Só a mente de toda atenta, pode amar
PERGUNTA: Gandhiji recorria ao jejum, como meio de modificar o coração dos outros. Seu exemplo tem sido seguido por muitos líderes, na Índia, que consideram o jejum como meio de purificar a si mesmos e à sociedade ambiente. Pode o sofrimento espontâneo ser purificador, e há purificação "vicária"?
KRISHNAMURTI: Sem nada aceitar nem rejeitar, investiguemos esta questão. Dizem que o sofrimento é necessário como meio de purificar a mente. Filosofias inteiras e religiões estão baseadas nesta ideia de que alguém, sofrendo por vós, vos purifica. Isso é possível? E que entendemos por sofrimento? Há o sofrimento causado pela fome, pelo debilitamento, pela doença, pela deterioração física. Uma sociedade baseada na aquisição e na inveja, há de criar inevitavelmente sofrimentos físicos — os que têm e os que nada têm. Isto é bem óbvio. E há o sofrimento psicológico: se eu vos amo e vós não me amais, sofro. Se sou ambicioso e desejo preencher-me numa posição preeminente, e algo acontece que me impede de alcançá-la, vejo-me frustrado e sofro. Dizemos que o sofrimento é um processo inevitável, e como tal o aceitamos; nunca pomos isso em dúvida, nunca perguntamos se é necessário sofrer psicologicamente.
E posso sofrer para o bem de outro? Posso transformar a sociedade pelo meu exemplo? Quando há exemplo, que acontece? Estabelece-se a autoridade; o seguir a autoridade gera temor; e o temor gera a mediocridade da mente superficial. Somos criados com base nessa ideia de que o exemplo, o herói, o santo, o guia, o guru, é necessário; e tornamo-nos, assim, seguidores, sem iniciativa própria, discos de gramofone, a repetir o mesmo velho padrão. Quando nos limitamos a seguir, perdemos todo o sentimento de individualidade, a plenitude da compreensão individual, e isso, muito evidentemente, não resolve os nossos problemas.
E também, se é preciso jejuar, porque jejuar publicamente? Porque tanto espalhafato, barulho, publicidade, tanto toque de caixa? Porque desejais produzir impressão no povo, e o povo é facilmente impressionável. E depois, que se segue? As pessoas se transformaram? Vossa intenção, quando jejuais é de impressionar outras pessoas ou de descobrir o vosso próprio estado mental? Se quereis impressionar outras pessoas, isto é de muito pouca significação, já que é um mero expediente político, visando à exploração.
Mas se é vossa intenção realizar a purificação própria, a compreensão, é necessário o jejum? O que é necessário é penetração, clareza mental, não em dados períodos do ano, mas a todos os momentos, o que significa: estar plenamente vigilante, nas relações. É esta vigilância que vos revela o que sois. Não há dúvida de que um estômago repleto torna a mente embotada; mas embotada se torna também a mente que pratica um sistema, para se esclarecer. A mente, de toda evidência, se embota pela prática de uma virtude. E, no entanto, pensamos que sofrer, jejuar, oferecer exemplos, são coisas necessárias para se promover a transformação da sociedade. Positivamente, o exemplo gera a autoridade — não importa saber se ela é nobre, ou estúpida, ou histórica. E quando submetidos à tirania do exemplo, nossa mente está apenas a ajustar-se a um padrão. O padrão pode ser amplo ou estreito, mas é sempre padrão, molde, e a mente que segue um padrão é, sem dúvida, muito superficial.
O ajustamento, evidentemente, é uma maldição. Mediante ajustamento, pode a mente ser livre? A mente precisa escravizar-se para se tornar livre ou a liberdade deve existir desde o começo? A liberdade não é uma coisa que se vai ganhar, como recompensa, no fim da vida; não é a finalidade da vida, porque a mente que é incapaz de ser livre agora, nunca descobrirá o que é verdadeiro.
A sociedade não pode ser transformada pelo exemplo. A sociedade poderá reformar-se, operar certas mudanças pela revolução política ou econômica, mas só o homem religioso pode operar uma transformação fundamental na sociedade; e o homem religioso não é aquele que se submete à fome como um exemplo para transformar a sociedade. O homem religioso não está interessado, em absoluto, na sociedade, porque a sociedade está baseada na aquisição, na inveja, na ganância, na ambição, no medo. Isto é, uma mera reforma do padrão da sociedade só pode alterar a superfície, produzir uma forma mais respeitável de ambição. Mas o homem verdadeiramente religioso está totalmente fora da sociedade, porque não é ambicioso, não tem inveja, não está seguindo nenhum ritual, dogma ou crença; só esse homem pode transformar fundamentalmente a sociedade, e não o reformador. O homem que quer arvorar-se em exemplo cria conflitos, torna mais forte o medo e faz nascer várias formas de tirania.
É muito estranha esta nossa adoração dos exemplos, modelos, dos ídolos. Não queremos o que é puro, verdadeiro em si mesmo; queremos intérpretes, exemplos, mestres, gurus, para, por seu intermédio, alcançarmos alguma coisa — e tudo isso é puro absurdo, um meio de explorar a outros. Se cada um de nós fosse capaz de pensar claramente desde o começo, ou de reeducar-se para pensar claramente, todos esses exemplos, mestres, gurus, sistemas, se tornariam completamente desnecessários, como realmente são.
Vede, senhores, o mundo, infelizmente, é exigente demais para a maioria de nós; as circunstâncias são-nos pesadas demais, nossas famílias, nossa nação, nossos guias, nossos empregos prendem-nos firmemente, mantêm-nos escravizados — e vagamente esperamos, de alguma maneira, encontrar a felicidade. Mas esta felicidade não vem vagamente, não vem se estais escravizados pela sociedade, se sois escravo do ambiente. Ela só vem, quando a mente está em liberdade — e isso não significa liberdade de pensamento. O pensamento nunca é livre. Mas a mente pode ser livre, e essa liberdade vem, não quando penetramos as múltiplas camadas do inconsciente, analisando a memória dos incidentes e experiências, mas só quando há atenção completa. No processo da auto-análise tem de haver sempre o analista; mas o analista faz parte da coisa analisada, assim como o pensador faz parte do pensamento, e se não compreendeis o problema central, só havereis de aumentar os problemas e criar mais sofrimentos.
A mente não pode ser tornada esclarecida, pura, "inocente", por nenhum método, nenhuma disciplina, nem pela prática de qualquer virtude. A virtude é essencial, mas a virtude cultivada não é virtude. O sofrimento, naturalmente, tem de ser compreendido. Enquanto existir o "eu", o "ego", tem, de haver sofrimento. O homem evita esse sofrimento, mas nesse próprio evitar do sofrimento, ele fortalece o "ego", e todas as suas atividades sociais, suas reformas, só podem criar mais malefícios, mais aflições. Isto também se vos tornará óbvio, se refletirdes um pouco.
Assim, há necessidade de ação completamente dissociada da sociedade, uma maneira de pensar não contaminada pela sociedade, porque só então se tornará possível a verdadeira revolução — que não é revolução superficial, num nível único, econômico, social ou de outra ordem. A revolução total tem de realizar-se no próprio homem e só então a mente pode resolver os crescentes problemas da sociedade.
Agora, tendes escutado tudo isso, concordando ou discordando; mas, como já disse, não há nada com que concordar ou de que discordar. Tudo isso são fatos e, conhecedores desses fatos, que ides fazer? Por certo, é muito importante averiguar isso. Retornareis à sociedade de que sois prisioneiros, ou escutastes com atenção completa? Se escutastes com toda a atenção, esta atenção produzirá sua ação própria e nada tereis que fazer. Isso é como o amor. Amai, e agireis. Mas, sem amor, não importa o que façais — praticando, disciplinando, reformando — o coração nunca se esclarecerá. E é isto que está acontecendo no mundo. Temos exemplos, disciplinas, técnicas maravilhosas e, no entanto, os nossos corações estão vazios, porque repletos das coisas da mente. E quando vazios os nossos corações, as nossas soluções para tantos problemas são também vazias. Só a mente capaz de atenção completa sabe amar, porque esta atenção é ausência do "eu".
Krishnamurti, Segunda Conferência em Madrasta, 15 de janeiro de 1956
Da Solidão à Plenitude Humana