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domingo, 8 de abril de 2018

O mecanismo do medo de ser ninguém

O mecanismo do medo de ser ninguém

PARECE-ME que, pelo mundo inteiro, há muito pouco respeito pelo indivíduo; e, sem esse respeito, vê-se o indivíduo totalmente esmagado — como de fato está acontecendo na moderna sociedade. É bem evidente a necessidade de se criar um ambiente social diferente, mas parece que não percebemos quanto é importante que o indivíduo seja livre; isto é, não percebemos a importância da investigação, da busca, da libertação individual. Só o indivíduo encontrará, finalmente, a Realidade; só ele poderá tornar-se uma força criadora, nesta sociedade que se está a desintegrar; e não parecemos compreender quanto é urgente que, como indivíduos, descubramos por nós mesmos uma maneira de vida independente das influências culturais, sociais e religiosas que nos rodeiam. Se percebêssemos a importância do indivíduo, nunca teríamos guias e nunca seríamos seus seguidores. Só seguimos, quando temos perdido a nossa individualidade. Só existem guias quando nós, como indivíduos, estamos confusos e, portanto, incapacitados para pensar claramente nos nossos problemas e sobre eles atuar. Presentemente, não somos indivíduos; somos unicamente um resíduo de influências coletivas, impressões culturais e restrições sociais. Se observardes com muita atenção e cuidado o funcionamento de vossa própria mente, vereis que o vosso pensar obedece à tradição, aos livros, aos guias ou mestres religiosos, o que significa que o indivíduo se obliterou completamente; é bem certo que só o indivíduo pode criar alguma coisa nova.

Ora, por que razão perdemos o respeito ao indivíduo? Muito se fala sobre a importância do indivíduo; todos os políticos, inclusive os da tirânica sociedade coletiva, falam dela, tal qual como os líderes religiosos falam da importância da alma. Mas, porque é que acontece que, praticamente, na vida real, o indivíduo é esmagado e se perde completamente? Não sei se isso representa um problema para algum de vós; mas se agora, nesta tarde, prestarmos suficiente atenção, talvez possamos libertar-nos da massa das influências coletivas — libertar-nos, de fato, para descobrirmos por nos mesmos o que significa sermos indivíduos reais, entes humanos completamente integrados.

Parece-me que uma das razões fundamentais por que deixamos de ser indivíduo se encontra no fato de querermos exercer um certo poder, ainda que seja apenas em nossa casa, ou no edifício de apartamentos, ou dentro de uma sala. Assim como as nações, ao se tornarem poderosas, criam tensão entre si, assim também cada indivíduo humano está perenemente ansiando por ser alguma coisa, em relação com a sociedade; cada um quer ser reconhecido como homem importante, competente burocrata, artista festejado, pessoa espiritual, etc. Todos queremos ser algo, e o desejo de ser algo emana da ânsia de poder. Se examinardes a vós mesmos, vereis que o que desejais é sucesso, não só neste mundo, mas também no próximo mundo, — se existe esse "próximo mundo". Quereis ser aplaudido, e para terdes, esse aplauso, dependeis da sociedade. A sociedade só aplaude os que têm poder, posição, prestígio; e é a vaidade, a arrogância do poder, da posição, do prestígio, o que quase todos estamos buscando. Nosso "motivo" profundo, básico, é o orgulho de realizar, e esse orgulho se afirma de diferentes maneiras.

Ora, enquanto buscamos o poder, em qualquer sentido que seja, é esmagada a verdadeira individualidade — não apenas nossa própria individualidade, mas a de outros. Este me parece um fato psicológico básico, na vida. Quando ansiamos por ser alguém, isso significa que desejamos ser reconhecidos pela sociedade; por conseguinte, nos tornamos escravos da sociedade, meros dentes da máquina social, cessando assim de ser indivíduos. Penso ser esta uma questão fundamental, a que não devemos eximir-nos apressadamente. Enquanto a mente buscar qualquer forma de poder — poder mediante uma seita, poder pelo saber, poder pela riqueza, poder pela virtude — criará invariavelmente uma sociedade que destruirá o indivíduo, porque a mente humana é então enredada e educada num ambiente que estimula à dependência psicológica do sucesso. A dependência psicológica destrói a mente esclarecida, que é sozinha, não corrompida — a única mente capaz de pensar nos problemas de maneira completa, individualmente, independente da sociedade e de seus próprios desejos.

A mente, pois, está perenemente ansiando por ser algo e aumentando, assim, o seu senso de poder, posição, prestígio. Do impulso para ser alguma coisa resultam os guias e seus seguidores, a adoração do sucesso; e por essa razão não existe uma percepção individual profunda da realidade interior. Se se percebe realmente esse mecanismo, na sua inteireza, será então possível cortar pela raiz a busca do poder? Compreendeis o significado desta palavra — "poder"? O desejo de dominar, possuir, explorar, depender de outro — tudo isso está implicado nessa busca de poder. Podem achar-se outras explicações, mais sutis, mas o fato é que a mente humana busca o poder; e, nessa busca do poder, perde-se a sua individualidade.

Ora, como eliminar esse desejo de poder, que gera arrogância, orgulho, vaidade? A mente busca constantemente a lisonja, sua preocupação é de encarecer a si própria, suas atividades são egocêntricas, e como poderá a mente cortar tudo isso pela raiz? Não sei se já pensastes no problema de como nos libertarmos totalmente da ânsia de poder, mas acho que valeria a pena examiná-lo nesta tarde.

Existe o desejo de ser pessoa importante, mundanamente ou espiritualmente. Ora bem. É possível atingirmos e desarraigarmos esta coisa, para nunca mais seguirmos um guia, não termos mais o sentido de nossa própria importância, não desejarmos mais ser alguém, no mundo político ou noutro qualquer? Podemos ser ninguém, mesmo quando a corrente de existência esteja toda a mover-se em sentido contrário e a impelir-nos, desde pequenos, a nos tornarmos alguém? Nossa educação é toda comparativa; estamos sempre a compararmos com alguém, sendo isso, também, ânsia de poder e posição. E é possível nos libertarmos desse espírito de competição, não pouco a pouco, gradualmente, através do tempo, mas completa e instantaneamente, como se destrói uma árvore, cortando-se-lhe a raiz? É possível isso, ou precisamos de tempo para anular o intervalo entre o que é e o que deveria ser?

Parece-me que todos compreendemos o significado desse desejo de ser algo, o qual produz a limitação e destrói a verdadeira individualidade, o percebimento claro; não preciso pois entrar em mais pormenores sobre este assunto, nesta tarde. Pois bem. Esse desejo pode ser destruído, apagado, instantaneamente, ou precisa-se de tempo, disso que chamamos "evolução"? Como somos educados atualmente, dizemos que precisamos de tempo, que precisamos aproximar-nos gradualmente do estado ideal, em que não existe o desejo de poder, e a mente se acha totalmente integrada. Isto é, estamos aqui e precisamos chegar lá, a uma certa parte muito distante daqui; existe pois um vão, um intervalo entre as duas situações e por isso temos de lutar, temos de sair daqui para chegarmos lá, e isso exige tempo. Para mim, essa ideia de que se pode destruir, com o tempo, a raiz do desejo, é totalmente falsa. Ou a destruímos imediatamente, ou nunca a destruiremos; se derdes toda a atenção a este assunto, vereis, por vós mesmos, que assim é de fato. Escutai, por favor, não apenas o que estou dizendo, mas também ao que se está passando em vossa mente, enquanto falo — à reação, ao "mecanismo" psicológico em vós despertado pelas minhas palavras, pela minha descrição.

É bem evidente que cada um de nós deseja ser algo; e percebemos que o desejo de ser algo gera antagonismo, arrogância, crime. Percebemos, também, que cria uma estrutura social que incita esse próprio desejo e na qual o indivíduo se apaga, porque sua mente se aprisiona na organização do poder. Percebendo-se esse processo, em sua inteireza, pode o desejo de ser algo desaparecer de todo? É bem certo que a mente só pode encontrar o real quando é capaz de pensar de maneira completa e direta, sem estar influenciada por nenhuma atividade egocêntrica; mas, se a mente está aprisionada nesse desejo tão complexo de ser algo, é-lhe possível libertar-se totalmente? Se vos está bem claro o problema e tudo o que ele implica, podemos continuar. Mas, se dizeis: "Precisa-se de tempo para nos libertarmos do desejo de ser algo" — nesse caso já estais considerando o problema com um preconceito, com uma mente supostamente educada. Vossa educação, ou o Gita, ou vosso instrutor religioso já vos ensinou que se precisa do tempo e, assim sendo, ao vos abeirardes do problema, já levais uma opinião preconcebida a seu respeito.

Ora, é possível a mente eliminar instantaneamente o desejo de ser algo e, em consequência, nunca mais criar um guia, fazendo-se seguidora de alguém? É o seguidor que cria o guia; do contrário, não existe guia nenhum. E, no momento em que vos tornais seguidor, vos tornais também uma entidade imitadora, perdendo, portanto, a individualidade criadora. Pode, pois, a mente eliminar de todo esse espírito de obediência, seu senso do tempo, seu desejo de ser algo? Tudo isso só poderá ser apagado, se se lhe der toda a atenção. Vede bem, por favor: quando prestais atenção completa à questão, observando, percebendo claramente o fato de estar a mente buscando o poder, posição, desejando ser algo — só então podeis ser livre. Vou explicar o que entendo por atenção completa.

A atenção não deve ser forçada, concentrada; a mente não deve ser impelida a prestar atenção a uma coisa. Vede isso, por favor: no momento em que tendes um "motivo" para prestar atenção, não há mais atenção, porque então é mais importante o motivo do que o prestar atenção. Para a total cessação do desejo de ser algo, é necessário prestar toda a atenção a esse desejo. Mas não se lhe pode dar atenção completa, se existe algum "motivo", alguma intenção de apagar o desejo, a fim de obter outra coisa. E nossa mente não foi educada para prestar atenção, porém, antes, para obter da atenção um certo resultado. Só prestais atenção, quando desejais ganhar alguma coisa; mas esse modo de prestar atenção é uma verdadeira obstrução; é importante compreender isso logo de início. Qualquer forma de atenção com um objetivo em vista, se torna desatenção; gera indolência; e a indolência é um dos fatores que impedem a imediata eliminação do desejo a que nos referimos. A mente só pode apagar um certo desejo dispensando-lhe atenção completa; mas não poderá dispensar-lhe atenção completa, se tiver em mira um certo resultado. Esse é um dos fatores da desatenção; outro fator é a "verbalização" ou qualquer espécie de explicação. Isto é, não pode haver atenção, quando a mente está interessada em explicações sobre porque ambiciona poder, posição, prestígio. Quando se buscam explicações da causa de uma coisa, há desatenção; por conseguinte, mediante explicações nunca se encontrará liberdade.

Não haverá atenção enquanto estiverdes comparando os ditos de várias autoridades — Sankara, Buddha, Cristo, X, Y, Z. — a respeito desse problema. Quando vossa mente está repleta do saber de outros, quando está seguindo guias, sanções, nenhuma atenção pode haver. Tampouco pode haver atenção, se estais a julgar ou a condenar; isso é bem óbvio. Se condenais uma coisa, não podeis compreendê-la. E, também nenhuma atenção pode haver quando se tem um ideal, porque o ideal cria dualidade. Percebei isso. O ideal cria a dualidade e ficamos aprisionados — como acontece principalmente neste desgraçado país, onde todos temos ideais. Só se fala sobre o ideal do guru, o ideal da não-violencia, o ideal do amor ao próximo, o ideal de "uma só vida"; e a todas as horas, pelo nosso viver, estamos negando precisamente tal ideal. Porque então não lançarmos fora todos os ideais? No momento em que temos um ideal, temos a dualidade, e no conflito gerado por essa dualidade fica aprisionada a nossa mente. O fato real é que existe o desejo de poder, o orgulho de ser algo, e isso só pode ser eliminado instantaneamente, e não no curso do tempo; isto é, só quando a mente está apercebida do fato e não se deixa distrair pelo ideal. Ideal é distração, causa de desatenção.

Espero estejais dando agora ao problema vossa atenção completa, não porque eu vos digo que o façais, mas porque percebestes por vós mesmos o exato significado do desejo de ser alguma coisa. Se a mente dá toda a atenção ao problema, não cria o oposto; portanto há nela humildade. O fato é que vossa mente anda em busca de poder, posição, mundana ou espiritualmente, causando, assim, toda essa desordem, o caos, a confusão, o sofrimento, existentes no mundo. Quando a mente percebe realmente esse fato — e isso significa dar-lhe atenção completa — vereis então que desaparecerá completamente o orgulho e a arrogância; e essa cessação é um estado todo diferente daquele produzido pelo desejo de ser humilde. A humildade não pode ser cultivada; se cultivada, deixa de ser humildade, sendo, meramente, outra forma de arrogância. Mas se puderdes considerar o problema com toda a clareza e de maneira direta — e isso significa dar-lhe atenção completa — descobrireis que para se apagar o desejo de ser algo, com sua arrogância, vaidade, desconsideração, não se precisa do tempo, porque o desejo se apaga, então, imediatamente. Sois, então, um ente humano diferente, capaz, quiçá, de criar uma sociedade diferente.

Krishnamurti, SétimaConferência em Bombaim
25 de março de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Pode a mente ultrapassar o mecanismo coletivo?


Pode a mente ultrapassar o mecanismo coletivo?

É muito difícil, segundo penso, distinguir a diferença entre o coletivo e o individual, e descobrir onde termina o coletivo e começa a individualidade; e, também, perceber o significado do coletivo e descobrir se é possível ficar-se livre do coletivo e promover a integração do indivíduo. Não sei se já pensastes, ainda que ligeiramente, a respeito deste problema, que me parece ser um dos problemas fundamentais do mundo, principalmente na época atual, em que tanto se encarece a importância do coletivo. Não só nos países comunistas mas também no mundo capitalista, onde se estão criando “Estados de Bem-Estar”, como é o caso da Inglaterra, se está atribuindo significação cada vez maior ao coletivo. Criam-se fazendas coletivas e cooperativas de toda ordem, e, ao considerarmos tudo isso, ficamos a perguntar-nos qual é o lugar que o indivíduo irá ocupar nesse quadro e se, afinal, o indivíduo existe mesmo.

Sois um indivíduo? Tendes um certo nome, um depósito bancário particular, casa própria, certas características fisionômicas e psicológicas, mas sois realmente um indivíduo? Acho de muita importância considerar bem esta questão, uma vez que só quando existe a incorruptibilidade do indivíduo — de que tratarei mais adiante — há a possibilidade de surgir alguma coisa totalmente nova. Isso significa que cada um precisa descobrir por si mesmo onde termina o coletivo, se ele de fato termina, e onde começa a individualidade — o que suscita todo o problema do tempo. Este assunto é muito complexo e, por ser complexo, precisamos aplicar-nos a ele de maneira simples, direta, sem dar voltas ao redor dele; e, se me é permitido, vou examiná-lo nesta manhã.

Peço licença para sugerir-vos observeis o vosso próprio pensar, enquanto falo, e que não vos limiteis a, escutar meramente, aprovando ou desaprovando o que se está dizendo. Se escutais apenas para concordar ou discordar, com uma superficial compreensão intelectual, então esta palestra e todas as anteriores, serão completamente inúteis. Mas, se sois capaz de observar o funcionamento de vossa própria mente enquanto o vou descrevendo, esse próprio observar produzirá uma ação extraordinária, que não é imposta nem forçada.

Acho de muita importância descubramos cada um de nós, onde termina o coletivo e começa o individual. Ou o nosso pensar — conquanto modificado pelo temperamento pessoal, pelas idiossincrasias de cada um — será totalmente coletivo? O “coletivo” é o conglomerado de condicionamentos vários, nascidos das ações e reações sociais, das influências educativas, das crenças, dogmas e preceitos religiosos, etc. Todo esse mecanismo heterogêneo constitui o coletivo, e se examinardes, se olhardes a vós mesmos, vereis que tudo o que pensais, vossas crenças ou descrenças, vossos ideais ou oposição aos ideais, vossos esforços, vossa inveja, vossos impulsos, vosso senso de responsabilidade social — vereis que tudo isso é resultado do coletivo. Se sois pacifista, vosso pacifismo é o resultado de um certo condicionamento.

Assim, se examinamos a nós mesmos, admiramo-nos de ver quanto estamos integrados no coletivo. No mundo ocidental, onde o cristianismo domina há tantos séculos, sois criados no condicionamento respectivo. Sois educados como católicos ou protestantes, com todas as divisões do protestantismo. E tendo sido educados dessa maneira, crendo em absurdos de toda ordem — no inferno, na punição eterna, no purgatório, no único Salvador, no pecado original e outras coisas mais — estais condicionados por essa educação, e ainda que vos afasteis dessas coisas, no vosso inconsciente permanecerá sempre um resíduo desse condicionamento. Tendes sempre o medo do inferno, ou de não crerdes num certo Salvador, etc.

Assim, se consideramos bem esse extraordinário fenômeno, parecerá um tanto absurdo uma pessoa dizer-se “um indivíduo”. Podeis ter gostos individuais, ter vosso nome próprio, e uma fisionomia completamente diferente da de outro homem, mas o mecanismo do vosso pensar é, em sua totalidade, um resultado do coletivo. Os instintos raciais, as tradições, os valores morais, a extraordinária devoção ao sucesso, a ambição de poder, de posição, de riquezas, geradora de violência — não há dúvida de que tudo isso é resultado do coletivo, uma herança secular. E é possível do meio desse conglomerado, extrair o indivíduo? Ou é impossível de todo? Se levamos a sério esta questão de promover a transformação radical, uma revolução, não é importantíssimo consideremos este ponto fundamental? Porque, só ao homem que é um indivíduo, no sentido em que estou empregando a palavra, ao homem não contaminado pelo coletivo, ao homem que está só — não isolado, mas completamente só, interiormente — só a esse homem a Realidade pode manifestar-se.

Expressando-o diferentemente: Iniciamos as nossas vidas com suposições, postulados; que há ou que não há Deus, que há inferno e céu, que é necessário um certo padrão de relações, uma determinada moral, que deve prevalecer uma determinada ideologia, etc. Com estas suposições, que são produto do coletivo, criamos uma estrutura que chamamos educação, que chamamos religião, e fundamos uma sociedade em que o individualismo brutal prevalece sem freios, ou é mantido sob controle. Esta sociedade está baseada na suposição de que é necessária e inevitável a competição, de que é necessária a inveja, a ambição. Mas, é possível não construirmos sobre suposições de qualquer natureza, mas construirmos ao mesmo tempo que estamos investigando e descobrindo? Se aceitamos o descobrimento feito por outro, nesse caso entramos imediatamente no terreno do coletivo, que é o terreno da autoridade; mas se cada um de nós começar livre de suposições e postulados, então vós e eu edificaremos uma sociedade toda diferente, e esta me parece uma das questões mais importantes da época atual.

Ora, percebendo esse mecanismo na sua inteireza — no nível consciente e bem assim no inconsciente, já que o inconsciente é também resíduo do coletivo — é possível extrairmos, daí o indivíduo? Pode-se pensar, se se despojar o pensar da influência coletiva? Se fostes educado como católico, metodista, batista, ou seja o que for, vosso pensar é o resultado do coletivo, consciente ou inconsciente; vosso pensar é resultado da memória, e a memória é o coletivo. Isto é um tanto complexo e devemos examiná-lo com vagar, sem concordar nem discordar; o que queremos é descobrir.

Quando se diz que há liberdade de pensamento, isso me parece um absurdo completo, porque, do modo como vós e eu pensamos, o pensar é reação da memória, e a memória produto do coletivo, sendo esse coletivo cristão, hinduísta, etc. Nessas condições, nunca haverá liberdade de pensamento enquanto o pensar estiver baseado na memória. Vede, por favor, que isto não é mera lógica. Não o rejeiteis, dizendo: “Ora, isto é puro raciocínio lógico”. Mas não é. Será lógico por acaso, mas eu estou descrevendo um fato. Enquanto o pensamento for reação da memória, que é resíduo do coletivo, a mente terá de funcionar na esfera do tempo, sendo o tempo a continuação da memória de ontem, hoje e amanhã. Para a mente em tais condições haverá sempre a morte, a corruptibilidade e o medo, e por mais que busque algo incorruptível, fora do tempo, nunca o achará, porque o seu pensamento é sempre resultado do tempo, da memória, do coletivo.

Nessas condições, pode uma mente cujo pensamento resulta do coletivo, cujo pensamento é o coletivo, desem­­baraçar-se do coletivo? Quer dizer: Pode a mente conhecer o atemporal, o incorruptível, o que existe sozinho, que não esteja sob a influência de nenhuma sociedade? Não afirmeis nem negueis, não digais “já tive experiência disso” — porque isso nada significa, em se tratando de questão tão complexa como esta. Pode-se ver que há sempre corrupção, quando a mente funciona no coletivo. Poderá ela inventar um código de moral melhor, promover reformas sociais, mas tudo estará sob a influência coletiva e, portanto, será corruptível. Por certo, para descobrir se há um estado incorruptível, atemporal, imortal, a mente tem de estar totalmente livre do coletivo. E ao dar-se a sua completa libertação do coletivo, o indivíduo será anticoletivo? Ou não será anticoletivo mas, sim, funcionará num plano totalmente diferente, que o coletivo poderá repelir? Estais seguindo?

O problema é: Pode a mente ultrapassar o coletivo? Se nenhuma possibilidade existe de ultrapassarmos o coletivo, então temos de contentar-nos com adornar o coletivo, abrir janelas na prisão, instalar uma iluminação melhor, mais banheiros, etc. É nisto que o mundo está interessado, e é a isso que ele chama progresso, condições de vida melhores. Não sou contra o melhoramento das condições de vida, pois seria uma estupidez isso, principalmente por parte de quem vem da Índia, onde se passa fome como em nenhuma outra parte do mundo, excetuada talvez a China, onde tanta gente só toma meia refeição por dia, e mesmo nenhuma, onde há miséria, sofrimento, doença, e a incapacidade para a revolta, já que o povo está a morrer de fome. Assim, pois, nenhum homem inteligente pode ser contra a instauração de melhores condições de vida; mas se é só isso que interessa, então a vida será puramente materialista. E neste caso o sofrimento é inevitável; neste caso estará muito bem que haja ambição, competição, antagonismo, impiedosa eficiência, guerras... toda esta estrutura do mundo moderno, com suas esporádicas reformas sociais. Mas se começarmos a investigar o problema do sofrimento — o sofrimento representado pela morte, pela frustração, pela treva da ignorância — então cumpre examinar essa estrutura, em sua totalidade, e não apenas certas partes dela, como a manutenção de exércitos, as formas de governo, etc., visando a reformas parciais. Ou aceitamos esta sociedade toda inteira, ou a rejeitamos completamente — “rejeitar”, não no sentido de evitá-la, mas de descobrir a sua significação.

Assim, pois, se a mente não achar possibilidade de libertar-se desta prisão do coletivo, então o que pode fazer é só voltar atrás e reformar a prisão. Mas eu acho que tal possibilidade existe, pois seria estúpido demais ficarmos a lutar eternamente dentro da prisão. E como achará a mente um meio de se libertar dessa massa heterogênea de valores e contradições, ambições e impulsos? Enquanto isso não acontecer, não haverá individualidade. Podeis denominar-vos um indivíduo, dizer que tendes uma alma, um, “eu” superior, mas essas coisas são invenções da mente, que faz parte do coletivo.

Veja-se o que está acontecendo no mundo. Um novo grupo do “coletivo” está a negar a alma, a imortalidade, a permanência, a Jesus como único Salvador, etc. Em vista de todo esse conglomerado de asserções e contra-asserções, surge a inevitável pergunta: É possível a mente libertar-se dele? Isto é, é possível ficarmos libertados do tempo, do tempo como memória, memória esta que é produto de determinada cultura, civilização ou condicionamento? Pode a mente, ficar livre dessa memória? Não me estou referindo à memória da técnica de construir uma ponte, da estrutura do átomo, do caminho de casa; esta é a memória “fatual”, e sem ela estaríamos dementes ou doentes de amnésia. Mas pode a mente existir livre da memória psicológica? Pode, sem dúvida, mas só quando não está a buscar segurança. Afinal de contas, como disse ontem, enquanto a mente busca a segurança, seja numa conta bancária, seja numa religião ou em vários gêneros de atividades sociais e de relações, tem de haver violência. O­ homem que possui muito cria a violência; mas o homem que percebe a futilidade de ter muito e se torna eremita, esse também cria violência, porque está buscando a segurança, não no mundo, mas em ideias.

O problema é então este: Pode a mente ficar livre da memória, — não da memória relativa ao conhecimento de fatos, mas da memória coletiva, amontoada através de séculos de crença? Se fizerdes a vós mesmo esta pergunta, com toda a atenção, e não esperardes que eu vos, responda — porque não há resposta — vereis então que, enquanto a mente está buscando a segurança, sob qualquer forma, pertenceis ao coletivo, a uma memória multissecular. E o não buscar a segurança é sumamente difícil, visto que podemos rejeitar o coletivo, mas constituir um novo coletivo, com nossas próprias experiências. Compreendeis? Posso rejeitar a sociedade com toda a sua corrupção, sua ambição, sua avidez e competição, no plano coletivo; mas, depois de rejeitá-la, tenho experiências e cada experiência deixa o seu resíduo. Estes resíduos se tornam também o coletivo, já que constituem uma coleção. Aí encontro a minha segurança, que transmito a meu filho, a meu vizinho, de modo que, mais uma vez, está criado o coletivo, num padrão diferente.

É possível a mente ficar livre da memória do coletivo? Quer dizer, ficar livre da inveja, da competição, da ambição, da dependência, da perene busca do permanente como meio de segurança. Pois só quando há esta liberdade, pode existir o indivíduo. E nela se encontra um estado de espírito, um “estado de ser” completamente diferente. Não há mais possibilidade de corrupção, não há mais o tempo, e para essa mente, que pode ser chamada individual, ou outro nome qualquer, a Realidade surge na existência. Não se pode buscar a Realidade; se o fizerdes, ela se tornará vossa segurança e portanto será totalmente falsa, sem nenhuma significação, como o vosso desejo de dinheiro, a vossa ambição e busca de preenchimento. A realidade tem de vir a vós e não poderá vir enquanto houver a corrupção pelo coletivo. Eis porque a mente deve achar-se completamente só, não influenciada, não contaminada e, portanto, livre do tempo, pois só então pode manifestar-se o imensurável, o atemporal.

Foram-me enviadas muitas perguntas, as quais, infelizmente, não podem ser respondidas todas. Mas fizemos uma seleção das mais típicas, e vou tentar responder à maior parte delas, nesta manhã.

Espero não estejais sendo mesmerizados por mim. Notai, por favor, que o que digo tem significação; não o estou dizendo ao acaso. Estais agora escutando em silêncio. Se este silêncio é apenas o sintoma de que estais dominado por uma certa personalidade ou por ideias, então nenhum valor tem. Mas se vosso silêncio é o resultado natural da atenção com que estais observando os vossos próprios pensamentos, a vossa própria mente, nesse caso não estais sendo mesmerizados, hipnotizados. Portanto, não criareis um novo coletivo, novos seguidores, um novo guia. Se estais realmente atento, interiormente vigilante, descobrireis que estas palestras terão sido úteis, já que vos terão revelado o funcionamento de vossa própria mente. Assim, nada tendes que aprender de outro, e por conseguinte não há mais instrutor, nem discípulo, nem seguidor. Tudo está contido na vossa própria consciência, e aquele que vos descreve essa consciência, não constitui vosso guia. Ninguém se põe de joelhos diante de um mapa ou do catálogo de telefones, ou do quadro-negro em que está escrita uma comunicação. Por conseguinte, não se está criando aqui um novo grupo, um novo guia, uma nova seita — pelo menos no que me diz respeito. Se criais tal coisa, lamento-vos. Mas se observardes a vossa própria mente, cujo conteúdo está escrito no quadro-negro, esta observação vos levará a um descobrimento extraordinário, que produzirá sua ação própria.
Krishnamurti, 28 de agosto de 1955
Realização sem esforço
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O estado mental onde o “eu” está ausente de todo


O estado mental onde o “eu” está ausente de todo

PERGUNTA: O que dizeis parece muito exótico e oriental. Um ensino como o vosso é aplicável à nossa civilização ocidental, que se baseia na eficiência e no progresso, e que está melhorando as condições de vida no mundo inteiro?

KRISHNAMURTI: Achais que o pensamento é oriental ou ocidental? Os costumes podem variar. Eu como com as mãos, na Índia, na China comem com dois pauzinhos, e aqui comeis de modo diferente. Em que difere o pensamento oriental do pensamento ocidental? Existe alguma diferença? Se eu tivesse nascido na América e dissesse as mesmas coisas que estou dizendo agora, di-lo-íeis oriental? Poderíeis, talvez, chamá-lo místico, impraticável, ou excêntrico. Mas os problemas são os mesmos, seja na Índia, seja no Japão, seja aqui. Nós somos entes humanos, e não asiáticos e americanos, russos e alemães, comunistas e capitalistas. Todos temos os mesmos problemas humanos.

Pois bem. O que estou dizendo é, sem dúvida, tão aplicável aqui, como na Índia. A violência é um problema tanto vosso como da Índia. O problema das relações, do amor, da beleza, o problema de criar um estado mental em que haja paz, de criar uma sociedade que não seja destrutiva de si própria, bem como de outras — tudo isso, evidentemente, interessa a cada um de nós, quer vivamos no Oriente, quer no Ocidente. Tendes aqui o problema da organização de um exército, que é um índice da deterioração de uma sociedade, porquanto as próprias bases de um exército são a autoridade, o nacionalismo, o desejo de segurança; e há exatamente o mesmo problema na Índia, no Japão, na Ásia toda. Assim sendo, esta arbitrária divisão do pensamento em “oriental” e “ocidental” não existe para o homem que está investigando realmente. O homem que está condicionado por uma maneira de ver ou filosofia oriental, e vos diz como viver de acordo com esse condicionamento, esse homem, sem dúvida, está dividindo o pensamento em oriental e ocidental. Mas, nós estamos falando de coisa inteiramente diversa, ou seja, do libertar a mente de todo e qualquer condicionamento, e não, do moldá-la de acordo com uma filosofia oriental, o que é muito infantil.

O que estamos tentando fazer é investigar juntos a extraordinária complexidade das nossas vidas, para descobrir se podemos considerar esses complexos problemas com toda a simplicidade; mas não se pode considerar esses problemas, com simplicidade, a menos que compreendamos a nós mesmos. O “eu” é uma entidade extraordinariamente complexa, com uma infinidade de desejos contraditórios. Vivemos numa guerra perene dentro em nós mesmos, e esse conflito interior se precipita em atividades exteriores. Compreender o “eu”, tanto consciente como inconsciente, é uma tarefa enorme, e ele só pode ser compreendido dia por dia, momento por momento. Ele é um livro sem fim e, por conseguinte, não é uma coisa que se pode concluir um dia.

Nessas condições, se se puder escutar o que se está dizendo, não na qualidade de americano, europeu ou oriental, mas como um ente humano diretamente interessado nestes problemas, então, todos juntos, haveremos de criar um mundo diferente; seremos então verdadeiros entes religiosos. Religião é a busca da Verdade, e para o homem religioso não há nacionalidade, nem pátria, nem filosofia particular; esse homem não segue ninguém, e por conseguinte é um verdadeiro revolucionário, no sentido mais profundo da palavra.

PERGUNTA: A placidez que experimentamos, em várias formas de expressão própria, é uma ilusão, ou esse sentimento de preenchimento está relacionado com o estado criador de que falais?

KRISHNAMURTI: Existe tal coisa — preenchimento pessoal? Aceitamos a suposição de que ela existe, não é verdade? Se sou artista, acho que devo preencher-me; se sois escritor, quereis preencher-vos. Todos estamos lutando para nos preenchermos, de diferentes maneiras — por meio da família, dos filhos, do marido, da mulher, das posses, das ideias. Se sois ambicioso, quereis preencher a vossa ambição, porque, do contrário, vos sentireis frustrado, e na frustração há sempre sofrimento. Todos nós estamos esforçando por preencher-nos, mas nunca perguntamos se realmente existe preenchimento. Sem dú­vida, o homem que está a buscar o preenchimento vive atormentado pela frustração. Isso é bem compreensível, não achais? Se estou sempre a tentar preencher-me, por meio de meu filho, minha mulher, de uma ideia, de atividades, está sempre a perseguir-me a sombra da frustração e do medo. Assim, se desejo compreender o medo, a frustração, a agonia das complicações psicossomáticas, e tudo o mais, preciso examinar de maneira completa essa ideia da possibilidade de preencher-me, porque nela está presente do “eu”, com seu desejo de “vir a ser” alguma coisa. Não é bem provável que o “eu” seja uma ilusão, ainda que seja uma realidade como entidade operante? Para o homem ambicioso, competidor, ganancioso, invejoso, o “eu” não é ilusório, mas uma coisa muito real. Mas para o homem que se põe a investigar a fundo este problema, que deseja realmente compreender o que é a Paz — não a paz pelo terror, a paz dos políticos, não a placidez da vaidade satisfeita, resultante da realização de nossas ambições, mas aquela paz em que não existem rivalidades, em que não existe luta para se ser alguma coisa — a esse homem vem a experiência do “ser absolutamente nada”, que é um estado criador atemporal. O que chamamos ação criadora é um processo que consiste em aprender uma técnica e expressá-la; mas eu falo de coisa muito diversa — da mente de onde o “eu” está ausente de todo.

Krishnamurti, 27 de agosto de 1955
Realização sem esforço
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Por que tememos “ser nada”?


Por que tememos “ser nada”?

Um dos nossos problemas mais sérios, quer-me parecer, é a questão da violência e nosso desejo de paz. Não creio que se possa achar a paz, sem se compreender completamente a anatomia da violência. E a paz não é uma coisa oposta à violência; é um estado totalmente diferente, que, por conseguinte, não pode ser concebido por uma mente toda entranhada de violência. Como a vida da maioria de nós se escuda na violência, e o nosso pensamento, pela maior parte, é pautado pela violência, acho de suma importância compreender este problema, que é muito complexo e requer penetração e discernimento fora do comum; e, nesta tarde, é meu desejo examiná-lo.

É muito estranho que nenhuma das religiões organizadas, excetuados talvez o budismo e o hinduísmo, tenha concorrido para acabar com as guerras e feito cessar este espantoso antagonismo existente entre os homens. Pelo contrário, certas dessas chamadas religiões têm instigado guerras e se tornado responsáveis por horrorosos morticínios de seres humanos. Se examinamos a nossa vida de cada dia, vemos que está cheia de violência; e por que razão somos violentos? De onde nasce a violência, e é realmente possível extingui-la? A meu ver, só se pode chegar ao fim da violência, fazê-la cessar, eficaz e radicalmente, quando se conhece a fonte de onde brota a violência. E desejo pedir-vos que não vos limiteis a escutar minha descrição da violência, mas que, principalmente, no desenvolver desta palestra, observeis os movimentos do vosso próprio pensar, para, com a ajuda da descrição, “experimentardes” diretamente os fatores que se ocultam por detrás da palavra “violência”.

Porque somos violentos, não só como raça, mas também como indivíduos? Não sei se alguma vez já vos fizestes esta pergunta. E com que atitude nos abeiramos da questão da violência, quando a encaramos, dela estamos cônscios, quando pensamos a seu respeito? É certo que a maioria das pessoas diz que a violência não pode ser evitada, que somos educados nesta sociedade que nos condiciona e estimula a ser violentos — e, dessa maneira, passamos mui sucinta e rapidamente por cima do problema. Mas vejamos se não podemos descer mais fundo, para investigar o problema e descobrir porque é que cada um de nós tem essa estranha tendência para a violência, e se é possível acabar com ela, não superficialmente, mas fundamentalmente, profundamente.

Nossa civilização, é bem óbvio, está baseada na violência — não só no mundo ocidental, mas também no Oriente. A sociedade estimula à violência, toda a nossa estrutura econômica, social e religiosa, nela se baseia. Não estou empregando a palavra “violência” apenas no sentido superficial de manifestação de cólera ou animosidade, porém abarcando com ela todo o problema da ambição, da competição, do desejo de poder, por parte de cada um, que gera inevitavelmente a violência. Tem de haver violência enquanto estou a competir com outro, enquanto sou ambicioso, ganancioso — ganancioso, não apenas no sentido mundano da avidez de possuir certas coisas, mas ganancioso num sentido mais profundo da palavra, ou seja o de sermos impelidos pelo desejo de nos tornarmos alguma coisa, de dominar, ter segurança, ocupar uma posição inatacável.

Assim, enquanto buscamos o poder, sob qualquer forma, não pode deixar de haver violência. Por favor, não digais: “Numa civilização que está baseada na violência, que posso eu fazer como indivíduo?” Acho que esta pergunta será respondida, se puderdes escutar o que estou dizendo, em vez de perguntardes o que se deve fazer. O “fazer” não é importante. Acho que a ação vem espontânea, quando compreendemos, na sua inteireza, o complexo problema da violência. O impulso para agir, com relação à violência, sem se compreender o desejo de ser algo, o desejo de impor-se, de dominar, de “vir a ser”, é uma verdadeira infantilidade. Mas, se ao contrário, somos capazes de compreender, no seu todo, o mecanismo da violência, e perceber a verdade respectiva, penso que então esse próprio percebimento produzirá uma ação não premeditada e, por conseguinte, genuína. Não sei se me estais seguindo.

Vede o que está acontecendo no mundo. Todo político fala de paz, e ao mesmo tempo, com seus atos, está preparando a divisão, o antagonismo, a guerra. E a mim me parece importantíssimo que aqueles de nós que sentem muito interesse por estas questões compreendam a verdade contida no problema, sem perguntarem “o que fazer”; porque, se compreendemos a verdade que o problema encerra, esta própria percepção do que é verdadeiro precipitará uma ação que não é vossa nem minha, e cujo alcance nem vós nem eu podemos descortinar ou prever.

É um fato bem evidente que tudo o que fazemos neste mundo, social, econômica e religiosamente, está baseado na violência, isto é, no desejo de poder, posição, prestígio, o que implica ambição, vontade de realização. Os gigantescos edifícios que construímos, os templos colossais, são índices desse senso de poder. Não sei se já vos detivestes a contemplar essas soberbas construções e qual a vossa reação diante delas. Poderão ter beleza, mas para mim a beleza é uma coisa totalmente diferente. Porque a beleza exige sobriedade, e um estado de completo abandono, passividade, e esse estado não pode existir onde está o espírito da ambição a expressar-se em realizações espetaculares. Onde há sobriedade, está a simplicidade, e só a mente simples é capaz de abandono (passividade). Desse abandono é que vem o amor. Este estado é a beleza.

Mas nós o desconhecemos totalmente. Nossa civilização, nossa cultura, baseia-se na arrogância, no espírito de realizarão e, em sociedade, estamos a esganar-nos uns aos outros, competindo brutalmente, para realizar, adquirir, dominar, tornar-nos alguém. Eis evidentes fatos psicológicos.

Agora, porque existe este estado de violência? E, reconhecendo a sua existência, somos capazes de transcendê-lo? Se o formos, acho que então estaremos aptos a penetrar em algo que é completamente diferente. Consideremos, por exemplo, o desejo de dominar. Porque queremos dominar? Em primeiro lugar, estamos apercebidos, nas nossas relações e na nossa atitude perante a vida, desse espírito de domínio, esse espírito que aspira ao poder, à posição? Se estamos apercebidos dele, de onde provém ele? Compreendeis o que estou perguntando? Se pudermos descobrir de onde provém o espírito de domínio, esse descobrimento poderá responder à pergunta “Porque somos violentos?”. Todos somos violentos, no sentido de que todos nós, de diferentes maneiras, desejamos ser alguém; somos todos dados à competição, ambiciosos, gananciosos, desejosos de domínio. Tais são os sintomas exteriores de um estado interior; e interessa-nos descobrir qual é esse estado interior que nos impele a proceder assim. Estamos apercebidos, em algum grau, desse estado, ou apenas nos estamos ajustando a um padrão moral, como indivíduos ideologicamente não-violentos, não-ambiciosos, sem investigarmos realmente a fonte, a raiz das nossas ações? Se isso nos for possível, então poderá ser completamente diferente a nossa maneira de proceder, com relação ao problema da violência. Tende, pois, a bondade de escutar o que estou dizendo, sem a atitude de quem exclama “Oh! é só isso?” — porém, antes, deixai-me oferecer-vos uma oportunidade, de autodescobrimento. Se, com a ajuda do que estou dizendo, puderdes descobrir, experimentar realmente a coisa, por vós mesmos, então esta palestra terá um efeito extraordinário.

Porque sou violento? Preciso compreender isso. Vejo que sou violento porque, socialmente, religiosamente, existe esse extraordinário impulso para ser alguma coisa. Esse impulso é um fato. No mundo dos negócios quero ser; mais rico do que sou, mais capaz do que outros, “estar de cima”, e no chamado mundo espiritual estou seguindo uma autoridade que me ajudará a tornar-me alguma coisa, lá, naquele mundo. Vejo, pois, que minhas atividades, meus pensamentos, minhas relações se baseiam todas na vontade de domínio, na dependência. Quando preciso de apoio, tenho de seguir uma autoridade, o que gera violência.

Ora, desejo compreender integralmente o mecanismo da violência, e não apenas ajustar-me a um padrão social, porque isso é coisa superficial e completamente desinteressante, Desejo descobrir se a mente pode ficar, de todo, livre da violência, se esse mecanismo pode ser erradicado da minha mente. Isso me interessa deveras, e quero averiguá-lo. Percebo que o mero ajustamento a um padrão diferente, dos desejos, reclamos e influências superficiais, não resolve o problema. O substituir uma estrutura social por outra, o erguer uma sociedade comunista no lugar de uma sociedade capitalista, não nos tornará livres da dominação e da violência. Percebendo isso, quero investigar em mim mesmo, a fim de descobrir qual é a fonte de todos esses extraordinários impulsos, exigências e atividades que geram a animosidade e a violência.

Porque sou violento, dado à competição, ambicioso, ganancioso? Porque existe em mim esta luta constante para ser, “vir a ser”? É bem evidente que estou a fugir de alguma coisa, pelo caminho da ambição, das aquisições, do desejo de alcançar grandes êxitos. Estou com medo de alguma coisa, medo que me está obrigando a essas atividades. O medo é um estado de fuga. Assim, estou procurando saber sobre aquilo de que realmente sinto medo. Não estou por ora considerando a questão do “medo do escuro”, do medo à opinião, ao que outra pessoa diga ou não diga a meu respeito, porque são muito superficiais essas coisas. Estou interessado em descobrir o que é que, fundamentalmente, me está fazendo medroso, me está impelindo a ser ambicioso, competidor, ganancioso, invejoso e criando, assim, animosidade, etc.

Pensai junto comigo, por favor. Em primeiro lugar, parece-me que somos criaturas muito solitárias. Sinto-me muito só, interiormente vazio, e não gosto desse estado, tenho-lhe medo, e portanto o evito, fujo dele. Esse próprio fugir gera medo, e para evitar o medo entrego-me a atividades várias. Existe evidentemente esse vazio, em mim, em vós, do qual a mente está a fugir por meio da ação, da ambição, do desejo de ser alguém, de adquirir mais saber — enfim, pela violência sob todos os seus aspectos. Mas pode a mente abster-se de fugir e olhar de frente o seu vazio, esse extraordinário sentimento de solidão, que é a expressão autêntica do “eu”? — visto que o “eu” é a entidade, a consciência que, quando não está em movimento, é vazia. Compreendeis o que estou explicando? Se não está claro, expô-lo-ei de outra maneira.

Afinal de contas, o “ego”, o “eu”, se expressa na ambição, no desejo de aquisição, na inveja, no ser violento e no lutar para ser não-violento, etc. Tudo isso são expressões do “eu”; e, reconhecendo-as como tais e investigando-as profundamente, vejo também que essas atividades do “eu” resultam justamente do seu extraordinário sentimento de vazio. Não sei se tendes notado que, quando seguimos as pegadas do “eu”, todos os seus movimentos, chegamos ao ponto em que a mente se torna perfeitamente apercebida, do “eu” como entidade completamente vazia; mas a mente, em verdade, não quer ver esse vazio, preferindo voltar-lhe as costas, fugir.

Ora, se sou capaz de compreender o que é esse vazio, então é bem provável que eu possa resolver o problema da violência. Mas, para compreender o que é o vazio, preciso olhá-lo, e não posso olhá-lo se estou fugindo. É justamente a fuga que causa o medo e precipita a ação da inveja, da competição, da crueldade, da inimizade, e tudo o mais. Assim sendo, pode a mente olhar essa coisa, de que está fugindo por meio da ação? Espero que me esteja fazendo claro.

Não tendes consciência de um estado de solidão, de vazio? Não estamos considerando o que deveis fazer a respeito desse estado. Foi esse “que se deve fazer?” que produziu este mundo estúpido e caótico. Estou indagando o que há atrás, do desejo de fazer alguma coisa — o que é dificílimo de descobrir, visto que a mente está sempre evitando esse fator central. Mas se a mente for capaz de ficar apercebida, totalmente, de estar vazia, solitária — o que significa o completo descobrimento das atividades do “eu”, que a levaram àquele estado — vereis que toda ação sem tal compreensão há de precipitar, necessariamente, a violência, sob diferentes formas. O ser-se um mero pacifista, ou ideologista, pró-isto e contra-aquilo, não resolve o problema. O homem que se exercita na não-violência não resolveu de modo nenhum o problema da violência; está meramente a praticar uma ideia, sem ter investigado os fatores fundamentais, de onde se origina toda ação.

Observai, por favor, a vós mesmos, não vos limitando a seguir a minha descrição. Pode a vossa mente estar apercebida daquele vazio, sem fugir dele? É porque vos sentis vazio e só, que necessitais de um companheiro, que quereis depender de alguém, e essa dependência cria a autoridade, que seguis; e a própria circunstância de se estar seguindo uma autoridade, já é um indício de violência. Pode a mente, ao perceber a verdade a esse respeito, deter a sua fuga e olhar a sua própria vacuidade? Compreendeis o que significa “olhar”? Não podeis olhar para aquele vazio se lhe tendes medo, se desejais evitá-lo; só podeis ter conhecimento, pleno dele, quando não há espírito de condenação. Segui com toda a atenção o que estou dizendo. Estou investigando com todo o vagar, propositadamente, porque desejo que seja simultânea a comunhão e a compreensão entre nós.

Estou cônscio de estar só e vazio, e estou, a observar esse vazio; mas não; posso observá-lo se o condeno. A condenação é justamente uma distração, que estorva o observar. Ora, posso observar o vazio, tomar conhecimento dele, sem lhe dar um nome? Compreendeis? E, quando não lhe dou nome, o observador é então diferente do vazio a que está observando? É só quando o observador lhe dá nome, que ocorre a separação, não é verdade? Compreendeis? Ainda não?! Vou simplificá-lo mais ainda.

Quando digo “estou irritado”, estou dando nome a uma certa sensação ou reação, e esta própria, circunstância cria uma dualidade, não achais? Mas, se não dou nome à sensação, então essa coisa sou eu mesmo. Entendeis? Vede: dou nome a um sentimento porque minha mente está exercitada em reconhecer, em rotular; mas se a mente não põe rótulo em coisa alguma, desaparece então a separação entre o observador e a coisa observada. Por outras palavras, quando não se dá nome a uma coisa, só há um único estado, e nesse estado não existe entidade separada, para fazer algo a respeito dessa coisa. A mente — que é violenta, por natureza — já não está operando com relação a uma coisa que deseja compreender, e por conseguinte a sua atividade cessa.

Vede por favor que isto não é uma asserção intelectual. Não digais que é “alto demais”, abstrato demais, ou que é absurdo, etc. Estou investigando, passo a passo, a anatomia da violência. Nossa estrutura social está baseada na violência, não só a violência entre as nações, pois individualmente estamos em guerra uns com os outros, competindo e praticando crueldades. Ora, se desejo compreender o problema inteiro, cumpre-me compreender as atividades da mente em relação a essa coisa a que chamo “vazio”; e no momento em que surge a compreensão, não mais desejo ser coisa alguma. Entendeis? É o desejo de ser algo que gera a inimizade e a violência. O idealista que deseja criar uma Utopia perfeita é, por natureza, violento. O homem que está praticando a não-violência é um ente humano violento, porque, em verdade, não compreendeu o problema; está atendendo a ele superficialmente.

Vejo, pois, que enquanto a mente está operando em termos de ambição ou não-ambição, ela cria necessariamente o caos, e lutas, e sofrimentos, para si própria e para outros, E se, aprofundando mais o problema, a mente compreende todo o mecanismo relativo a esse impulso para ser alguma coisa, então, inevitavelmente, ela chegará ao ponto em que perceberá que está a procurar um meio de fugir ao “ser nada”, que é um estado de vazio. E posso compreender esse vazio? Pode a mente penetrá-lo, prová-lo, senti-lo? Por certo, a mente não poderá compreender essa coisa extraordinária que chamamos “vazio”, “solidão”, enquanto estiver, de alguma maneira, a condenar, enquanto desejar rejeitá-lo, dominá-lo ou ultrapassá-lo. A mente rejeitará sempre esse estado, enquanto estiver a dar-lhe nome; e o reconhecer, o dar nome, é justamente o “mecanismo” peculiar da mente. Afinal, não podeis pensar sem símbolos, sem ideias, sem palavras. E pode a mente deixar de “verbalizar”? Pode acabar com esse mecanismo e considerar aquilo a que chamava “vazio”, sem lhe dar nome ou criar um símbolo tirado da imaginação? E quando deixa de verbalizar, o estado a que chamava “vazio” é então diferente dela própria? Não é, por certo. O que há então é só um estado, em que não há verbalização, não há dar nome, e por conseguinte em que terminou aquela atividade da mente, que separa, que compete, que gera antagonismo. Nesse estado se verifica um movimento completamente diferente. Não há mais violência. Há uma delicadeza, que não pode ser compreendida pela mente que diz “tenho de ser delicado”. A volição cessou, de todo — porque a vontade é também produto da violência.

Krishnamurti, 27 de agosto de 1955
Realização sem esforço
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terça-feira, 13 de agosto de 2013

A regeneração está no despertar da inteligência

Pergunta: Como pode a regeneração individual trazer, sozinha e imediatamente, o bem-estar coletivo da grande maioria, como se faz necessário em toda a parte?

Krishnamurti: Pensamos que a regeneração individual é oposta à regeneração coletiva. Não estamos pensando em termos de regeneração, mas apenas em termos de regeneração individual. A regeneração é anônima. Enquanto penso na regeneração individual, como oposta à coletiva, não há relação entre os dois; mas se lhes interessa a regeneração, não individual, mas a regeneração, simplesmente, notarão então a presença de uma força, uma inteligência inteiramente diversa, em ação; porque, afinal de contas, o que é que nos interessa? Qual é a questão que nos preocupa, profunda e fundamentalmente? Pode uma pessoa reconhecer a necessidade de uma ação conjunta do homem para a salvação do homem, perceber que a ação coletiva é necessária para a produção de alimentos, de roupas e moradia. Isso requer inteligência, e a inteligência não é individual, não é deste partido nem daquele, desta ou daquela nação. Se o indivíduo busca a inteligência, esta há de ser coletiva. Mas, infelizmente, não estamos em busca da inteligência, não estamos em busca da solução do problema. Temos teorias com relação aos nossos problemas, métodos de resolvê-los, e os métodos se tornam individuais ou coletivos. Se você e eu estamos em busca de uma forma inteligente de nos aplicarmos ao problema, não somos nem coletivos nem individuais; só nos interessa, então a inteligência, que há de resolver o problema.

Que é coletivo, que é massa? São vocês, em relação com outra pessoa. Isso não é uma simplificação exagerada; porque nas minhas relações com vocês eu constituo uma sociedade; você  e eu criamos juntamente uma sociedade, em nossas relações. Sem essas relações não existe inteligência, não existe cooperação, da parte de vocês ou da minha parte, que é inteiramente individual. Se eu busco a minha regeneração e vocês buscam a sua, o que acontece? Estamos seguindo em direções opostas.

Se estamos ambos interessados na solução inteligente de todo o problema, porque esse problema é nossa principal preocupação, nesse caso, o que nos interessa, não é como eu considero e como vocês o consideram, qual seja o meu caminho ou qual seja o caminho de vocês. Não nos interessam fronteiras e preconceitos econômicos, nem direitos adquiridos e as coisas insensatas que nascem junto com esses direitos adquiridos. Então, vocês e eu não somos coletivos nem individuais; realiza-se essa integração coletiva, que é anônima.

O interrogante, porém, deseja saber como se deve agir imediatamente, o que fazer no momento imediato, de modo que sejam resolvidas as necessidades do homem. Quer me parecer que não existe tal solução. Não há remédio moral de ação imediata, apesar das promessas de políticos. A solução imediata é a regeneração do indivíduo, não em proveito próprio, mas a regeneração que é o despertar da inteligência. Inteligência não é coisa de vocês ou minha — é inteligência. Julgo importante que se perceba isso a fundo. Então, a nossa ação política ou individual, coletiva ou de outra natureza, será totalmente diferente. Perderemos a nossa identidade; não nos identificaremos com coisa alguma — nossa pátria, nossa raça, nosso grupo, nossas tradições coletivas, nossos preconceitos. Perderemos todas as essas coisas, porquanto o problema exige que percamos nossa identidade, para o resolvermos. Mas isso requer compreensão, compreensão total do problema.

Nosso problema não é o problema do "pão de cada dia"; nosso problema não é só comer, vestir e morar; é mais profundo do que isso. É um problema psicológico, o problema do porque o homem se identifica com alguma coisa, pois é a identificação com um partido, com uma religião, com o conhecimento, que está nos desunindo. E essa identidade só pode ser dissolvida quando, psicologicamente, todo o processo de identificação, o desejo, o motivo, é compreendido claramente.

Assim, é inexistente o problema do coletivo ou do individual, quando estamos em busca da solução de determinado problema. Se vocês e eu estamos interessados numa coisa qualquer, se estamos vivamente interessados na solução do problema, não nos identificamos com outra coisa. Mas, infelizmente, visto que não estamos vivamente interessados, nós nos identificamos; e é essa identificação que está nos impedindo de resolver este vasto e complexo problema.


Jiddu Krishnamurti — 20 de janeiro de 1952 – Quando o pensamento cessa

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Por que tememos o anonimato?

"Por que será que ansiamos por sermos reconhecidos, por nos darem importância, por sermos incentivados? Por que nos prendemos ao nosso exclusivismo de nome, posição, aquisições? Será o anonimato degradante? E ser desconhecido,desprezível? Por que nós buscamos o famoso, o popular?

Por que não ficamos satisfeitos em ser nós mesmos? Será que temos tanto medo e vergonha do que somos que o nome, a posição e as aquisições se tornam muito mais importantes?

É curioso o quão forte é o desejo de ser reconhecido, ser elogiado. Na agitação da batalha o indivíduo faz coisas incríveis pelas quais é homenageado; torna-se um herói por matar um semelhante.

Por meio de privilégios, esperteza ou capacidade e eficiência, a pessoa chega a algum lugar perto do topo – embora o topo jamais seja o topo, pois sempre há mais e mais na embriaguez do sucesso.

O país ou a empresa é você mesmo; os assuntos dependem de você, você é o poder. A religião organizada oferece posição, prestígio e respeito; lá também você é alguém, separado e importante. Ou, então, você vira o discípulo de um professor, de um guru ou Mestre, ou coopera com eles em seu trabalho. Você ainda é importante, você os representa, compartilha da responsabilidade, você dá e outros recebem. Embora através de seus nomes, você ainda é agente. Você pode vestir uma tanga ou a túnica do monge, mas é você que está fazendo o gesto, é você que está renunciando.

De um jeito ou de outro, sutil ou grosseiramente, o Eu é alimentado e sustentado. À parte de suas atividades anti-sociais e prejudiciais, por que o Eu te de se preservar?

Embora estejamos em agitação e dor, com prazeres transitórios, por que o Eu se prende a recompensas exteriores e interiores, a buscas que, inevitavelmente, trazem dor e infelicidade? A sede por atividade positiva como o oposto da negação faz com que nos empenhemos para ser; nosso empenho faz com que nos sintamos vivos, sintamos que existe um propósito em nossas vidas, que gradualmente ficaremos livres das causas do conflito e da dor.

Pensamos que, se nossa atividade parar, nós seremos nada, estaremos perdidos, a vida não terá absolutamente sentido; então prosseguimos em conflito, em confusão, em antagonismo. Mas estamos também conscientes que há algo mais, que existe uma outra coisa que está acima e além de toda essa infelicidade. Assim, estamos em constante batalha interna conosco.

Quanto maior a exibição externa, maior a pobreza interna; mas a libertação dessa pobreza não é a única. A causa desse vazio interno é o desejo de tornar-se; e, faça o que fizer, esse vazio jamais poderá ser preenchido. Você pode fugir dele de um modo simples ou com refinamento; mas ele está tão perto de você quanto sua sombra. Você pode não querer olhar em seu vazio, mas, apesar disso, ele está lá.

Os adornos e as renúncias que o Eu adota jamais conseguem encobrir essa pobreza interior. Por suas atividades, internas e externas, o Eu tenta encontrar o enriquecimento, chamando-o de experiência ou dando a ele um nome diferente segundo sua conveniência e recompensa.

O Eu não pode jamais ser anônimo; ele pode usar um novo traje, dotar um novo nome, mas a identidade é sua própria substância. Esse processo de identificação impede a percepção de sua própria natureza.

O processo cumulativo da identidade constrói o Eu, positiva ou negativamente; e sua atividade é sempre fechada em si, por mais amplo que seja o cercado. Cada esforço do Eu de ser ou não ser é um distanciamento do que ele é. À parte de seu nome, seus atributos, idiossincrasias e posses, o que é o Eu? Existe o “mim”, o Eu, quando suas qualidades são retiradas? É esse medo de ser nada que impele o Eu para a atividade; mas ele é nada, é um vazio.

Se formos capazes de enfrentar esse vazio, ficar com essa solidão dolorosa, então todo o medo desaparecerá e uma transformação fundamental acontecerá. Para que isso aconteça deve haver a experiência daquele nada – que será impedida se houver um experienciador.

Se houver um desejo pela experienciação daquele vazio a fim de superá-lo, ir acima e além dele, aí não haverá experienciação; pois o Eu, como uma identidade, permanece. Se o experienciador tiver uma experiência, não existirá mais o estado de experienciador.

É a experienciação do que é, sem nomeá-lo, que traz a liberdade para o que é."

Jiddu Krishnamurt

terça-feira, 28 de agosto de 2012

É possível ser nada?

PERGUNTA: Muitas vezes falais do viver, do experimentar, e, no entanto, também falais de sermos como o Nada. Que estado é esse de ser conscientemente tal como o Nada? Tem isso alguma relação com a humildade, com o estar aberto à graça de Deus?

KRISHNAMURTI: Ser alguma coisa, conscientemente, não significa estar livre. Se estou cônscio de ser não ávido, de não estar sujeito à cólera, por certo não estou livre da avidez nem da cólera. A humildade é uma coisa de que não podemos estar cônscios. Cultivar a humildade é cultivar a expansão egoísta em sentido negativo. Por conseguinte, toda virtude que é deliberadamente cultivada, praticada, vivida, não é, evidentemente, virtude. É uma forma de resistência; é uma forma de expansão do “eu”, que tem sua peculiar satisfação. Mas não é virtude. A virtude é apenas uma liberdade, na qual se descobre o real. Sem a virtude não há liberdade. A virtude não é um fim em si. Ora, não é possível, pela esforço deliberado e consciente, ser tal como o nada, porque nesse caso trata-se, mais uma vez, de algo que se conseguiu. A inocência não é o resultado de um cultivo cuidadoso. Ser tal como o nada é uma coisa essencial. Assim como uma taça só é útil se está vazia, assim também é só quando somos tais como o nada, que é possível receber-se a graça de Deus, da verdade, ou do que quiserdes. É possível ser “nada”, no sentido de coisa conseguida? Podeis conseguir isso? Assim como construístes uma casa, ou juntastes dinheiro, podeis conseguir também isso? Se vos sentais a, meditar sobre o “nada”, repelindo conscientemente todas as outras coisas, fazendo-vos receptivo, isso é uma forma de resistência, não achais? É uma ação deliberada da vontade, e a vontade é desejo: e quando desejais ser “nada”, sois já alguma coisa. Vede por favor a importância que isso tem: Quando desejais ser coisas positivas, bem sabeis o que isso implica: luta e dor; e por isso vós as rejeitais e dizeis para vós mesmos: “Agora quero ser nada”. O desejo é ainda o mesmo, é o mesmo processo noutra direção. A vontade de ser “nada” é como a vontade de ser alguma coisa. O problema, portanto, não é como “ser nada” ou “ser alguma coisa”, mas, sim, de compreender o processo integral do desejo, a ânsia de ser ou de não ser. Nesse processo, a entidade que deseja é diferente do desejo. Não dizeis “O desejo sou eu”, mas, sim. “Estou desejoso de ser alguma coisa”. Há por isso uma separação entre a pessoa que experimenta, o pensante. e a experiência, o pensamento. Por favor, não tomeis isso num sentido metafísico, num sentido difícil. Podeis considerar a coisa de maneira muito simples — simples no sentido de que é possível a cada um achar o caminho certo.

Enquanto tendes o desejo de “ser nada”, sois alguma coisa. E esse desejo de ser algo vos divide em “experimentador” e “experiência”, e em tais circunstâncias não há possibilidade de se experimentar. Porque, no estado experimentar, não há nem o “experimentador” nem a “experiência”. Ao experimentardes uma coisa, não estais pensando que estais a experimentar. Quando sois verdadeiramente feliz, não dizeis “sou feliz”. No momento em que o dizeis já não há o estado. Nosso problema, portanto, não é “com ser nada”, o que, com efeito, é infantil, nem de aprendermos um novo fraseado para tentarmos tornar-nos esse; mas sim, por que maneira chegaremos a compreender o processo integral do desejo, do ansiar. E esse processo é tão sutil, tão complexo, que precisamos chegar-nos a ele com toda a simplicidade – e não com todos os conflitos da condenação, da justificação, do que deve ser ou do que não deve ser, de como deve ser destruído, ou sublimado, coisas essas que aprendestes nos livros e nas organizações religiosas. Se podemos por de parte  tudo isso e, em silêncio, observar o processo do desejo – que somos nós mesmos, o que não significa experimentardes o desejo, mas sim, experimentar o desejo – vem-nos aí uma libertação desse impulso ardente e constante para ser ou não ser, para vir a ser, para nos tornarmos Mestre, para possuirmos a virtude, e todas as outras idiotices engendradas pelo desejo. É então possível um experimentar direto, isto é, um experimentar sem o observador. Só então existe a possibilidade de ficarmos completamente abertos, se sermos tais como o nada; dá-se então a recepção do real.

Krishnamurti - 14 de agosto de 1949, Do livro: A CONQUISTA DA SERENIDADE - ICK
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill