O mecanismo do medo de ser ninguém
PARECE-ME que, pelo mundo inteiro, há muito pouco respeito pelo indivíduo; e, sem esse respeito, vê-se o indivíduo totalmente esmagado — como de fato está acontecendo na moderna sociedade. É bem evidente a necessidade de se criar um ambiente social diferente, mas parece que não percebemos quanto é importante que o indivíduo seja livre; isto é, não percebemos a importância da investigação, da busca, da libertação individual. Só o indivíduo encontrará, finalmente, a Realidade; só ele poderá tornar-se uma força criadora, nesta sociedade que se está a desintegrar; e não parecemos compreender quanto é urgente que, como indivíduos, descubramos por nós mesmos uma maneira de vida independente das influências culturais, sociais e religiosas que nos rodeiam. Se percebêssemos a importância do indivíduo, nunca teríamos guias e nunca seríamos seus seguidores. Só seguimos, quando temos perdido a nossa individualidade. Só existem guias quando nós, como indivíduos, estamos confusos e, portanto, incapacitados para pensar claramente nos nossos problemas e sobre eles atuar. Presentemente, não somos indivíduos; somos unicamente um resíduo de influências coletivas, impressões culturais e restrições sociais. Se observardes com muita atenção e cuidado o funcionamento de vossa própria mente, vereis que o vosso pensar obedece à tradição, aos livros, aos guias ou mestres religiosos, o que significa que o indivíduo se obliterou completamente; é bem certo que só o indivíduo pode criar alguma coisa nova.
Ora, por que razão perdemos o respeito ao indivíduo? Muito se fala sobre a importância do indivíduo; todos os políticos, inclusive os da tirânica sociedade coletiva, falam dela, tal qual como os líderes religiosos falam da importância da alma. Mas, porque é que acontece que, praticamente, na vida real, o indivíduo é esmagado e se perde completamente? Não sei se isso representa um problema para algum de vós; mas se agora, nesta tarde, prestarmos suficiente atenção, talvez possamos libertar-nos da massa das influências coletivas — libertar-nos, de fato, para descobrirmos por nos mesmos o que significa sermos indivíduos reais, entes humanos completamente integrados.
Parece-me que uma das razões fundamentais por que deixamos de ser indivíduo se encontra no fato de querermos exercer um certo poder, ainda que seja apenas em nossa casa, ou no edifício de apartamentos, ou dentro de uma sala. Assim como as nações, ao se tornarem poderosas, criam tensão entre si, assim também cada indivíduo humano está perenemente ansiando por ser alguma coisa, em relação com a sociedade; cada um quer ser reconhecido como homem importante, competente burocrata, artista festejado, pessoa espiritual, etc. Todos queremos ser algo, e o desejo de ser algo emana da ânsia de poder. Se examinardes a vós mesmos, vereis que o que desejais é sucesso, não só neste mundo, mas também no próximo mundo, — se existe esse "próximo mundo". Quereis ser aplaudido, e para terdes, esse aplauso, dependeis da sociedade. A sociedade só aplaude os que têm poder, posição, prestígio; e é a vaidade, a arrogância do poder, da posição, do prestígio, o que quase todos estamos buscando. Nosso "motivo" profundo, básico, é o orgulho de realizar, e esse orgulho se afirma de diferentes maneiras.
Ora, enquanto buscamos o poder, em qualquer sentido que seja, é esmagada a verdadeira individualidade — não apenas nossa própria individualidade, mas a de outros. Este me parece um fato psicológico básico, na vida. Quando ansiamos por ser alguém, isso significa que desejamos ser reconhecidos pela sociedade; por conseguinte, nos tornamos escravos da sociedade, meros dentes da máquina social, cessando assim de ser indivíduos. Penso ser esta uma questão fundamental, a que não devemos eximir-nos apressadamente. Enquanto a mente buscar qualquer forma de poder — poder mediante uma seita, poder pelo saber, poder pela riqueza, poder pela virtude — criará invariavelmente uma sociedade que destruirá o indivíduo, porque a mente humana é então enredada e educada num ambiente que estimula à dependência psicológica do sucesso. A dependência psicológica destrói a mente esclarecida, que é sozinha, não corrompida — a única mente capaz de pensar nos problemas de maneira completa, individualmente, independente da sociedade e de seus próprios desejos.
A mente, pois, está perenemente ansiando por ser algo e aumentando, assim, o seu senso de poder, posição, prestígio. Do impulso para ser alguma coisa resultam os guias e seus seguidores, a adoração do sucesso; e por essa razão não existe uma percepção individual profunda da realidade interior. Se se percebe realmente esse mecanismo, na sua inteireza, será então possível cortar pela raiz a busca do poder? Compreendeis o significado desta palavra — "poder"? O desejo de dominar, possuir, explorar, depender de outro — tudo isso está implicado nessa busca de poder. Podem achar-se outras explicações, mais sutis, mas o fato é que a mente humana busca o poder; e, nessa busca do poder, perde-se a sua individualidade.
Ora, como eliminar esse desejo de poder, que gera arrogância, orgulho, vaidade? A mente busca constantemente a lisonja, sua preocupação é de encarecer a si própria, suas atividades são egocêntricas, e como poderá a mente cortar tudo isso pela raiz? Não sei se já pensastes no problema de como nos libertarmos totalmente da ânsia de poder, mas acho que valeria a pena examiná-lo nesta tarde.
Existe o desejo de ser pessoa importante, mundanamente ou espiritualmente. Ora bem. É possível atingirmos e desarraigarmos esta coisa, para nunca mais seguirmos um guia, não termos mais o sentido de nossa própria importância, não desejarmos mais ser alguém, no mundo político ou noutro qualquer? Podemos ser ninguém, mesmo quando a corrente de existência esteja toda a mover-se em sentido contrário e a impelir-nos, desde pequenos, a nos tornarmos alguém? Nossa educação é toda comparativa; estamos sempre a compararmos com alguém, sendo isso, também, ânsia de poder e posição. E é possível nos libertarmos desse espírito de competição, não pouco a pouco, gradualmente, através do tempo, mas completa e instantaneamente, como se destrói uma árvore, cortando-se-lhe a raiz? É possível isso, ou precisamos de tempo para anular o intervalo entre o que é e o que deveria ser?
Parece-me que todos compreendemos o significado desse desejo de ser algo, o qual produz a limitação e destrói a verdadeira individualidade, o percebimento claro; não preciso pois entrar em mais pormenores sobre este assunto, nesta tarde. Pois bem. Esse desejo pode ser destruído, apagado, instantaneamente, ou precisa-se de tempo, disso que chamamos "evolução"? Como somos educados atualmente, dizemos que precisamos de tempo, que precisamos aproximar-nos gradualmente do estado ideal, em que não existe o desejo de poder, e a mente se acha totalmente integrada. Isto é, estamos aqui e precisamos chegar lá, a uma certa parte muito distante daqui; existe pois um vão, um intervalo entre as duas situações e por isso temos de lutar, temos de sair daqui para chegarmos lá, e isso exige tempo. Para mim, essa ideia de que se pode destruir, com o tempo, a raiz do desejo, é totalmente falsa. Ou a destruímos imediatamente, ou nunca a destruiremos; se derdes toda a atenção a este assunto, vereis, por vós mesmos, que assim é de fato. Escutai, por favor, não apenas o que estou dizendo, mas também ao que se está passando em vossa mente, enquanto falo — à reação, ao "mecanismo" psicológico em vós despertado pelas minhas palavras, pela minha descrição.
É bem evidente que cada um de nós deseja ser algo; e percebemos que o desejo de ser algo gera antagonismo, arrogância, crime. Percebemos, também, que cria uma estrutura social que incita esse próprio desejo e na qual o indivíduo se apaga, porque sua mente se aprisiona na organização do poder. Percebendo-se esse processo, em sua inteireza, pode o desejo de ser algo desaparecer de todo? É bem certo que a mente só pode encontrar o real quando é capaz de pensar de maneira completa e direta, sem estar influenciada por nenhuma atividade egocêntrica; mas, se a mente está aprisionada nesse desejo tão complexo de ser algo, é-lhe possível libertar-se totalmente? Se vos está bem claro o problema e tudo o que ele implica, podemos continuar. Mas, se dizeis: "Precisa-se de tempo para nos libertarmos do desejo de ser algo" — nesse caso já estais considerando o problema com um preconceito, com uma mente supostamente educada. Vossa educação, ou o Gita, ou vosso instrutor religioso já vos ensinou que se precisa do tempo e, assim sendo, ao vos abeirardes do problema, já levais uma opinião preconcebida a seu respeito.
Ora, é possível a mente eliminar instantaneamente o desejo de ser algo e, em consequência, nunca mais criar um guia, fazendo-se seguidora de alguém? É o seguidor que cria o guia; do contrário, não existe guia nenhum. E, no momento em que vos tornais seguidor, vos tornais também uma entidade imitadora, perdendo, portanto, a individualidade criadora. Pode, pois, a mente eliminar de todo esse espírito de obediência, seu senso do tempo, seu desejo de ser algo? Tudo isso só poderá ser apagado, se se lhe der toda a atenção. Vede bem, por favor: quando prestais atenção completa à questão, observando, percebendo claramente o fato de estar a mente buscando o poder, posição, desejando ser algo — só então podeis ser livre. Vou explicar o que entendo por atenção completa.
A atenção não deve ser forçada, concentrada; a mente não deve ser impelida a prestar atenção a uma coisa. Vede isso, por favor: no momento em que tendes um "motivo" para prestar atenção, não há mais atenção, porque então é mais importante o motivo do que o prestar atenção. Para a total cessação do desejo de ser algo, é necessário prestar toda a atenção a esse desejo. Mas não se lhe pode dar atenção completa, se existe algum "motivo", alguma intenção de apagar o desejo, a fim de obter outra coisa. E nossa mente não foi educada para prestar atenção, porém, antes, para obter da atenção um certo resultado. Só prestais atenção, quando desejais ganhar alguma coisa; mas esse modo de prestar atenção é uma verdadeira obstrução; é importante compreender isso logo de início. Qualquer forma de atenção com um objetivo em vista, se torna desatenção; gera indolência; e a indolência é um dos fatores que impedem a imediata eliminação do desejo a que nos referimos. A mente só pode apagar um certo desejo dispensando-lhe atenção completa; mas não poderá dispensar-lhe atenção completa, se tiver em mira um certo resultado. Esse é um dos fatores da desatenção; outro fator é a "verbalização" ou qualquer espécie de explicação. Isto é, não pode haver atenção, quando a mente está interessada em explicações sobre porque ambiciona poder, posição, prestígio. Quando se buscam explicações da causa de uma coisa, há desatenção; por conseguinte, mediante explicações nunca se encontrará liberdade.
Não haverá atenção enquanto estiverdes comparando os ditos de várias autoridades — Sankara, Buddha, Cristo, X, Y, Z. — a respeito desse problema. Quando vossa mente está repleta do saber de outros, quando está seguindo guias, sanções, nenhuma atenção pode haver. Tampouco pode haver atenção, se estais a julgar ou a condenar; isso é bem óbvio. Se condenais uma coisa, não podeis compreendê-la. E, também nenhuma atenção pode haver quando se tem um ideal, porque o ideal cria dualidade. Percebei isso. O ideal cria a dualidade e ficamos aprisionados — como acontece principalmente neste desgraçado país, onde todos temos ideais. Só se fala sobre o ideal do guru, o ideal da não-violencia, o ideal do amor ao próximo, o ideal de "uma só vida"; e a todas as horas, pelo nosso viver, estamos negando precisamente tal ideal. Porque então não lançarmos fora todos os ideais? No momento em que temos um ideal, temos a dualidade, e no conflito gerado por essa dualidade fica aprisionada a nossa mente. O fato real é que existe o desejo de poder, o orgulho de ser algo, e isso só pode ser eliminado instantaneamente, e não no curso do tempo; isto é, só quando a mente está apercebida do fato e não se deixa distrair pelo ideal. Ideal é distração, causa de desatenção.
Espero estejais dando agora ao problema vossa atenção completa, não porque eu vos digo que o façais, mas porque percebestes por vós mesmos o exato significado do desejo de ser alguma coisa. Se a mente dá toda a atenção ao problema, não cria o oposto; portanto há nela humildade. O fato é que vossa mente anda em busca de poder, posição, mundana ou espiritualmente, causando, assim, toda essa desordem, o caos, a confusão, o sofrimento, existentes no mundo. Quando a mente percebe realmente esse fato — e isso significa dar-lhe atenção completa — vereis então que desaparecerá completamente o orgulho e a arrogância; e essa cessação é um estado todo diferente daquele produzido pelo desejo de ser humilde. A humildade não pode ser cultivada; se cultivada, deixa de ser humildade, sendo, meramente, outra forma de arrogância. Mas se puderdes considerar o problema com toda a clareza e de maneira direta — e isso significa dar-lhe atenção completa — descobrireis que para se apagar o desejo de ser algo, com sua arrogância, vaidade, desconsideração, não se precisa do tempo, porque o desejo se apaga, então, imediatamente. Sois, então, um ente humano diferente, capaz, quiçá, de criar uma sociedade diferente.
Krishnamurti, SétimaConferência em Bombaim
25 de março de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana