Penso que a maioria de nós acha a vida muito sem graça. Para ganharmos o sustento, precisamos exercer uma certa profissão, e esta se torna muito monótona; começa-se uma rotina, que temos de seguir, ano por ano, até morrer. Ricos ou pobres, e ainda que sejamos muito eruditos ou dotados de espírito filosófico, nossas vidas são em geral superficiais e vazias. Há evidentemente uma insuficiência em nós mesmos, e aos nos tornarmos cônscios desse vazio procuramos preenchê-lo com conhecimentos, com alguma espécie de atividade social, ou nos refugiamos em divertimentos de todo tipo, ou nos apegamos a alguma crença religiosa. Ainda que tenhamos uma certa capacidade e sejamos muito eficientes, nossas vidas são, ainda assim, sem graça e, para nos livrarmos dessa falta de graça, dessa cansativa monotonia da vida, buscamos uma certa forma de enriquecimento religioso, tentamos conquistar aquele "estado de ser" extra-mundano que não é uma rotina e que, por enquanto, pode ser chamado "o outro estado". Em nossa busca desse outro estado, encontramos muitos sistemas diferentes, diferentes caminhos que se supõem conduzirem a ele; e, assim, pelo disciplinamento de nós mesmos, pela prática de determinado sistema de meditação, pela observância de certo ritual ou a repetição de certas frases, esperamos alcançar aquele estado. Sendo a nossa vida um círculo interminável de dores e prazeres, de variadas experiências sem muita significação ou mera repetição, sem sentido algum, de uma mesma experiência — o viver constitui para a maioria de nós uma monótona rotina. Por esta razão, o problema de nosso enriquecimento interior, da conquista do "outro estado" — chame-o Deus, a Verdade, bem-aventurança ou como o quiser — se torna muito urgente, não é verdade? Você pode estar bem de vida, bem casado, ter filhos, pode pensar de forma inteligente e equilibradamente, entretanto, sem aquele, sem aquele estado, a vida se torna horrivelmente vazia.
O que se deve , pois, fazer? Como conquistar aquele estado? Ou é completamente impossível conquistá-lo? A nossa mente, como está hoje constituída, é sem dúvida muito insignificante, limitada, condicionada; e embora uma mente limitada possa especular a respeito do "outro estado", suas conjecturas serão sempre limitadas. Ela poderá formular um estado ideal, conceber e descrever aquele outro estado, mas suas concepções permanecem dentro de suas estreitas limitações, , e penso que aí é que se encontra o fio da meada: no perceber que a mente não pode, em circunstância alguma, experimentar, viver aquele outro estado, se se limita a formulá-lo ou a especular a seu respeito. Não há dúvida de que esta é uma descoberta extraordinária: o perceber que, sendo a mente limitada, pequena, estreita, superficial, todo movimento que faça para alcançar aquele estado extraordinário, constitui um empecilho. O descobrimento deste fato, não especulativamente porém realmente, é o começo de uma nova maneira de considerar o problema.
Nossas mentes, em verdade, são produto do tempo, de muitos milhares de dias passados, resultado da experiência baseada no "conhecido"; e, em tais condições, a mente é uma continuação do "conhecido". A mente de cada um de nós é o resultado da cultura, educação, e por mais extenso que seja o seu saber ou preparo técnico, ela é sempre produto do tempo; por conseguinte, é limitada, condicionada. Com esta mente, queremos descobrir o incognoscível; e compreender que essa mente nunca poderá descobrir o incognoscível, constitui uma experiência extraordinária. Descobrir que a mente de um indivíduo, por mais sagaz, por mais sutil, , por mais ilustrada que seja, não pode de modo nenhum compreender aquele outro estado — esse descobrimento traz consigo uma certa compreensão "factual" e acho que este é o começo de uma perspectiva da vida que poderá abrir a porta que conduz àquele outro estado.
Expressando o problema de maneira diferente: a mente está sempre e sempre ativa, "tagarelando", planejando, e é capaz de extraordinárias sutilezas e invenções. E de que maneira pode esta mente tornar-se quieta? Vê-se que toda a atividade da mente, todo movimento que faça, em qualquer direção, é reação do passado. Como aquietar a mente? Se a aquietamos por meio de disciplina, sua quietude é um estado em que não há investigação, busca, não é exato? Em tais condições, ela não está aberta para o "desconhecido", "o outro estado".
Não sei se alguma vez você já pensou neste problema, ou se nele tem pensado unicamente pela maneira tradicional, ou seja, tendo um ideal e dirigindo-se para ele segundo uma certa fórmula ou a prática de determinada disciplina. Disciplina implica, invariavelmente, repressão e conflito da dualidade — e isso está na esfera da mente — e por esse caminho prosseguimos, esperando captar o outro estado. Mas nunca indagamos inteligente e com sanidade se nossa mente é capaz de captá-lo. Foi nos sugerido que a mente deve estar tranquila, mas a tranquilidade foi sempre cultivada por meio de disciplina. Isto é, temos o ideal de uma mente tranquila, e buscamos realizar este ideal por meio de controle, luta, esforço.
Ora bem, se você considera atentamente esse processo, em sua inteireza, verá que está no terreno do conhecido. Cônscia da monotonia de sua existência, cansada de suas repetidas experiências, a mente se empenha em conquistar aquele "outro estado". mas quando se percebe que a mente é o "conhecido" e que todo o movimento que faz não leva ao outro estado, que é "o desconhecido", o nosso problema se resume então, não em como conquistar o desconhecido, mas em descobrir se a mente pode libertar-se do "conhecido". Penso que este problema deve ser considerado por todo aquele que deseje descobrir se existe alguma possibilidade de "realizar o outro estado", o desconhecido. Assim sendo, como pode a mente, que é resultado do passado, do conhecido, libertar-se do conhecimento?
Krishnamurti em, DA SOLIDÃO À PLENITUDE HUMANA
Krishnamurti em, DA SOLIDÃO À PLENITUDE HUMANA