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sexta-feira, 20 de abril de 2018

A atenção precisa ser sem conflito

A atenção precisa ser sem conflito

PERGUNTA: Permiti-me perguntar quem é que percebe, e se há diferença entre percebimento e "observação pelo observador".

KRISHNAMURTI: Quando escutais música ou o que outrem diz, de maneira total, há alguém que está escutando? Quando observais algo com atenção completa, existe observador? Só quando a atenção está dividida, quando é incompleta, existe um observador separado do observar; e perguntais, então: "Quem é o observador?".

De que maneira escutais qualquer coisa? Escutais parcialmente, não é verdade? Não prestais toda a vossa atenção. Não estais profundamente interessado no que o outro está dizendo, e prestais muito pouca atenção; ouvis indiferentemente, e por isso há separação entre o escutar e aquele que escuta. Mas, se escutais uma coisa com atenção completa, não existe tal separação. Sabeis o que entendemos por "atenção completa": prestar atenção sem esforço. Não digais: "Estou sujeito a distrações, e como posso prestar atenção sem esforço?" Se prestardes atenção a isso que chamamos "distração", então essa "distração" deixa de ser distração, não achais?

Em geral, não prestamos atenção, e por isso somos exercitados para a concentração. Se, em vosso emprego, não vos concentrardes no que estiverdes fazendo, perdereis o emprego; por isso, sois exercitado, condicionado, disciplinado, para vos concentrardes. Tal concentração implica exclusão. Se vos obrigais a concentrar-vos numa coisa, sois também obrigado a excluir qualquer outra coisa. Quando vosso pensamento se desvia daquilo em que desejais concentrar-vos para aquilo que estais tentando excluir, chamais isso "distração"; por conseguinte, a concentração, para vós, é uma forma de conflito — que é só o que conhecemos, quase todos nós.

Mas eu estou falando de coisa muito diferente: prestar atenção sem conflito. Isso significa escutar sem tensão, sem perturbação — e isso é escutar com atenção completa. Mas só se pode escutar com "atenção completa" quando no escutar não há ganho, não há motivo pessoal, nem exigências, nem interpretação. A pessoa está, simplesmente, escutando. Nesse estado de "total escutar" não há entidade que está a escutar, não há quem escuta, separado do escutar. É um mecanismo unitário, que se verifica quando estamos completamente interessados numa coisa.

Já observastes uma criança com um brinquedo novo? Enquanto a criança não se acostuma com o brinquedo e dele se enjoa, o brinquedo absorve-a inteiramente. O brinquedo de tal maneira a atrai que, temporariamente, a criança fica unificada com ele; não há distração alguma, porque o brinquedo a absorveu de todo. Nós também desejamos deixar-nos absorver completamente por alguma coisa — Deus, o sexo, o amor, uma centena de coisas. Desejamos estar tão intimamente ligados a uma certa coisa, que por ela sejamos inteiramente absorvidos; mas, essa absorção não é atenção. Em geral temos, dentro em nós ou fora de nós, alguma coisa a que estamos ligados — uma crença, uma esperança, uma relação, uma certa ocupação ou distração — e toda ligação dessa ordem é sempre de fundo neurótico. E a sociedade em que viveis — comunista ou outra qualquer — exige que estejais ligado a alguma coisa — um partido, uma ideologia, a defesa do Estado — porque, de outra maneira, sois um ente humano perigoso. Mas, quando nem as coisas externas nem as internas vos absorvem, e quando tendes compreendido todo o mecanismo da concentração e exclusão, então, dessa compreensão, nasce um estado de percebimento simples, de atenção sem esforço, em que vosso corpo, vossa mente, todo o vosso ser está vigilante, completamente atento.

Senhor, escutai aquele trem que está passando. Se escutais o barulho, o estrondo que ele faz, sem nenhuma resistência, nenhuma ideia de levantar uma muralha contra ele, se o escutardes completamente, vereis que não há entidade que escuta.

PERGUNTA: Falais da "extraordinária energia" de que se necessita para a atenção completa. Como se pode adquirir essa energia?

KRISHNAMURTI: Como adquirimos energia? Uma das maneiras é tomar alimentos adequados ou da qualidade de que necessitamos, fazer suficiente exercício, e ter a justa porção de sono. E a maioria de nós, também, deriva energia da competição, da luta e do conflito, não é verdade? É só essa a energia que conhecemos. Restritos a essa limitada energia e desejando, portanto, expandir nossa consciência, recorremos as drogas. Há várias drogas que têm o efeito de expandir a consciência; e no momento dessa expansão provocada por uma droga, sentimo-nos extraordinariamente perceptivos, sensíveis. Ela nos confere uma qualidade diferente, um vivo sentimento de "diversidade". Tal efeito tem sido descrito por várias pessoas que, de fato, fizeram uso de tais drogas.

Ora, como despertar em nós mesmos uma energia que tenha seu ímpeto próprio, causa e efeito próprios, energia que não contenha resistência e não esteja sujeita a deteriorar-se? Como alcançá-la? As religiões organizadas advogam vários métodos, e supõe-se que, pela prática de um certo método, pode-se adquirir essa energia. Mas os métodos não dão tal energia. A prática de um método exige sujeição, resistência, rejeição, aceitação, ajustamento, e com isso se consome a energia de que porventura dispomos. Se perceberdes a verdade desta asserção, nunca mais praticareis método algum. Isto, em primeiro lugar. Em segundo lugar, se a energia tem um motivo, um fim a que se dirige, essa energia é autodestrutiva. E, no que respeita à maioria de nós, a energia tem sempre motivo, não é verdade? Somos movidos pelo desejo de alcançar, de nos tornarmos isto ou aquilo, e, por conseguinte, nossa energia anula a si própria. Em terceiro lugar, a energia se enfraquece, se degrada, quando se ajusta ao passado — e aí talvez esteja nossa maior dificuldade. O passado não é apenas os inúmeros dias passados, mas é também cada minuto que se lhes vai acrescentando, a lembrança daquilo que se passou há um segundo.

Assim, para despertar essa energia, não deve haver na mente resistência, nem motivo, nem "fim em vista"; ela não deve estar enredada no tempo, sob o aspecto de ontem, hoje e amanhã. A energia está, então, a renovar-se constantemente e, por conseguinte, não degenera. A mente já não está ligada, a nada, é totalmente livre; e só então é capaz de encontrar aquilo a que se não pode dar nome, aquela coisa extraordinária que transcende todas as palavras. A mente precisa libertar-se do "conhecido", para ingressar no Desconhecido.

Krishnamurti, Saanen, 28 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho

Da percepção nasce a atenção

[...] Para o homem religioso não existem teorias, nem crenças ou ideais de qualquer espécie, porque esse homem está sempre vivendo com plenitude, no presente ativo. Toda dependência de ideia, toda dependência de padrão, todo ajustamento a qualquer teoria ou crença, é coisa totalmente estranha à mente que busca o verdadeiro.

Ora, para a maioria de nós, certas palavras — tais como "morte", "sofrimento", "conflito'', "oração", "Deus" — estão "carregadas" de especial significado; têm para a mente extraordinária significação, e vivemos sob a influência dessas palavras. Elas nos moldam a vida, obrigando-nos a ajustar-nos, a imitar, a disciplinar-nos de acordo com certo e consagrado padrão. E esta manhã vou empregar uma dessas palavras — palavra talvez para muitos um pouco estranha; para outros, entretanto, que porventura leram algo sobre o assunto, terá ela alguma significação. É a palavra "meditação". A meditação, para a maioria dos Ocidentais, é algo de exótico, estranho, asiático; e para as pessoas, em geral, seja no Oriente, seja no Ocidente, é algo que se precisa praticar quando se deseja encontrar a Verdade ou Deus. Sobre isso vou falar, porque, para mim, uma vida sem meditação é uma vida perdida. Se se desconhece o profundo significado e importância da meditação, torna-se muito superficial o viver de cada dia. Mas, para se compreender o conteúdo dessa palavra, e passar além da palavra, requer-se um pensar muito claro, e uma mente alertada, ativa.

Antes de entrarmos nesta questão da meditação, precisamos ter uma noção bem clara do significado da disciplina. Para a maioria de nós, disciplina supõe controle, ajustamento de nosso pensamento e atividade a um certo padrão "ideacional". Ajustar-se, reprimir, seguir, imitar — tudo isso está implicado na palavra "disciplina".

Peço-vos, agora, acompanhar-me muito atentamente, pois isto vai tornar-se muito difícil, árduo, e, se não me seguirdes bem de perto, ativando ao máximo a vossa mente, vos perdereis completamente no caminho. Necessitareis, com efeito, de vossa energia total, para seguirdes o que este orador vai dizer.

Sucede, com a maioria de nós, que nossa mente foi condicionada por meio de disciplina, moldada por inumeráveis influências, pensamentos, experiências, ações, de maneira que a disciplina se nos tornou uma quase segunda natureza. Começamos a disciplinar-nos na escola e do mesmo modo prosseguimos pelo resto da vida, ajustando-nos às exigências da sociedade, submetendo-nos ao padrão consagrado — moral e social — refreando-nos por medo, ajustando-nos à opinião pública, ao que consideramos correto, etc. Está condicionada nossa mente para buscar a segurança mediante disciplina e, apesar disso, pensamos que pela disciplina seremos capazes de descobrir o que é a Verdade. Mas, por certo, para descobrir o que é a Verdade, precisa o indivíduo estar livre de toda disciplina que lhe foi imposta ou que a si próprio impôs. Só pode verificar-se o descobrimento do verdadeiro quando se está livre de ajustamento e de qualquer espécie de medo; há, então, uma disciplina de natureza toda diferente. Já não é disciplina, no sentido de imitação, repressão ou ajustamento a padrão. E um movimento livre, pois não significa fazer algo pelo desejo de um certo resultado, ou por medo. Deve, pois, ficar claramente entendido que qualquer espécie de disciplina que conhecemos denota desejo de ajustar-nos, de pôr-nos em segurança, e que, atrás desse desejo, está o medo — o medo à insegurança, de não obter o que se deseja, de não descobrir a verdade final, etc. etc.

Outra coisa muito necessária é estarmos apercebidos de quanto estamos condicionados pela sociedade, pelas inúmeras experiências que temos tido — e isso significa que devemos estar totalmente apercebidos de nossa consciência integral, e não apenas de certas partes dela. "Estar apercebido" requer espaço para a observação — isto é, que haja em nossa mente espaço, de modo que possamos observar sem opinião, sem avaliação, sem conclusão. Em geral, nenhum espaço temos na mente, porque nos chegamos a tudo o que observamos com uma conclusão, uma ideia, uma opinião, um juízo, uma avaliação; condenamos, aprovamos ou justificamos o que vemos, ou com isso nos identificamos, de modo que nenhum espaço existe dentro do qual possamos observar.

Por favor, não façais disso uma teoria ou coisa que se tem de praticar, pois isso seria terrível, já que tudo o que se pratica se torna hábito. Infelizmente, quase todos vivemos numa série de hábitos, agradáveis ou desagradáveis — o que é extremamente destrutivo da inteligência. Pela observação de vós mesmos, percebereis a verdade ou a falsidade desta asserção.

Sabeis o que é aprender? Aprender — no genuíno sentido da palavra — não é adicionar. Não é acumular conhecimento se, depois, pelo observar, pelo experimentar, acrescentar o que se aprendeu antes. Quando só se trata de acumular conhecimentos e de adicioná-los ao que já se sabe, nunca há liberdade para observar; por conseguinte, não se está aprendendo. Compreendeis? Se não, discutiremos sobre isso, depois.

Por "percebimento", entendo um estado de vigilância em que não há escolha. Estamos simplesmente observando o que é. Mas ninguém pode observar o que é, se tem alguma ideia ou opinião a respeito do que vê, dizendo-o "bom" ou"mau", ou de outro modo o avaliando. A pessoa tem de estar totalmente apercebida dos movimentos de seu próprio pensamento, de seu próprio sentimento, tem de observar suas próprias atividades, tanto conscientes como inconscientes, sem avaliação. Isso requer mente alertada e ativa no mais alto grau. Mas, acontece que a mente da maioria de nós está embotada, semi-adormecida; só certas partes dela se acham ativas — as partes especializadas, pelas quais funcionamos automaticamente, pela associação, pela memória, tal como um cérebro eletrônico. A mente, para ser vigilante, sensível, necessita de espaço, no qual possa olhar as coisas sem nenhum fundo de conhecimentos prévios; e uma das funções da meditação é levar a mente a um extraordinário estado de alerta, atividade, sensibilidade.

Estais seguindo bem isto?

Estar vigilante é o indivíduo observar a própria atividade corporal, a própria maneira de andar, de sentar-se, os movimentos das próprias mãos; é ouvir as palavras que emprega, observar todos os seus pensamentos, todas as suas emoções, todas as suas reações. Inclui o percebimento do inconsciente com suas tradições, seu conhecimento instintivo, e o imenso sofrer que ele acumulou — não apenas o sofrer pessoal, mas também o sofrer humano. De tudo isso deveis estar apercebido; e não o podeis, se estais meramente a julgar, a avaliar, a dizer: "Isto é "bom", aquilo é "mau"; conservarei isto e rejeitarei aquilo" — já que todas essas coisas tornam a mente embotada, insensível.

Do percebimento nasce a atenção. A atenção deflui do percebimento, quando nesse percebimento não há escolha; quando não se está escolhendo nem experimentando pessoalmente (sobre isto falarei mais adiante), porém simplesmente observando. E para se poder observar, necessita-se, na mente, de uma vasta porção de espaço. A mente que está toda enredada na ambição, na avidez, na inveja, na busca do prazer e do auto-preenchimento — com os inevitáveis pesares, dores, desespero, e aflição, que ocasionam — não dispõe de espaço, para observar. Está repleta de seus próprios desejos, a dar voltas e mais voltas nas águas represadas de suas próprias reações. Não podeis estar atento, se vossa mente não é altamente sensível, penetrante, racional, lógica, sã, vigorosa, sem a mais leve sombra de neurose. Deve a mente explorar todos os seus próprios recessos, sem deixar um só por descobrir; porque, se houver um só recesso mental que temermos investigar, daí brotará a ilusão.

O cristão que vê Cristo em sua meditação, em sua contemplação, pensa ter alcançado um estado maravilhoso, mas suas visões são meras "projeções" de seu próprio condicionamento. O mesmo acontece com o hinduísta que, sentado à margem de um rio, entra num estado de êxtase. Tem, também ele, visões nascidas de seu próprio condicionamento, e o que vê, por conseguinte, não constitui uma verdadeira experiência religiosa. Mas, pelo percebimento, pela observação livre de escolha — a qual só é possível quando há na mente espaço para observar — dissolvem-se todas as formas de condicionamento e, então, já se não é hinduísta, nem budista, nem cristão, porque todas as ideias, crenças, esperanças e temores desapareceram definitivamente. Daí vem a atenção, não atenção aplicada a uma certa coisa, porém um estado de atenção em que não há "experimentador" e, por conseguinte, não há experiência. Isto é de enorme importância e deve ser compreendido por todo aquele que se está realmente esforçando por descobrir o que é a Verdade, o que é religião, o que é Deus, o que existe além das coisas construídas pela mente.

No estado de atenção, não há reação: a pessoa está, simplesmente, atenta. A mente explorou e compreendeu todos os seus próprios recessos, todos os inconscientes motivos, exigências, preenchimentos, ânsias, pesares; por conseguinte, no estado de atenção há espaço, há vazio; não há experimentador a experimentar alguma coisa. Achando-se vazia, a mente não está "projetando", buscando, desejando, esperando. Compreendeu todas as suas próprias reações e "respostas", sua profundidade, sua superficialidade, e nada mais resta. Não há divisão entre o observador e o que ele observa. No momento em que há separação entre "observador" e "coisa observada", há conflito que é o próprio intervalo entre ambos. Já examinamos isso, e vimos quanto é importante estarmos completamente livres de conflito.

Isso talvez seja um pouco mais complicado do que as coisas que estais acostumados a ouvir, pois estou falando sobre a meditação — algo que transcende todas as palavras.

Ora, é só no estado de atenção que podeis ser vossa própria luz, e então todas as ações de vossa vida diária nascerão dessa luz — todas as ações, quaisquer que sejam: exercer o emprego, cozinhar, lavar, remendar roupas, etc. Todo esse mecanismo constitui a meditação, e sem ela a religião nada significa, torna-se mera superstição explorada pelos sacerdotes.

Para a maioria das pessoas que praticam o que chamam "meditação", esta é uma espécie de auto-hipnose. Tendo tomado "lições de meditação" ou lido livros sobre a matéria, põem se sentadas, de pernas cruzadas e percorrem toda a série de "habilidades" que aprenderam — respirar com a máxima regularidade, controlar os pensamentos, etc. etc. Há muitos sistemas de meditação, mas se compreenderdes um só deles, tereis compreendido todo o seu conjunto, porque todos eles visam ao autocontrole ou à auto-hipnose, como meios de se alcançarem certas experiências consideradas maravilhosas, porém, em verdade, ilusórias. Essa forma de meditação é de todo em todo infantil, sem nenhuma significação. Podeis praticá-la durante dez mil anos, e nunca descobrireis o que é verdadeiro. Podeis ter visões, "experimentar" o que pensais ser Deus, a Verdade, etc., mas tudo será coisa "projetada" por vossas próprias reações, por vosso próprio condicionamento e, por conseguinte, sem significação alguma.

Mas, eu estou falando de coisa completamente diferente: O libertar da mente, pela intensa vigilância, de todas as suas reações, e produzir, assim, sem o exercício de controle, de vontade deliberada, um estado de quietude interior. Só a mente muito ardorosa, altamente sensível, pode achar-se verdadeiramente quieta, e não aquela que está paralisada pelo medo, pelo sofrimento, pela alegria, ou entorpecida pelo ajustamento a inumeráveis exigências sociais e psicológicas.

A verdadeira meditação é inteligência em sua forma mais elevada. Não é questão de se ficar sentado a um canto, de pernas cruzadas e olhos fechados, ou ficar de pernas para o ar, apoiado na cabeça, ou o que mais seja. Meditar é estar completamente apercebido, quando se está passeando, quando viajando de ônibus, trabalhando no escritório ou na cozinha; é estar o indivíduo completamente apercebido das palavras que emprega, dos gestos que faz, de sua maneira de falar, de comer, seu costume de empurrar os outros. Estar apercebido, sem escolha, de tudo o que se passa em torno de vós e dentro em vós — isto é meditação. Se dessa maneira ficardes apercebido da incessante propaganda política e religiosa, das numerosas influências que vos rodeiam, vereis com que rapidez sereis capaz de compreender cada influência com que entrardes em contato, e dela vos libertar.

Mas, são raríssimos os que vão tão longe, já que quase todos estamos condicionados por nossas tradições. Isso é verdade, principalmente para quem vive na Índia, onde é absolutamente necessário fazer certas coisas — controlar completamente o corpo e, consequentemente, controlar completamente o pensamento. Por meio desse controle, espera-se alcançar o Supremo, mas o que for alcançado será o resultado da própria auto-hipnose de cada um. No mundo cristão faz-se mesma coisa, de maneira diferente. Mas, eu me estou referindo a algo que requer inteligência em sua mais elevada forma.

Ora, a mente que deseja experiência não é inteligente; e, se observardes, vereis que a maioria de nós deseja experiência. Cansados dos rotineiros "desafios e respostas" que há tanto tempo conhecemos, apelamos para a chamada meditação, ou ingressamos em tal ou qual igreja, esperando que por esse ou qualquer outro meio misterioso, iremos ter novas e mais profundas experiências. Mas a mente que se acha no estado de "desejo de experiência" — por mais exaltada que seja tal experiência — não é inocente; por conseguinte, não há isso que se chama "experiência religiosa". Só a mente que está desejando, buscando, tateando, ansiosa, desesperada — só essa pede experiência. A mente que é altamente sensível, já que é a luz de si própria, não tem desejo nem necessidade de experiência, essa mente, por conseguinte, se acha num estado de inocência; e só a mente inocente e altamente sensível pode estar quieta. Quando a mente está totalmente quieta, porque cada uma de suas partes é viva, sensível, acha-se então num estado de meditação; e daí pode prosseguir, até descobrir o que é a Verdade. Mas, enquanto não se achar nesse estado de meditação, toda tentativa que a mente faça para descobrir o que é a Verdade, o que é Deus, o que é "essa coisa" existente além dela própria (da mente) — será pura perda de tempo, e conducente à ilusão. O achar-se nesse estado de meditação requer extraordinária energia; e vós tereis pouquíssima energia, enquanto estiverdes em conflito, enquanto tiverdes os problemas do desejo. Por essa razão é que, como tenho dito desde o começo, todo conflito, toda exigência de preenchimento, com sua esperança e seu desespero, têm de ser compreendidos e dissolvidos. A mente, então, não tem ilusões, porque já não tem o poder de criar ilusões.

A mente que está toda enredada em problemas, no medo, no desespero, no desejo de preenchimento próprio, está sempre criando a ilusão e, por conseguinte, se encontra num estado de neurose. Esta é a primeira coisa que é necessário compreender. Mas, quando a mente é altamente sensível e está livre de todas as ilusões, então, nessa claridade, nessa sensibilidade, há inteligência; e só então pode a mente estar quieta, completamente e sem esforço algum. Esse estado de quietude completa e livre de esforço é o começo da meditação.

Assim, pois, há primeiramente um percebimento, uma observação sem escolha, de todos os vossos pensamentos e sentimentos, de tudo o que fazeis. Nasce, daí, um estado de atenção sem fronteiras, mas em que a mente pode concentrar-se; e desse estado de atenção resulta a quietude mental. E quando a mente está totalmente quieta, sem nenhuma ilusão, sem qualquer espécie de auto-hipnose, vem à existência algo que não foi formado pela mente.

Apresenta-se-nos agora a dificuldade de expressar em palavras algo que é inexprimível — e é esse algo que estamos buscando. Todos desejamos encontrar algo transcendental, fora deste mundo de agonias, de tirania, de força e subjugação, mundo tão indiferente, empedernido e brutal. Com nossas ambições, nossos nacionalismos, nossa diplomacia, nossas mentiras, estamos continuamente precipitando os horrores da guerra; e, cansados de tudo isso, desejamos a paz. Desejamos encontrar em alguma parte um estado de tranquilidade, de bem-aventurança e, assim, inventamos um Deus, um Salvador, ou um outro mundo que nos ofereça a paz que desejamos, contanto que façamos ou creiamos em certas coisas. Mas uma mente condicionada, por mais que deseje a paz, só provoca a própria destruição; é o que se observa no mundo atual. Todos os políticos do mundo, tanto da esquerda como da direita, usam a palavra "paz", mas esta palavra nada significa. Falo, porém, de algo existente muito além de tudo isso.

A meditação, pois, é o esvaziar da mente de todas as coisas que juntou. Se o fizerdes — talvez não desejeis fazê-lo, mas, sem embargo, escutai! — vereis abrir-se um extraordinário espaço em vossa mente, e esse espaço é liberdade. Assim, deveis exigir a liberdade justamente no começo, e não ficar aguardando, esperando alcançá-la no fim. Deveis buscar o significado da liberdade em vosso trabalho, em vossas relações, em tudo o que fazeis. Vereis, então, que meditação é criação.

"Criação" é uma palavra que empregamos tão levianamente, tão facilmente! Um pintor espalha umas poucas tintas sobre uma tela e por causa disso se põe num extraordinário estado de entusiasmo. Trata-se de seu preenchimento, de seu meio de "expressão"; do "mercado" em que irá ganhar dinheiro ou reputação. E a isso ele chama "criação"! Todo escritor "cria'', e há escolas onde se ensina a escrever "criadoramente"; mas nada disso tem a mínima relação com a criação. Tudo é só reação condicionada de uma mente que vive em determinada sociedade.

A criação a que me refiro é coisa inteiramente diferente. É a mente no estado de criação. Ela poderá expressar ou deixar de expressar tal estado. A expressão é de muito pouco valor. Aquele estado de criação não tem causa e, por conseguinte, a mente que nele se acha está, a cada momento, morrendo e vivendo e amando e sendo. Tudo isso é meditação.

Desejais discutir sobre isto?

Krishnamurti, Saanen, 24 de julho de 1963,
Experimente um novo caminho



quinta-feira, 19 de abril de 2018

O estado de atenção sem resistência

O estado de atenção sem resistência

[...] Nestas últimas duas ou três semanas estive discorrendo, entre outras coisas, sobre a questão do medo e do sofrimento. Quando temos medo, ou quando nos acabrunha o sofrimento, não podemos achar-nos no estado de meditação. Para quem realmente deseja compreender a profundeza e a beleza da meditação, o medo deve cessar e nenhum sofrimento deve existir. E quando livres do medo, da amargura, de toda a estrutura psicológica da sociedade, que é feita de ambição, de avidez, de inveja, do desejo de êxito, da existência de poder, posição, prestígio — quando tudo isso foi examinado e compreendido, o cérebro se torna então tranquilo. Mas só podeis compreender e livrar-vos de toda essa agitação, se dela vos aperceberdes sem nenhum esforço. Se lutais para transformar o medo em coragem, não podeis alcançar o inteiro significado do temor. Conforme tenho explicado, o cérebro humano é o resultado de séculos de existência condicionada, “animalística”. Esse cérebro precisa ficar completamente quieto, e não podemos torná-lo quieto por meio de disciplina, de compulsão. Mas ele fica espontaneamente tranquilo ao compreender todas essas coisas sobre que estive falando.

Está agora bem claro que, para que a mente possa achar-se no estado de meditação, é imprescindível a eliminação do conflito. Existe conflito enquanto há divisão entre o pensador e o pensamento. Para a maioria de nós, o pensador está separado do pensamento, o experimentador difere daquilo que está sendo experimentado. Existindo essa divisão, será inevitável o conflito, porquanto ela é a origem do conflito. Eis porque é absolutamente necessário fazer cessar essa divisão.

O pensador é o censor, o produto condicionado de séculos de atividade egocêntrica; ele constitui o “centro” do medo, do conflito, do sofrimento.

Estou entrando paulatinamente, nisso que é meditação. Não fiqueis, até o fim, à espera de uma descrição completa de “como meditar”. O que agora estamos fazendo faz parte da meditação.

Ora, o que se precisa fazer é estar ciente do pensador, sem tentar dissolver a contradição para operar a integração do pensamento com o pensador. O pensador é a entidade psicológica que tem acumulado experiência na forma de conhecimento; é o centro que está sujeito ao tempo e resulta de influências ambientes sempre cambiantes, e desse “centro” ele olha, ele escuta, ele experimenta. Enquanto não se compreender a estrutura e a anatomia desse centro, haverá sempre conflito; a mente em conflito nenhuma possibilidade tem de compreender a profundeza e a beleza da meditação.

Na meditação não pode haver pensador, e isso significa que o pensamento deve terminar — o pensamento, que é impelido pelo desejo de alcançar resultado. A meditação nenhum interesse tem em resultados. Não é questão de respirar de uma certa maneira, de olhar para a ponta do nariz, ou de despertar a faculdade de executar certas “habilidades”, ou qualquer das restantes infantilidades e absurdos. Mas, se estivestes escutando estas palestras com plena atenção, apreendendo mais ou menos o significado do que se esteve dizendo, verificareis existir um estado mental que é sempre “meditativo”. A meditação não é coisa separada da vida. Quando conduzis um carro ou estais sentado num ônibus, quando tagarelais a esmo, quando passeais sozinho numa floresta ou observais uma borboleta que se deixa levar pelo vento — aperceber-se de tudo isso, objetivamente, faz parte da meditação.

[...] Esse estado de atenção sem resistência, sem conflito, sem se forçar a mente num canal predeterminado, é absolutamente necessário. E quando tiverdes atingido esse ponto, vereis por vós mesmos com que facilidade e suavidade se torna existente o silêncio da mente.

O silêncio que nós geralmente buscamos é o silêncio do declínio e da morte. A chamada “paz” alcançada pelos monges e outros que se retiraram do mundo é, em geral, uma condição de completa insensibilidade, um estado de embotamento. Eles de fato experimentam um certo silêncio mental, mas é o silêncio morto da “exclusão”. Já o silêncio a que me refiro é um estado de atenção em que se percebem todos os sons, todos os movimentos, todas as variações do pensamento e do sentimento. Se existe um “experimentador” ou “observador” do silêncio, não há silêncio, porém algo “projetado” pela mente. No silêncio completo, não há “experimentador do silêncio”, mas, sim, um estado de atenção em que ouvimos o avião a sobrevoar-nos, o trem que passa, e ao mesmo tempo a mente está atenta ao que se diz; ela observa, escuta tudo. Desse imenso silêncio em que a mente já nada busca, espera, deseja, exige, provém um movimento que é criação atemporal, inexprimível. Não é a criação do escritor, do pintor, do músico, porém algo que transcende tudo isso. Essa criação é energia — energia que é morte, energia que é amor — e nela não há começo nem fim. Ela só se manifesta pelo autoconhecimento, e esse processo, no seu todo, é meditação.

Espero não estejais sendo hipnotizados por minhas palavras. Com profunda investigação interior e pondo de parte, rigorosamente, toda a vossa mediocridade, inveja, avidez, desejo de fama — morrendo para toda espécie de técnica ou habilidade que houverdes adquirido, de modo que não sejais ninguém — sabereis então, por vós mesmos, o que é criação. Mas se apenas estais sendo influenciados por outrem, então, isso não é meditação.

Krishnamurti, Saanen, 9 de agosto de 1962,
O homem e seus desejos em conflito


quinta-feira, 12 de abril de 2018

A dificuldade da atenção total


A dificuldade da atenção total

PERGUNTA: A plena atenção é tão essencial em relação às coisas agradáveis, como em relação às coisas desagradáveis e dolorosas?

KRISHNAMURTI: Vede, desejamos dar continuidade às coisas agradáveis. Volvemos com a memória às alegrias da meninice, a prazeres outrora fruídos, ou nos apegamos àquilo que no momento estamos fruindo; e desejamos pôr fim às coisas não agradáveis. Mas, quando damos nossa atenção total, damo-la tanto ao agradável como ao doloroso. O desejo de continuidade do prazer é o começo do sofrimento. Por que não deve terminar o prazer? Desejais que a dor termine, mas que continue o prazer; e o depender do prazer embota a mente, torna-a insensível, exatamente como o faz a dor. Evitar o que chamamos sofrimento e buscar o prazer — tanto uma como a outra coisa acarretam aquela peculiar desatenção da mente indolente. A mente que conheceu muitos prazeres, que busca o prazer e “vive no prazer”, é uma mente entorpecida, e também o é aquela que evita o sofrimento ou continua a sofrer. Mas, vede, compreender a atenção total não é nada fácil.

Ser atento é entrar numa sala e ver as pessoas, as dimensões da sala, a cor do tapete, os quadros na parede — tudo. Mas não podeis fazê-lo, se dizeis: “não gosto daquele quadro”, “Ali está meu amigo fulano”, “Não gosto da cor do tapete”, “As dimensões da sala não são bem proporcionadas”, etc. etc. Se vossa mente está a “tagarelar”, dividindo-se entre o “de que gosta” e o “de que não gosta”, então não estais atento.

Vede, pode-se considerar uma flor botanicamente ou não botanicamente. Se a consideramos botanicamente, ainda assim há uma certa qualidade de atenção. Mas podemos também considerar a flor diferentemente, quer dizer, “sem conhecimento”. Não interpreteis “sem conhecimento” como um estado de ignorância. Ser “sem conhecimento” é possuir a sabedoria; porque o conhecimento tem continuidade, e a sabedoria não tem. “Estar atento” implica um estado de atenção isento de fronteira, limite, linha divisória. Observamos tudo, absorvemos tudo. Mas isso não se pode fazer quando há um motivo a inspirar a vossa atenção, por mais valioso que seja esse motivo. Se dizeis: “Vou estar atento, a fim de pôr fim ao meu sofrer” — nesse caso não ficais atento.

Tentai uma vez, se o desejardes, considerar totalmente uma flor, uma árvore, um ente humano. Considerar sem conhecimento, sem pensamento — o que não significa um estado de amnésia, i.e., ter a mente “em branco”. Vereis que, ao considerardes assim uma coisa, há um extraordinário estado de atenção que não é concentração. Concentração é exclusão. A mente que está atenta pode concentrar-se sem esforço, sem exclusão. Mas a mente que adquiriu a faculdade de concentrar-se por meio de esforço, treino, disciplina — essa mente jamais poderá estar atenta.

PERGUNTA: Vê-se que a mente só pode estar verdadeiramente tranquila por uns trinta segundos. Que entendeis, pois, por “tranquilidade mental”?

KRISHNAMURTI: Em primeiro lugar, a tranquilidade da mente não é um estado para ser alcançado. A pessoa não tem de dar vários passos para chegar a ele, não pode praticar um sistema a fim de se tornar tranquila, porque essa ação disciplinar só pode tornar a mente embotada. A mente que se ajusta é mente morta. Esta é a primeira coisa que cumpre perceber. A mente que se submete seja aos ditames da sociedade, seja à opinião de um vizinho, aos dogmas da igreja ou outra qualquer estrutura autoritária, nunca pode ser sensível — mas isso não significa que podeis desobedecer ao policial. Estamos tratando de coisa muito diferente. Estamos tratando da submissão no sentido de obedecer à autoridade da tradição, de um livro, um sistema, uma crença. A mente que se submete a um padrão — e isso é uma forma de disciplina — essa mente não é tranquila, porém, apenas, insensível. Esta a primeira coisa que se precisa compreender profundamente. Atrás de nossa submissão, encontra-se o desejo de segurança psicológica. A mente que busca segurança nunca pode ser livre; e é só em liberdade, completa liberdade psicológica, que pode existir a quietude mental.

Como vemos, não há passos para dar a fim de se alcançar a mente tranquila. De mais a mais, não sabeis realmente o que é “tranquilidade da mente”. O que vos interessa é, tão só, experimentar esse estado e retê-lo; daí, dizerdes que ele não dura mais de trinta segundos. Por que durar! Vede, o importante para vós não é a coisa em si, porém o que ela vos dá. Por isso, desejais saber como alcançá-la e se ela é durável, introduzindo assim o elemento tempo: ela deve ter continuidade, durar mais de trinta segundos. O silêncio que tem continuidade não é silêncio. Se o alcançais por meio do tempo, não se trata de serenidade mental.

E temos, em seguida, a questão do “observador e coisa observada”. Se há um experimentador do silêncio, não há silêncio. No momento em que dizeis: “Encontro-me num extraordinário estado de humildade”, acabou-se a humildade. Para vós, o silêncio é um estado que vós experimentais, assim como se experimenta a fome, e desejais reter essa experiência, desejais que ela continue. Por isso, há dualidade: vós e a coisa que desejais experimentar. Se examinardes isso profundamente, descobrireis que o silêncio que tendes experimentado e desejais continue, é meramente o reconhecimento de uma coisa já acabada; portanto, já não é silêncio.

Isto é talvez um pouco complicado, e requer atenção de vossa parte. O que estou dizendo é: o silêncio não pode ser “experimentado”. “Experimentar o silêncio” é uma coisa terrível. Que sugere essa experiência? Reconhecimento da coisa que experimentastes como silêncio e que é reação de vossa memória. O pensamento reconhece o silêncio. E no momento em que o pensamento reconhece o silêncio, isso já não é silêncio; é algo pertencente ao passado, a que destes no presente o nome de “silêncio”.

Assim, para compreenderdes o que é o silêncio, deveis estar livre da submissão e da limitação, livre da autoridade, livre das experiências de ontem, que acumulastes. Porque todas as experiências que acumulastes são condicionadas e ao mesmo tempo condicionantes; elas pertencem ao passado e fortalecem o passado. Também, é necessária a terminação do pensador e do pensamento como duas entidades separadas, porque esta divisão faz surgir o conflito da dualidade. Então, se não estais a buscar o silêncio, se nenhuma experiência estais a exigir, porque compreendestes o inteiro significado da experiência — então, talvez, sem o perceberdes, o silêncio poderá vir. Só a mente “inocente” é silenciosa. Alcançado esse estado, há, então, nesse silêncio, um movimento extraordinário, sem nenhum observador a observar o movimento; há só movimento, não há experimentador e, por conseguinte, não há experimentar. O tempo se tornou inexistente.

Para a maioria de nós, isso é apenas informação e, portanto, sem valor. O que tem valor é perceber o fato de que a autoridade, de qualquer espécie que seja, é destrutiva, seja autoridade da tradição, seja a do Salvador, do Mestre ou deste orador. Nós buscamos a autoridade porque desejamos certeza, não desejamos errar, queremos fazer o que é correto, seguro, respeitável. E uma mente respeitável não é apenas uma mente “burguesa”, medíocre, mas também uma mente insensível e incapaz de estar de todo atenta. Quando há atenção completa, há virtude — não uma imitação de virtude, conforme a pratica a sociedade respeitável. A virtude é então algo novo, que se encontra todos os dias, ao virar de cada esquina. Vereis que há então um silêncio e, nesse silêncio, imensurável criação.

PERGUNTA: Se vemos as coisas como são, com atenção total, com percebimento sem escolha, que acontece em relação às várias formas de arte, principalmente aquelas que se relacionam com a palavra?

KRISHNAMURTI: A beleza é coisa construída pelo homem? A beleza é questão de capacidade ou gosto pessoal? Ou é a beleza algo que transcende o pensamento e o sentimento, algo que nada tem que ver com capacidade, inclinação, simpatia e antipatia pessoal?

E que necessidade há de expressão? Podeis expressar uma dada coisa em palavras, na forma de uma poesia; podeis expressá-la na tela ou no mármore; podeis expressá-la na cozinha, ou no segurar a mão de outra pessoa. Mas, que necessidade há de expressão? Não estou dizendo que não deveis expressar-vos. Podeis expressar uma coisa qualquer, pô-la em palavras; mas a palavra não é a coisa. O símbolo nunca é o real. Mas vós expressastes a coisa e, porque sois dotado de capacidade ou talento, essa expressão se torna significativa; tem um valor, proporciona lucro, aplausos, popularidade.

Ora, como dizia, na atenção total há uma criação que não se pode exprimir em palavras, símbolos, ideias. Ela é energia total. Eu posso ter o dom de escrever poesias; mas, como posso definir essa energia total, essa coisa extraordinária chamada criação? Se não gostais da palavra “criação”, escolhei outro nome: “Deus”, “cachorro”, qualquer nome serve. Uma pessoa sente, talvez, que existe essa coisa — um movimento de criação, uma imensidade, uma atemporalidade. Entretanto, como expressar em palavras o imensurável? E, mesmo, quando o expressamos, a expressão não é a própria coisa. Assim, que valor, que importância, que significação tem a poesia para o homem ou a mulher que compreendeu essa atenção completa? Tem essa poesia necessidade de sair de casa para contemplar obras de arte, visitar museus, assistir a concertos? Entendeis? Quem bebeu na fonte da criação, de que mais necessita?

Mas, para a maioria de nós a arte, a poesia, ou a música se tornou muito importante. Somos como os assistentes de uma partida de futebol a observar os jogadores. Poucos estão jogando, e milhares assistindo. Porém, depois de vos desembaraçardes completamente da estrutura psicológica da sociedade, que importância tem a palavra, a forma, o som, o símbolo?

Receio que estejais escutando o orador na esperança de que ele vos ponha milagrosamente naquele estado ou a ele vos conduza. Mas tal não é possível. Para isso tendes de trabalhar intensamente. Requer-se uma energia imensa para ouvir corretamente. Impõe-se toda a vossa atenção, para destruir a vossa desatenção, e não há, então, distração de espécie alguma. Não existe distração, em tempo algum, para o homem atento. Já para o homem concentrado há sempre distração.

A arte, é claro, tem seu lugar próprio; mas a coisa não acaba aí. Só quando sois capaz de ultrapassar a arte, de superar a beleza criada pelo homem, só então conhecereis diretamente aquela beleza inexprimível. E, estando presente essa beleza, nada mais necessitais buscar.

Krishnamurti, Londres, 7 de junho de 1962,
O homem e seus desejos em conflito


segunda-feira, 9 de abril de 2018

Atenção é um estado de “não saber”

Atenção é um estado de “não saber”

Se permitis, prosseguiremos com o que estávamos falando anteontem, ou seja sobre o significado da meditação. No Oriente, a meditação é uma prática diária de suma importância para aqueles que a exercem profundamente; mas talvez não seja tão importante nem tão séria no Ocidente. Mas, por ela envolver o mecanismo total da vida, convém considerar o seu significado.

Seria de todo fútil limitarmo-nos a seguir palavras ou frases, permanecendo no mero nível verbal. Se apenas seguimos esta questão intelectualmente, isso é o mesmo que acompanhar um ataúde até a cova. Mas, se deveras a aprofundardes, ela vos revelará as coisas mais extraordinárias da vida. Como disse, não estamos lendo o primeiro capítulo de um livro, porquanto não tem fim o mecanismo total da vida. Temos, porém, de considerar cada ponto que for surgindo.

Examinaremos a matéria com certa profundeza e amplitude, como o vereis; mas, antes disso, acho necessário compreender o que é pensamento negativo e o que é pensamento positivo. Não estou empregando as palavras “positivo” e “negativo” em sentidos opostos. Os mais de nós pensamos positivamente, acumulamos, adicionamos; ou, quando achamos conveniente, proveitoso, subtraímos. O pensamento positivo é imitativo, acomodatício, ajustando-se ao padrão da sociedade ou àquilo que deseja; e com esse pensamento positivo estamos quase todos satisfeitos. Para mim, tal pensamento não conduz a parte alguma. Mas o pensamento negativo não é o oposto do pensamento positivo; constituí um estado, um processo completamente diferente; e, a meu ver, impede compreender isso claramente, antes de prosseguirmos. Pensar negativamente é desnudar a mente de todo; pensar negativamente é aquietar o intelecto, o repositório de reações.

Deveis ter notado que o intelecto está constantemente muito ativo, constantemente reagindo; o intelecto tem de reagir, senão morre. E, no seu reagir, ele cria “mecanismos” positivos a que chama “pensar”; e todos esses mecanismo são defensivos, mecânicos. Quem observa seu próprio pensar poderá ver que o que estou dizendo é muito simples, nada complicado.

O mais importante é manter-se o intelecto plenamente desperto e sensível, sem reagir; por essa razão, considero necessário pensar negativamente. Poderemos depois apreciar isso mais extensamente, mas, se compreendestes o que acabo de dizer, vereis que o pensamento negativo não implica esforço algum, ao passo que o pensamento positivo exige esforço; e esforço é conflito e implica consecução de objetivo, repressão, contradição.

Observai vossa própria mente, vosso próprio intelecto a funcionar; não vos limiteis a ouvir minhas palavras. As palavras não têm significação profunda, servindo unicamente para transmitir, comunicar algo. Se permanecerdes no nível verbal, não podereis ir muito longe.

Sabemos, pois, que — por motivo de nossa educação, meio cultural, influências sociais, religiosas, etc. — todos nós temos o intelecto muito ativo, mas a totalidade da mente está bem embotada. E tornar o intelecto tranquilo e ao mesmo tempo plenamente sensível, ativo mas sem cultivar meios de defesa, isso é tarefa verdadeiramente árdua, como deveis saber se já considerastes esta matéria. E manter o intelecto extraordinariamente ativo, porém totalmente tranquilo, isso nenhum esforço exige.

O esforço afigura-se à maioria de nós como uma parte de nossa existência; aparentemente, não podemos viver sem ele: o esforço para sairmos da cama de manhã, o esforço de irmos para a escola, o escritório, o esforço para sustentar uma atividade contínua, o esforço para amarmos alguém. Toda a nossa vida, do momento de nascermos ao momento de baixarmos à sepultura, é uma série de esforços. Esforço implica conflito; e nenhum esforço existe no observar as coisas tais como são, o fato, tal qual é. Mas nós nunca nos observamos como somos, consciente ou inconscientemente. Sempre tratamos de modificar, substituir, transformar, reprimir o que vemos em nós mesmos. Tudo isso gera conflito; e a mente, o intelecto que se acha em conflito nunca está quieto. E para pensarmos profundamente, penetrarmos mui profundamente, necessitamos de um intelecto que não esteja embotado, que não esteja disposto a dormir, que não se deixe narcotizar pela crença, pelas suas defesas — necessitamos de um intelecto intensamente ativo e ao mesmo tempo tranquilo.

É o conflito que embota a totalidade da mente; assim, se desejamos investigar a questão da meditação, se desejamos penetrar profundamente a vida, temos, desde o início, de compreender o conflito e o esforço. Se tendes observado, deveis saber que nosso esforço é sempre para alcançarmos um alvo, tornar-nos alguma coisa, termos êxito; e por essa razão existe conflito e frustração, com o inerente sofrimento, esperança e desespero. E o que está sempre, a todos os momentos, em conflito, embota-se. Não conhecemos pessoas que vivem em contínuo conflito, e não sabemos como estão embotadas? Assim, para podermos ir muito longe e muito profundamente, temos de compreender perfeitamente a questão do conflito e do esforço. O esforço, o conflito resulta do pensamento positivo; quando há pensar negativo — a mais elevada forma do pensar — não há esforço, nem conflito.

Ora, todo pensar é mecânico, porquanto todo o pensar constitui uma reação de nosso fundo de experiência, nosso fundo de memória E, sendo mecânico, o pensar nunca pode ser livre. Poderá ser razoá­vel, sensato, lógico, conforme o seu fundo (background), sua educação, seu condicionamento; mas o pensar nunca pode ser livre.

Não sei se já experimentastes descobrir o que é pensar, não me refiro à definição lexicológica da palavra, ou à respectiva ideia filosó­fica, mas pergunto se já observastes que o pensar é reação.

Prestai atenção, porquanto temos de examinar esta matéria. Quando vos faço uma pergunta familiar, respondeis imediatamente, porque estais familiarizado com a resposta. Se se faz pergunta um pouco mais complicada, há um retardamento da resposta, enquanto o intelecto está funcionando, a buscar na memória a resposta. Se a pergunta é mais complicada ainda, mais longo se torna o intervalo de tempo, durante o qual o cérebro está a pensar, a buscar, esforçando-se por achar a resposta. E se vos fazem uma pergunta com a qual não estais absolutamente familiarizado, dizeis: “Não sei”. Mas esse “não sei” representa um estado em que o intelecto está esperando achar uma resposta, seja consultando livros, seja perguntando a alguém; ele espera achar a resposta. Todo esse mecanismo de pensar é, acho eu, muito fácil de perceber; é o que estamos fazendo a todas as horas, é a reação do Intelecto, provinda de nosso depósito de experiências, conhecimentos.

Ora, o estado da mente que diz “não sei” e aguarda uma resposta difere por inteiro do estado da mente que diz “não sei” e não fica à espera de resposta. Espero estejais entendendo, porquanto, se isso não ficar bem claro, receio que não podereis compreender o que vem a seguir. Ainda estamos falando sobre meditação e penetrando o problema do intelecto e da mente. Se não se compreende a raiz do pensamento, é completamente impossível transcender o pensamento.

Há dois estados: o intelecto que diz “não sei” e procura resposta, e o outro estado de “não saber”, por não haver resposta. Se isso ficar bem claro, podemos então passar a investigar a questão da atenção e da concentração.

Todos sabem o que é concentração. Sabe-o o colegial, quando deseja olhar para a janela e o professor lhe diz: “olhe para seu livro”. O colegial obriga sua mente a olhar para o livro, quando seu desejo real é olhar pela janela; por conseguinte, há conflito. É familiar à maioria de nós esse mecanismo de obrigar o intelecto a concentrar-se. E tal mecanismo de concentração é mecanismo de exclusão, não achais? Vedais o acesso, fechais a porta a qualquer coisa que perturbe a concentração. Por conseguinte, onde há concentração, há distração. Estais entendendo? Pois educam-nos para nos concentrarmos — que é mecanismo de excluir, vedar — e por isso há distração, conflito.

Ora bem, a atenção não é mecanismo de concentração, e nela não há distração. À atenção é coisa bem diversa, e vou agora apreciá-la.

Notai, por favor, que estamos falando de assunto muito sério; e vir aqui não é como ir a um concerto para divertimento. Este assunto requer grande trabalho de vossa parte, significa examinar sem nenhuma tendência para desejar ou não desejar. Se não podeis acompanhar-me seriamente, nesse caso ficai tranquilamente a escutar, escutai as palavras e esquecei-as. Mas, se penetrardes profundamente, há muita coisa para descobrir. Porque vereis — enquanto vou aprofundando a questão — que a liberdade é necessária. Quando a mente está em conflito, fazendo esforço, não há liberdade; não a há, tampouco, quando há concentração e resistência à distração. Mas, se compreendemos o que é a atenção, estamos então, também, começando a compreender que o conflito cessou completamente, existindo, portanto, a possibilidade de ficar a mente de todo livre — não apenas a mente superficial, senão também a mente inconsciente, onde se ocultam nossos secretos pensamentos e desejos.

Já sabemos o que é concentração; mas, que é atenção? Faço esta pergunta e a reação instintiva de cada um é achar a resposta, dar uma explicação, uma definição; e quanto mais engenhosa a explicação, mais satisfeitos ficamos. Não estou dando nenhuma definição; estamos investigando negativamente. Se se investiga com o pensar positivo, nunca se descobrirá a beleza da atenção. Mas, se compreendestes o que é pensar negativo — que não é pensar em termos de reação, e, nele, o intelecto não pede resposta alguma — descobrireis então o que é atenção. Vou examinar isso um pouco.

Atenção não é concentração; nela não há distração; na atenção não há conflito, não há busca de fim; o intelecto, portanto, está atento, o que significa que não tem fronteiras; está tranquilo. Atenção é o estado mental em que desapareceu todo o conhecimento, e só há investigação.

Tentai, uma vez, uma coisa simples. Ao sairdes a passeio, ficai atento. Notareis como ouvireis, como vereis muito mais do que com o intelecto concentrado; porque atenção é um estado de “não saber” e, portanto, de investigação. O intelecto, então, investiga, sem causa, sem motivo — e essa é a investigação pura, a qualidade da verdadeira mente científica. Ela pode ter conhecimentos, mas seus conhecimentos não interferem na investigação. Por conseguinte, uma mente ativa é capaz de concentrar-se; mas sua concentração não é resistência nem exclusão. Estais-me seguindo?

Esse estado de atenção é próprio da mente que não está atulhada de informações, conhecimentos, experiências; o estado da mente que vive no “não saber”. Isso significa que o intelecto, a mente, abandonou todas as influências, todos os preconceitos, todas as sanções; compreendeu a autoridade, dissolveu a ambição, a inveja, a avidez e está totalmente oposta à sociedade e sua moral. Ela já não segue. Essa mente já pode investigar.

Ora, para se investigar profundamente, requer-se silêncio. Se desejo admirar aquelas montanhas e ouvir a correnteza do rio, não só o meu intelecto deve estar tranquilo, mas também minha mente inteira — consciente e inconsciente — deve estar de todo quieta, para ouvir. Se o intelecto está a tagarelar, se a mente deseja apreender, segurar, então já não está vendo, escutando a beleza do som da corrente. A investigação, portanto, implica liberdade e silêncio.

Como sabeis, já se escreveram livros sobre como alcançar uma mente serena por meio da meditação e da concentração. Volumes já foram escritos acerca desta matéria — mas isso não significa que eu tenha lido qualquer deles. Pessoas que me procuram me têm falado a respeito deles. Exercitar a mente para se tornar silenciosa é puro contrassenso. Se treinais vossa mente para se tornar silenciosa, achai-vos então num estado de decadência, porquanto a mente que se ajusta por medo, por avidez, inveja ou ambição, é mente morta, embotada, estúpida. A mente embotada, estúpida, pode tornar-se quieta, mas permanecerá limitada e medíocre, e nada novo chegará a ela.

Assim, a mente atenta está isenta de conflito e, portanto, é livre; e essa mente é tranquila, silenciosa. Não sei se já alcançastes este ponto; se o alcançastes, deveis saber que isso de que estou falando é meditação.

Nesse processo de autoconhecimento, descobrireis que a mente silenciosa não é mente morta, porém em extremo ativa. Sua atividade não é a atividade que visa a um objetivo, nem atividade de somar e subtrair; porque esse estado intensamente ativo se tornou existente sem busca e sem esforço algum; em todo o percurso, ela tudo compreendeu, cada fase de seu existir. Não houve repressão de espécie alguma e, portanto, não há medo, nem imitação, nem ajustamento. E se a mente faz estas coisas, não há possibilidade de silêncio.

Agora, que acontece depois disso? Até agora empregamos palavras para efeito de comunicação; mas a palavra não é a coisa. A palavra “silêncio” não é o silêncio. Portanto, compreendei isto: para existir o silêncio, a mente deve estar livre da palavra.

Ora, quando a mente está verdadeiramente tranquila, portanto, ativa e livre, e não se está importando com a comunicação, a expressão, a realização — é então que há criação. Essa criação não é uma visão. Os cristãos têm visões do Cristo; e os hínduístas têm igualmente visões de seus pequenos deuses ou grandes deuses. Estão reagindo de acordo com seu condicionamento; estão projetando suas visões, e o que eles veem nasce de seu próprio fundo (background); o que veem não é o fato, porém coisa “projetada” de seus desejos, ânsias, esperanças. Mas a mente atenta e silenciosa não tem visões, porque se libertou de todo o seu condicionamento. Desse modo, essa mente sabe o que é a criação — que é coisa bem diferente da chamada “ação criadora” do músico, do pintor, do poeta.

Em seguida, se já alcançastes este ponto, vereis que há um estado mental fora do tempo e do espaço, em que, por conseguinte, se pode ver ou receber o imensurável. E o que se vê e se sente, tal como o estado de experimentar, pertencem ao momento e não são para guardar na memória.

Assim, aquela realidade imensurável, indenominável, que nenhuma palavra tem, aquela realidade só se manifesta quando a mente está toda livre e silenciosa, num estado de criação. O estado de criação não é um simples estado alcoólico, estimulado; mas quando uma pessoa compreendeu e passou por esse processo de autoconhecimento, e se acha livre de todas as reações de inveja, ambição e avidez, ver-se-á, então, que a criação é sempre nova e, por conseguinte, sempre destrutiva. E a criação nunca pode existir dentro da estrutura da sociedade, dentro da estrutura de uma individualidade limitada. Por conseguinte, a individualidade limitada a buscar a realidade nenhuma significação tem. E, quando há aquela criação, dá-se a total destruição de todas as coisas que um homem acumulou, e, por conseguinte, existe sempre o novo. E o novo é sempre verdadeiro, imensurável.

PERGUNTA: O “estado de atenção total” e o “desejo sem motivo” são a mesma coisa?
KRISHNAMURTI: Senhores, o desejo é uma coisa extraordinária, não achais? O desejo, para nós, é cheio de torturas; conhecemos o desejo como conflito e, por isso, lhe impusemos limitações. E nossos desejos são tão insignificantes, tão estreitos, tão mesquinhos, tão medíocres! Desejamos um carro, desejamos ser mais belos, desejamos conseguir algo. Vede como tudo isso é insignificante! E eu pergunto se existe desejo sem torturas, sem esperança e desespero. Existe. Mas isso não pode ser compreendido enquanto o desejo gerar conflito. Mas, havendo compreensão da totalidade do desejo, dos motivos, das torturas, das renúncias, da disciplina, dos tormentos que atravessamos — quando tudo isso foi compreendido, dissolvido, de modo que desapareceu completamente — então, talvez o desejo seja coisa diferente. Poderá ser Amor. E o amor pode ter sua expressão própria. O amor não tem amanhã e não pensa no passado; e isso significa que o intelecto não atua sobre o amor. Não sei se já observastes isto: como o intelecto interfere no amor, diz que ele deve ser respeitável, divide-o como divino e pecaminoso, está sempre a moldá-lo, controlá-lo, guiá-lo, ajustando-o ao padrão da sociedade ou da própria experiência.

Há, porém, estado de afeição, de amor, no qual não interfere o intelecto; e esse amor talvez possa ser encontrado. Mas, por que comparar? Por que dizer “ele é assim ou assado”?

Senhores, não sei se já observastes uma gota de chuva que caí do céu. Essa gota é da mesma natureza que todos os rios e todos os oceanos, todas as torrentes, e da água que bebeis. Mas aquela gota de chuva não está pensando que irá ser o rio. Ela cai, completa, total. Da mesma maneira, quando a mente passou por todo esse processo de autoconhecimento, ela está completa. Nesse estado não há comparação. A criação não é comparativa; e porque é destrutiva, não contém em si nada de velho.

Sendo assim, devemos, não verbal ou intelectualmente, porém realmente, empenhar-nos nesse processo de autoconhecimento, agora e por todo o sempre, pois não há fim do autoconhecimento. E como não tem fim, não tem começo e, por conseguinte, está no presente.

Outra coisa sobre a qual desejo falar é esta: por que gostamos de adorar? Como sabeis, todos gostamos de adorar um símbolo, um Cristo, um Buda. Por quê? Eu poderia apresentar-vos uma multidão de explicações: gostamos de identificar-nos com algo que é maior do que nós; gostamos de entregar-nos a algo que pensamos ser verdadeiro; gostamos de estar na presença de algo sagrado, etc. Mas a mente que adora é mente que está a morrer, a declinar. Quer cultueis o herói que vai alcançar a Lua, o herói do passado ou do presente, quer cultueis o homem que vos fala de um palanque, tudo vem a ser a mesma coisa; se rendeis culto, o estado criador nunca se tornará existente, nunca poderá aproximar-se de vós. E a mente que não conhece esse estado extraordinário sofre perenemente. Assim, uma vez compreendido o problema do culto, ele morre, como o cair de uma folha no outono. Pode então a mente prosseguir, livre de barreiras.

Krishnamurti, Saanen, 8 de agosto de 1961, O Passo Decisivo

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Só a mente de toda atenta, pode amar


Só a mente de toda atenta, pode amar

PERGUNTA: Gandhiji recorria ao jejum, como meio de modificar o coração dos outros. Seu exemplo tem sido seguido por muitos líderes, na Índia, que consideram o jejum como meio de purificar a si mesmos e à sociedade ambiente. Pode o sofrimento espontâneo ser purificador, e há purificação "vicária"?

KRISHNAMURTI: Sem nada aceitar nem rejeitar, investiguemos esta questão. Dizem que o sofrimento é necessário como meio de purificar a mente. Filosofias inteiras e religiões estão baseadas nesta ideia de que alguém, sofrendo por vós, vos purifica. Isso é possível? E que entendemos por sofrimento? Há o sofrimento causado pela fome, pelo debilitamento, pela doença, pela deterioração física. Uma sociedade baseada na aquisição e na inveja, há de criar inevitavelmente sofrimentos físicos — os que têm e os que nada têm. Isto é bem óbvio. E há o sofrimento psicológico: se eu vos amo e vós não me amais, sofro. Se sou ambicioso e desejo preencher-me numa posição preeminente, e algo acontece que me impede de alcançá-la, vejo-me frustrado e sofro. Dizemos que o sofrimento é um processo inevitável, e como tal o aceitamos; nunca pomos isso em dúvida, nunca perguntamos se é necessário sofrer psicologicamente.

E posso sofrer para o bem de outro? Posso transformar a sociedade pelo meu exemplo? Quando há exemplo, que acontece? Estabelece-se a autoridade; o seguir a autoridade gera temor; e o temor gera a mediocridade da mente superficial. Somos criados com base nessa ideia de que o exemplo, o herói, o santo, o guia, o guru, é necessário; e tornamo-nos, assim, seguidores, sem iniciativa própria, discos de gramofone, a repetir o mesmo velho padrão. Quando nos limitamos a seguir, perdemos todo o sentimento de individualidade, a plenitude da compreensão individual, e isso, muito evidentemente, não resolve os nossos problemas.

E também, se é preciso jejuar, porque jejuar publicamente? Porque tanto espalhafato, barulho, publicidade, tanto toque de caixa? Porque desejais produzir impressão no povo, e o povo é facilmente impressionável. E depois, que se segue? As pessoas se transformaram? Vossa intenção, quando jejuais é de impressionar outras pessoas ou de descobrir o vosso próprio estado mental? Se quereis impressionar outras pessoas, isto é de muito pouca significação, já que é um mero expediente político, visando à exploração.

Mas se é vossa intenção realizar a purificação própria, a compreensão, é necessário o jejum? O que é necessário é penetração, clareza mental, não em dados períodos do ano, mas a todos os momentos, o que significa: estar plenamente vigilante, nas relações. É esta vigilância que vos revela o que sois. Não há dúvida de que um estômago repleto torna a mente embotada; mas embotada se torna também a mente que pratica um sistema, para se esclarecer. A mente, de toda evidência, se embota pela prática de uma virtude. E, no entanto, pensamos que sofrer, jejuar, oferecer exemplos, são coisas necessárias para se promover a transformação da sociedade. Positivamente, o exemplo gera a autoridade — não importa saber se ela é nobre, ou estúpida, ou histórica. E quando submetidos à tirania do exemplo, nossa mente está apenas a ajustar-se a um padrão. O padrão pode ser amplo ou estreito, mas é sempre padrão, molde, e a mente que segue um padrão é, sem dúvida, muito superficial.

O ajustamento, evidentemente, é uma maldição. Mediante ajustamento, pode a mente ser livre? A mente precisa escravizar-se para se tornar livre ou a liberdade deve existir desde o começo? A liberdade não é uma coisa que se vai ganhar, como recompensa, no fim da vida; não é a finalidade da vida, porque a mente que é incapaz de ser livre agora, nunca descobrirá o que é verdadeiro.

A sociedade não pode ser transformada pelo exemplo. A sociedade poderá reformar-se, operar certas mudanças pela revolução política ou econômica, mas só o homem religioso pode operar uma transformação fundamental na sociedade; e o homem religioso não é aquele que se submete à fome como um exemplo para transformar a sociedade. O homem religioso não está interessado, em absoluto, na sociedade, porque a sociedade está baseada na aquisição, na inveja, na ganância, na ambição, no medo. Isto é, uma mera reforma do padrão da sociedade só pode alterar a superfície, produzir uma forma mais respeitável de ambição. Mas o homem verdadeiramente religioso está totalmente fora da sociedade, porque não é ambicioso, não tem inveja, não está seguindo nenhum ritual, dogma ou crença; só esse homem pode transformar fundamentalmente a sociedade, e não o reformador. O homem que quer arvorar-se em exemplo cria conflitos, torna mais forte o medo e faz nascer várias formas de tirania.

É muito estranha esta nossa adoração dos exemplos, modelos, dos ídolos. Não queremos o que é puro, verdadeiro em si mesmo; queremos intérpretes, exemplos, mestres, gurus, para, por seu intermédio, alcançarmos alguma coisa — e tudo isso é puro absurdo, um meio de explorar a outros. Se cada um de nós fosse capaz de pensar claramente desde o começo, ou de reeducar-se para pensar claramente, todos esses exemplos, mestres, gurus, sistemas, se tornariam completamente desnecessários, como realmente são.

Vede, senhores, o mundo, infelizmente, é exigente demais para a maioria de nós; as circunstâncias são-nos pesadas demais, nossas famílias, nossa nação, nossos guias, nossos empregos prendem-nos firmemente, mantêm-nos escravizados — e vagamente esperamos, de alguma maneira, encontrar a felicidade. Mas esta felicidade não vem vagamente, não vem se estais escravizados pela sociedade, se sois escravo do ambiente. Ela só vem, quando a mente está em liberdade — e isso não significa liberdade de pensamento. O pensamento nunca é livre. Mas a mente pode ser livre, e essa liberdade vem, não quando penetramos as múltiplas camadas do inconsciente, analisando a memória dos incidentes e experiências, mas só quando há atenção completa. No processo da auto-análise tem de haver sempre o analista; mas o analista faz parte da coisa analisada, assim como o pensador faz parte do pensamento, e se não compreendeis o problema central, só havereis de aumentar os problemas e criar mais sofrimentos.

A mente não pode ser tornada esclarecida, pura, "inocente", por nenhum método, nenhuma disciplina, nem pela prática de qualquer virtude. A virtude é essencial, mas a virtude cultivada não é virtude. O sofrimento, naturalmente, tem de ser compreendido. Enquanto existir o "eu", o "ego", tem, de haver sofrimento. O homem evita esse sofrimento, mas nesse próprio evitar do sofrimento, ele fortalece o "ego", e todas as suas atividades sociais, suas reformas, só podem criar mais malefícios, mais aflições. Isto também se vos tornará óbvio, se refletirdes um pouco.

Assim, há necessidade de ação completamente dissociada da sociedade, uma maneira de pensar não contaminada pela sociedade, porque só então se tornará possível a verdadeira revolução — que não é revolução superficial, num nível único, econômico, social ou de outra ordem. A revolução total tem de realizar-se no próprio homem e só então a mente pode resolver os crescentes problemas da sociedade.

Agora, tendes escutado tudo isso, concordando ou discordando; mas, como já disse, não há nada com que concordar ou de que discordar. Tudo isso são fatos e, conhecedores desses fatos, que ides fazer? Por certo, é muito importante averiguar isso. Retornareis à sociedade de que sois prisioneiros, ou escutastes com atenção completa? Se escutastes com toda a atenção, esta atenção produzirá sua ação própria e nada tereis que fazer. Isso é como o amor. Amai, e agireis. Mas, sem amor, não importa o que façais — praticando, disciplinando, reformando — o coração nunca se esclarecerá. E é isto que está acontecendo no mundo. Temos exemplos, disciplinas, técnicas maravilhosas e, no entanto, os nossos corações estão vazios, porque repletos das coisas da mente. E quando vazios os nossos corações, as nossas soluções para tantos problemas são também vazias. Só a mente capaz de atenção completa sabe amar, porque esta atenção é ausência do "eu".

Krishnamurti, Segunda Conferência em Madrasta, 15 de janeiro de 1956
Da Solidão à Plenitude Humana

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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill