivos. Isto é, o intelecto é um instrumento excelente a serviço dessa ignorância. Mas para a finalidade de transcendê-la, tem pouco valor. O máximo que o intelecto pode fazer por nós é reconhecer suas limitações e deixar de obstar nossa Busca da Verdade. Pode fazer isso, tão logo comece a perceber a verdade da sua própria origem impura e a necessidade de confiar nas evidências dos Sábios como um passo em direção à Busca, pela qual podemos obter uma Revelação autêntica do Ser Real. Assim, a controvérsia entre a razão e a Revelação é apenas aparente.

WHO

sábado, 4 de agosto de 2012

A realidade não é intelectual

Amar seus deuses, repetir certas palavras, adornar seu guru com guirlandas, entrar em transe em sua presença, derramar lágrimas — você pode fazer tudo isso pelos próximos mil anos, mas jamais descobrirá a verdadeira realidade. Perceber, sentir, amar uma nuvem, uma árvore, um ser humano, demanda uma enorme atenção e como você pode se dedicar a isso se sua mente está distraída com a aquisição de conhecimentos? O conhecimento é útil tecnologicamente — e nada mais. Se um médico não sabe operar, é melhor ficar longe dele. O conhecimento é necessário até um dado nível, em uma certa direção, mas não é a resposta definitiva para a nossa miséria. A solução definitiva para a nossa miséria está nesse sentimento, nessa paixão que nasce da ausência de si mesmo, quando você esquece tudo que você é. Esse tipo de paixão é imprescindível para sentir, entender, amar. 

A realidade não é intelectual; mas desde a infância, através da educação, através de todas as assim chamadas formas de aprendizado, desenvolvemos uma mente sutil, competitiva, sobrecarregada de informações — como acontece com advogados, políticos, técnicos, especialistas. Nossas mentes foram trabalhadas, buriladas, o que se transformou no objetivo mais importante a alcançar e, com isso, todo o nosso sentimento murchou. Você não tem pena do homem pobre em sua amargura, não se sente jamais feliz ao ver um ricaçõ guiando seu belo carro; não fica encantado ao ver um lindo rosto; não sente emoção diante do arco-íris, ou do esplendor de uma gramado verdinho. Estamos tão absorvidos em nosso trabalho, em nossas misérias, que não temos um momento de lazer para sentir o que é amar, para ser bom, generoso. E, no entanto, desprovidos de tudo isso, queremos saber o que é Deus!... Que coisa incrivelmente estúpida e infantil! De forma que se torna muito mais importante para o indivíduo viver — não reviver; você não pode reviver sentimentos mortos, a glória que passou. Mas não podemos acaso viver intensamente, plenamente, prodigamente mesmo que só por um dia? Pois tal dia abrangeria um milênio. Não se trata de fantasia poética. Você compreenderá  isso quando tiver vivido um dia pleno, no qual não existe tempo, nem futuro, nem passado — você conhecerá então a plenitude conferida por esse estado extraordinário. Esse modo de viver não tem nada a ver com o conhecimento.

Krishnamurti - Sobre Deus

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill