Por que tememos
“ser nada”?
Um dos nossos problemas mais sérios, quer-me
parecer, é a questão da violência e nosso desejo de paz. Não creio que se possa
achar a paz, sem se compreender completamente a anatomia da violência. E a paz
não é uma coisa oposta à violência; é um estado totalmente diferente, que, por
conseguinte, não pode ser concebido por uma mente toda entranhada de violência.
Como a vida da maioria de nós se escuda na violência, e o nosso pensamento,
pela maior parte, é pautado pela violência, acho de suma importância
compreender este problema, que é muito complexo e requer penetração e
discernimento fora do comum; e, nesta tarde, é meu desejo examiná-lo.
É muito estranho que nenhuma das religiões
organizadas, excetuados talvez o budismo e o hinduísmo, tenha concorrido para
acabar com as guerras e feito cessar este espantoso antagonismo existente entre
os homens. Pelo contrário, certas dessas chamadas religiões têm instigado
guerras e se tornado responsáveis por horrorosos morticínios de seres humanos.
Se examinamos a nossa vida de cada dia, vemos que está cheia de violência; e
por que razão somos violentos? De onde nasce a violência, e é realmente
possível extingui-la? A meu ver, só se pode chegar ao fim da violência, fazê-la
cessar, eficaz e radicalmente, quando se conhece a fonte de onde brota a
violência. E desejo pedir-vos que não vos limiteis a escutar minha descrição da
violência, mas que, principalmente, no desenvolver desta palestra, observeis os
movimentos do vosso próprio pensar, para, com a ajuda da descrição, “experimentardes”
diretamente os fatores que se ocultam por detrás da palavra “violência”.
Porque somos violentos, não só como raça, mas também
como indivíduos? Não sei se alguma vez já vos fizestes esta pergunta. E com que
atitude nos abeiramos da questão da violência, quando a encaramos, dela estamos
cônscios, quando pensamos a seu respeito? É certo que a maioria das pessoas diz
que a violência não pode ser evitada, que somos educados nesta sociedade que
nos condiciona e estimula a ser violentos — e, dessa maneira, passamos mui
sucinta e rapidamente por cima do problema. Mas vejamos se não podemos descer
mais fundo, para investigar o problema e descobrir porque é que cada um de nós
tem essa estranha tendência para a violência, e se é possível acabar com ela,
não superficialmente, mas fundamentalmente, profundamente.
Nossa civilização, é bem óbvio, está baseada na
violência — não só no mundo ocidental, mas também no Oriente. A sociedade
estimula à violência, toda a nossa estrutura econômica, social e religiosa,
nela se baseia. Não estou empregando a palavra “violência” apenas no sentido
superficial de manifestação de cólera ou animosidade, porém abarcando com ela
todo o problema da ambição, da competição, do desejo de poder, por parte de
cada um, que gera inevitavelmente a violência. Tem de haver violência enquanto
estou a competir com outro, enquanto sou ambicioso, ganancioso — ganancioso,
não apenas no sentido mundano da avidez de possuir certas coisas, mas
ganancioso num sentido mais profundo da palavra, ou seja o de sermos impelidos
pelo desejo de nos tornarmos alguma coisa, de dominar, ter segurança, ocupar
uma posição inatacável.
Assim, enquanto buscamos o poder, sob qualquer
forma, não pode deixar de haver violência. Por favor, não digais: “Numa
civilização que está baseada na violência, que posso eu fazer como indivíduo?”
Acho que esta pergunta será respondida, se puderdes escutar o que estou dizendo,
em vez de perguntardes o que se deve fazer. O “fazer” não é importante. Acho
que a ação vem espontânea, quando compreendemos, na sua inteireza, o complexo
problema da violência. O impulso para agir, com relação à violência, sem se
compreender o desejo de ser algo, o desejo de impor-se, de dominar, de “vir a
ser”, é uma verdadeira infantilidade. Mas, se ao contrário, somos capazes de
compreender, no seu todo, o mecanismo da violência, e perceber a verdade
respectiva, penso que então esse próprio percebimento produzirá uma ação não
premeditada e, por conseguinte, genuína. Não sei se me estais seguindo.
Vede o que está acontecendo no mundo. Todo político
fala de paz, e ao mesmo tempo, com seus atos, está preparando a divisão, o
antagonismo, a guerra. E a mim me parece importantíssimo que aqueles de nós que
sentem muito interesse por estas questões compreendam a verdade contida no
problema, sem perguntarem “o que fazer”; porque, se compreendemos a verdade que
o problema encerra, esta própria percepção do que é verdadeiro
precipitará uma ação que não é vossa nem minha, e cujo alcance nem vós nem eu
podemos descortinar ou prever.
É um fato bem evidente que tudo o que fazemos neste
mundo, social, econômica e religiosamente, está baseado na violência, isto é,
no desejo de poder, posição, prestígio, o que implica ambição, vontade de
realização. Os gigantescos edifícios que construímos, os templos colossais, são
índices desse senso de poder. Não sei se já vos detivestes a contemplar essas
soberbas construções e qual a vossa reação diante delas. Poderão ter beleza, mas
para mim a beleza é uma coisa totalmente diferente. Porque a beleza exige
sobriedade, e um estado de completo abandono, passividade, e esse estado não
pode existir onde está o espírito da ambição a expressar-se em realizações
espetaculares. Onde há sobriedade, está a simplicidade, e só a mente simples é
capaz de abandono (passividade). Desse abandono é que vem o amor. Este estado é
a beleza.
Mas nós o desconhecemos totalmente. Nossa
civilização, nossa cultura, baseia-se na arrogância, no espírito de realizarão
e, em sociedade, estamos a esganar-nos uns aos outros, competindo brutalmente,
para realizar, adquirir, dominar, tornar-nos alguém. Eis evidentes fatos
psicológicos.
Agora, porque existe este estado de violência? E,
reconhecendo a sua existência, somos capazes de transcendê-lo? Se o formos,
acho que então estaremos aptos a penetrar em algo que é completamente
diferente. Consideremos, por exemplo, o desejo de dominar. Porque queremos
dominar? Em primeiro lugar, estamos apercebidos, nas nossas relações e na nossa
atitude perante a vida, desse espírito de domínio, esse espírito que aspira ao
poder, à posição? Se estamos apercebidos dele, de onde provém ele? Compreendeis
o que estou perguntando? Se pudermos descobrir de onde provém o espírito de
domínio, esse descobrimento poderá responder à pergunta “Porque somos
violentos?”. Todos somos violentos, no sentido de que todos nós, de diferentes
maneiras, desejamos ser alguém; somos todos dados à competição, ambiciosos,
gananciosos, desejosos de domínio. Tais são os sintomas exteriores de um estado
interior; e interessa-nos descobrir qual é esse estado interior que nos impele
a proceder assim. Estamos apercebidos, em algum grau, desse estado, ou apenas
nos estamos ajustando a um padrão moral, como indivíduos ideologicamente
não-violentos, não-ambiciosos, sem investigarmos realmente a fonte, a raiz das
nossas ações? Se isso nos for possível, então poderá ser completamente diferente
a nossa maneira de proceder, com relação ao problema da violência. Tende, pois,
a bondade de escutar o que estou dizendo, sem a atitude de quem exclama “Oh! é
só isso?” — porém, antes, deixai-me oferecer-vos uma oportunidade, de
autodescobrimento. Se, com a ajuda do que estou dizendo, puderdes descobrir,
experimentar realmente a coisa, por vós mesmos, então esta palestra terá um
efeito extraordinário.
Porque sou violento? Preciso compreender isso. Vejo
que sou violento porque, socialmente, religiosamente, existe esse
extraordinário impulso para ser alguma coisa. Esse impulso é um fato. No mundo
dos negócios quero ser; mais rico do que sou, mais capaz do que outros, “estar
de cima”, e no chamado mundo espiritual estou seguindo uma autoridade que me
ajudará a tornar-me alguma coisa, lá, naquele mundo. Vejo, pois, que minhas
atividades, meus pensamentos, minhas relações se baseiam todas na vontade de
domínio, na dependência. Quando preciso de apoio, tenho de seguir uma
autoridade, o que gera violência.
Ora, desejo compreender integralmente o mecanismo da
violência, e não apenas ajustar-me a um padrão social, porque isso é
coisa superficial e completamente desinteressante, Desejo descobrir se a mente
pode ficar, de todo, livre da violência, se esse mecanismo pode ser erradicado
da minha mente. Isso me interessa deveras, e quero averiguá-lo. Percebo que o
mero ajustamento a um padrão diferente, dos desejos, reclamos e influências
superficiais, não resolve o problema. O substituir uma estrutura social por
outra, o erguer uma sociedade comunista no lugar de uma sociedade capitalista,
não nos tornará livres da dominação e da violência. Percebendo isso, quero
investigar em mim mesmo, a fim de descobrir qual é a fonte de todos esses
extraordinários impulsos, exigências e atividades que geram a animosidade e a
violência.
Porque sou violento, dado à competição, ambicioso,
ganancioso? Porque existe em mim esta luta constante para ser, “vir a ser”? É
bem evidente que estou a fugir de alguma coisa, pelo caminho da ambição, das
aquisições, do desejo de alcançar grandes êxitos. Estou com medo de alguma coisa,
medo que me está obrigando a essas atividades. O medo é um estado de fuga.
Assim, estou procurando saber sobre aquilo de que realmente sinto medo. Não
estou por ora considerando a questão do “medo do escuro”, do medo à opinião, ao
que outra pessoa diga ou não diga a meu respeito, porque são muito superficiais
essas coisas. Estou interessado em descobrir o que é que, fundamentalmente, me
está fazendo medroso, me está impelindo a ser ambicioso, competidor,
ganancioso, invejoso e criando, assim, animosidade, etc.
Pensai junto comigo, por favor. Em primeiro lugar,
parece-me que somos criaturas muito solitárias. Sinto-me muito só,
interiormente vazio, e não gosto desse estado, tenho-lhe medo, e portanto o
evito, fujo dele. Esse próprio fugir gera medo, e para evitar o medo entrego-me
a atividades várias. Existe evidentemente esse vazio, em mim, em vós, do qual a
mente está a fugir por meio da ação, da ambição, do desejo de ser alguém, de
adquirir mais saber — enfim, pela violência sob todos os seus aspectos. Mas
pode a mente abster-se de fugir e olhar de frente o seu vazio, esse
extraordinário sentimento de solidão, que é a expressão autêntica do “eu”? —
visto que o “eu” é a entidade, a consciência que, quando não está em movimento,
é vazia. Compreendeis o que estou explicando? Se não está claro, expô-lo-ei de
outra maneira.
Afinal de contas, o “ego”, o “eu”, se expressa na
ambição, no desejo de aquisição, na inveja, no ser violento e no lutar para ser
não-violento, etc. Tudo isso são expressões do “eu”; e, reconhecendo-as como
tais e investigando-as profundamente, vejo também que essas atividades do “eu”
resultam justamente do seu extraordinário sentimento de vazio. Não sei se
tendes notado que, quando seguimos as pegadas do “eu”, todos os seus
movimentos, chegamos ao ponto em que a mente se torna perfeitamente apercebida,
do “eu” como entidade completamente vazia; mas a mente, em verdade, não quer
ver esse vazio, preferindo voltar-lhe as costas, fugir.
Ora, se sou capaz de compreender o que é esse vazio,
então é bem provável que eu possa resolver o problema da violência. Mas, para
compreender o que é o vazio, preciso olhá-lo, e não posso olhá-lo se estou
fugindo. É justamente a fuga que causa o medo e precipita a ação da inveja, da
competição, da crueldade, da inimizade, e tudo o mais. Assim sendo, pode a
mente olhar essa coisa, de que está fugindo por meio da ação? Espero que me
esteja fazendo claro.
Não tendes consciência de um estado de solidão, de
vazio? Não estamos considerando o que deveis fazer a respeito desse estado. Foi
esse “que se deve fazer?” que produziu este mundo estúpido e caótico. Estou
indagando o que há atrás, do desejo de fazer alguma coisa — o que é dificílimo
de descobrir, visto que a mente está sempre evitando esse fator central. Mas se
a mente for capaz de ficar apercebida, totalmente, de estar vazia,
solitária — o que significa o completo descobrimento das atividades do “eu”,
que a levaram àquele estado — vereis que toda ação sem tal compreensão há de
precipitar, necessariamente, a violência, sob diferentes formas. O
ser-se um mero pacifista, ou ideologista, pró-isto e contra-aquilo, não resolve
o problema. O homem que se exercita na não-violência não resolveu de modo
nenhum o problema da violência; está meramente a praticar uma ideia, sem ter investigado
os fatores fundamentais, de onde se origina toda ação.
Observai, por favor, a vós mesmos, não vos limitando
a seguir a minha descrição. Pode a vossa mente estar apercebida daquele vazio,
sem fugir dele? É porque vos sentis vazio e só, que necessitais de um
companheiro, que quereis depender de alguém, e essa dependência cria a
autoridade, que seguis; e a própria circunstância de se estar seguindo uma
autoridade, já é um indício de violência. Pode a mente, ao perceber a verdade a
esse respeito, deter a sua fuga e olhar a sua própria vacuidade? Compreendeis o
que significa “olhar”? Não podeis olhar para aquele vazio se lhe tendes medo,
se desejais evitá-lo; só podeis ter conhecimento, pleno dele, quando não há
espírito de condenação. Segui com toda a atenção o que estou dizendo. Estou
investigando com todo o vagar, propositadamente, porque desejo que seja
simultânea a comunhão e a compreensão entre nós.
Estou cônscio de estar só e vazio, e estou, a
observar esse vazio; mas não; posso observá-lo se o condeno. A condenação é
justamente uma distração, que estorva o observar. Ora, posso observar o vazio,
tomar conhecimento dele, sem lhe dar um nome? Compreendeis? E, quando não lhe
dou nome, o observador é então diferente do vazio a que está observando? É só
quando o observador lhe dá nome, que ocorre a separação, não é verdade?
Compreendeis? Ainda não?! Vou simplificá-lo mais ainda.
Quando digo “estou irritado”, estou dando nome a uma
certa sensação ou reação, e esta própria, circunstância cria uma dualidade, não
achais? Mas, se não dou nome à sensação, então essa coisa sou eu mesmo.
Entendeis? Vede: dou nome a um sentimento porque minha mente está exercitada em
reconhecer, em rotular; mas se a mente não põe rótulo em coisa alguma,
desaparece então a separação entre o observador e a coisa observada. Por outras
palavras, quando não se dá nome a uma coisa, só há um único estado, e nesse
estado não existe entidade separada, para fazer algo a respeito dessa coisa. A
mente — que é violenta, por natureza — já não está operando com relação a uma
coisa que deseja compreender, e por conseguinte a sua atividade cessa.
Vede por favor que isto não é uma asserção
intelectual. Não digais que é “alto demais”, abstrato demais, ou que é absurdo,
etc. Estou investigando, passo a passo, a anatomia da violência. Nossa
estrutura social está baseada na violência, não só a violência entre as nações,
pois individualmente estamos em guerra uns com os outros, competindo e
praticando crueldades. Ora, se desejo compreender o problema inteiro, cumpre-me
compreender as atividades da mente em relação a essa coisa a que chamo “vazio”;
e no momento em que surge a compreensão, não mais desejo ser coisa alguma.
Entendeis? É o desejo de ser algo que gera a inimizade e a violência. O
idealista que deseja criar uma Utopia perfeita é, por natureza, violento. O
homem que está praticando a não-violência é um ente humano violento, porque, em
verdade, não compreendeu o problema; está atendendo a ele superficialmente.
Vejo, pois, que enquanto a mente está operando em
termos de ambição ou não-ambição, ela cria necessariamente o caos, e lutas, e
sofrimentos, para si própria e para outros, E se, aprofundando mais o problema,
a mente compreende todo o mecanismo
relativo a esse impulso para ser alguma coisa, então, inevitavelmente, ela
chegará ao ponto em que perceberá que está a procurar um meio de fugir ao “ser
nada”, que é um estado de vazio. E posso compreender esse vazio? Pode a
mente penetrá-lo, prová-lo, senti-lo? Por certo, a mente não poderá compreender
essa coisa extraordinária que chamamos “vazio”, “solidão”, enquanto estiver, de
alguma maneira, a condenar, enquanto desejar rejeitá-lo, dominá-lo ou
ultrapassá-lo. A mente rejeitará sempre esse estado, enquanto estiver a dar-lhe
nome; e o reconhecer, o dar nome, é justamente o “mecanismo” peculiar da mente.
Afinal, não podeis pensar sem símbolos, sem ideias, sem palavras. E pode a
mente deixar de “verbalizar”? Pode acabar com esse mecanismo e considerar
aquilo a que chamava “vazio”, sem lhe dar nome ou criar um símbolo tirado da
imaginação? E quando deixa de verbalizar, o estado a que chamava “vazio” é
então diferente dela própria? Não é, por certo. O que há então é só um estado,
em que não há verbalização, não há dar nome, e por conseguinte em que terminou
aquela atividade da mente, que separa, que compete, que gera antagonismo. Nesse
estado se verifica um movimento completamente diferente. Não há mais violência.
Há uma delicadeza, que não pode ser compreendida pela mente que diz “tenho de
ser delicado”. A volição cessou, de todo — porque a vontade é também produto da
violência.
Krishnamurti,
27 de agosto de 1955
Realização sem
esforço
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