É possível um estado mental de inocência?
Observando-se os fatos de cada dia, torna-se bem evidente que, com o próprio esforço para resolvermos os numerosos problemas que nos assediam, só produzimos mais problemas; e parece-me, também, que enquanto não compreendermos os mecanismos do pensamento e, por conseguinte, estivermos impossibilitados de purificar a mente, nossos problemas irão inevitavelmente crescendo e se multiplicando. Embora cada um possa dizê-lo de modo diferente, toda pessoa inteligente está bem apercebida de que a mente tem, de ser purificada; e, para o expressarmos com toda a simplicidade, o que daí decorre é que, enquanto o instrumento com que o homem opera — a mente — não estiver esclarecido, desapaixonado, livre do "eu" com seus inumeráveis preconceitos e temores, tanto conscientes como inconscientes — enquanto a mente não for expurgada de tudo isso, nossos problemas aumentarão sempre. Todos sabemos disso, e toda religião de certa importância o afirma, de diferentes maneiras. Entretanto, por que razão nunca parecemos capazes de purificar a nossa mente? É porque não existem sistemas suficientes, ou porque o verdadeiro sistema ainda não foi inventado ou posto em prática? Ou é porque nem método nem sistema algum pode produzir essa purificação? Certo, todos os sistemas e métodos geram tradições, produtivas de mediocridade mental; e uma mente medíocre, em face de um problema importante, inevitavelmente o traduzirá em conformidade com seu condicionamento.
Isto é, para lidar com qualquer problema importante, humano, percebemos a necessidade de uma mente que esteja esclarecida, purificada de todos os seus preconceitos e dizemos que, para purificarmos a mente, necessitamos de um sistema, um método, uma prática; mas se estamos realmente atentos, percebemos que no próprio praticar de um sistema a mente se deixa por ele prender e, por conseguinte, não pode libertar-se, expurgar-se, purificar-se. Dependente do sistema, a mente traduz o desafio ou a ele corresponde em conformidade com esse condicionamento. Isto também é bastante óbvio, se o examinais.
Temos muitos problemas, em todos os níveis de nossa existência e, para corresponder a esses problemas, a mente tem de ser nova, ardorosa, vigilante. Para produzir essa mente esclarecida, nova, purificada, dizemos ser necessária a prática de um sistema; mas sabemos que no próprio praticar de um sistema, a mente se torna tortuosa, limitada, pervertida. É óbvio, portanto, que os sistemas não libertam a mente, e, penso que esse fato deve ser compreendido perfeitamente, antes de podermos entrar mais fundo na questão que desejo apreciar nesta tarde.
Em geral, pensamos que um método, um sistema, uma prática, libertará a mente ou a ajudará a pensar com clareza. Mas pode qualquer espécie de sistema ajudar a mente a pensar com toda a clareza, sem tendências, livre do centro do "eu", do "ego"? A prática de um sistema não robustece o "eu"? Embora se suponha que o sistema vos ajudará a libertar-vos do "eu", do "ego", ou qualquer termo que preferirdes, para designar essa atividade egocêntrica da mente, a própria prática de um sistema não acentua o egocentrismo, embora num plano diferente?
Está visto, pois, que a mente nunca pode ser libertada por um sistema. Entretanto a nossa mente em geral, está enredada em algum sistema, que é a rotina tradicional, e isso invariavelmente gera mediocridade. É o que aconteceu a quase todos nós, não? A mente que funciona pela rotina dos hábitos, da tradição, antiga ou moderna, — e a isso chamamos conhecimento — defronta-se com um problema imenso, um problema em constante mutação. Pessoal ou impessoal, coletivo ou individual, não há problema estático. Mas a mente é estática, porque presa numa rotina de tradição e de hábitos, apegada a uma certa maneira de pensar; assim sendo, observa-se sempre uma contradição entre a condição estática da mente e o problema em constante mutação, em movimento constante. Essa mente é incapaz de fazer frente ao problema e resolvê-lo.
Afinal de contas, estais atendendo aos problemas como hinduístas, isto é, com a tradição da cultura hindu, exatamente como o católico ou o comunista atende a qualquer problema em conformidade com seu especial condicionamento. Entretanto, os mais de nós concordamos que a mente tem de ser purgada, purificada, para que possa enfrentar a vida, achar Deus, a Verdade, ou como quiserdes chamá-lo.
Ora, desejando enfrentar esse desafio, descobrir aquela coisa nova, dizemos que a mente precisa ser purificada pela prática de um sistema. Mas, se prestamos muita atenção, verificamos que qualquer sistema mutila a mente, não a liberta. Que se deve então fazer? Este é um problema com que todos nos defrontamos, não é verdade? O desafio, que é o mundo, tal como o é hoje, é totalmente, novo, com novas exigências, e não podemos de modo nenhum atender ao novo com as tradições, as ideias, as lembranças e o conhecimento do velho — verdadeiros fatores de deterioração. Pode-se ver que, pela prática de um método, a mente se mutila, que no próprio processo de cultivar a virtude, o "eu" se torna mais forte. Há necessidade de virtude, porque a virtude produz ordem: entretanto, a virtude que é cultivada, praticada, dia a dia, deixa de ser virtude. Percebendo isso, que deve a mente fazer?
Pode-se ver muito bem que a mente, a fim de poder enfrentar o desafio, enfrentar este mundo estranho, com suas aflições cada vez mais numerosas, suas enormes contradições e frustrações, tem de ser tornada nova, fresca, pura, "inocente". E como produzir esse estado mental? Pode o tempo produzi-lo? Isto é, a mente que está embotada, que é estúpida, medíocre, pode, pelo cultivo do ideal da pureza, da inocência, da claridade, alcançar aquele outro estado, através do tempo? O que é pode ser transformado em o que deveria ser, pelo cultivo do ideal? Quando a mente diz: "Estou aqui e preciso de tempo para alcançar o estado ideal, que se acha lá, que fez ela? Inventou o ideal, separado do fato, e então é necessário o tempo, para transpor essa distância, — pelo menos é isso que dizemos. Temos, pois, como se vê, cômodas teorias para justificar a inevitabilidade do tempo — evolução, progresso pelo desenvolvimento, etc.. Mas, se se examinar muito atentamente a noção do tempo como meio de se alcançar um ideal, ver-se-á que esta noção nasceu de uma atitude extremamente indolente e sutil tendente ao adiamento.
Desde a infância, somos educados na base deste conceito do ideal, do exemplo, da perfeição final, para cuja consecução dizemos ser necessário o tempo. Mas o tempo pode dissolver a atividade egocêntrica do "eu", do "ego", causadora de tantos malefícios? O tempo implica prática, progresso em direção a algo que deveria ser; mas esse algo é "projeção" de uma mente que se acha enredada em sua própria desdita, seu próprio condicionamento. O ideal, pois, o que deveria ser, é produto de uma mente condicionada, projeção de uma mente aflita, uma mente ignorante, cheia de atividades egocêntricas. Por conseguinte, o ideal contém o germe do presente; e se o examinardes muito atentamente, se o considerardes profundamente, vereis que o tempo não pode produzir o expurgo do "eu". Que cabe então à mente fazer?
Compreendeis, senhores? Sistema algum pode resolver este problema. Ainda que pudésseis praticar um sistema durante mil anos, o "eu" continuaria vivo, porque a própria prática de um sistema torna mais forte o "eu". Tampouco pode o ideal, em tempo algum, resolver este problema, porque o ideal requer tempo, para se progredir desde o que é — o fato — até o que deveria ser: e esta perseguição de, o que deveria ser impede a compreensão de o que é. O que é só pode ser compreendido quando a mente está, de todo, livre do ideal, da ideia de progresso através do tempo. Entretanto, são esses os dois únicos recursos com que contais. Servis-vos do ideal como uma alavanca para vos libertardes de o que é, ou praticais um sistema, o que, invariavelmente, gera mediocridade. E a mente medíocre não pode, em circunstância alguma, corresponder a um desafio sobremodo dinâmico e que exige atenção completa. Que deve então a mente fazer?
Não sei se já pensastes, pelo menos um pouquinho, neste assunto. Temos problemas em todos os níveis de nossa existência — problemas econômicos, sociais, emocionais, intelectuais — e sempre nos abeiramos deles com um ponto de vista tradicional ou idealístico. Vamos ao encontro dos fatos com teorias, e pode-se ver muito bem que uma mente dominada pelas fórmulas, pelas conclusões e que engendra uma certa teoria a respeito de um fato, não pode de modo nenhum compreender o fato. Há sempre conflito entre o fato e a teoria; e nossa meditação, nosso sacrifício, nossa prática, que é cultivo da virtude, nunca poderá resolver o problema, porque, cultivar a virtude é robustecer o "eu". O "eu" se torna respeitável, e nada mais. Percebendo isso, que deve a mente fazer?
Vejamos se é possível experimentarmos alguma coisa, nesta tarde. Até aqui, tendes acompanhado o que venho dizendo, que é suficientemente claro e não me parece possais discordar de minhas palavras. Não há nada com que concordar nem de que discordar, porque só estou apresentando fatos. Se discordais, estais apenas negando um fato; e por mais que negueis um fato, ele continua existente. A dificuldade é que a maioria de nós se acha enredada na tradição — tradição como conhecimento, experiência, herdados ou adquiridos — e com essa mentalidade queremos abeirar-nos de um fato, negando-o ou traduzindo-o em conformidade com nosso condicionamento. É isso que realmente está acontecendo dentro de cada um de nós, em diferentes níveis e diferentes graus de intensidade.
Como disse, podemos nesta tarde experimentar alguma coisa — o que significa escutar, não com a memória, a tradição, não com a intenção de ganhar alguma coisa com o escutar, mas com atenção completa? Se formos capazes de escutar dessa maneira, a transformação será imediata — não importa se duradoura ou efêmera. A duração é sem importância, mas o que tem importância é a capacidade de escutar com atenção completa. Se a mente puder afastar de si todas as tradições, opiniões, avaliações, comparações, e pôr-se simplesmente a escutar o que se diz, vereis como, em virtude desta atenção completa, vos tornareis capazes de enfrentar qualquer problema; porque nessa atenção não existe problema algum. O problema é criado pela falta de atenção. A atenção é "o bom", mas "o bom" não pode ser cultivado pela mente — a mente condicionada pela tradição, pelo ambiente, por influências de toda ordem. O importante é possuir a capacidade de atenção, sem nada interpretar ou avaliar; mas não há possibilidade de se praticar essa atenção. Se o fizerdes, reduzi-la-eis ao nível da mediocridade e ela se tornará mera tradição. Mas se a mente puder enfrentar o problema com atenção completa, o problema desaparecerá, porque ela será então uma entidade totalmente diferente, não mais um produto do tempo. E esta é a mente capaz de receber o Eterno.
A dificuldade da maioria de nós é que nunca damos atenção completa a coisa alguma, mesmo quando nos interessa. Quando uma coisa nos interessa, ela nos absorve, assim como um brinquedo absorve a criança; e absorção não é atenção. Mas se sois capazes de escutar completamente, sem interpretação, sem avaliação - e isso significa dar toda a atenção — nesse caso, é possível transcender tudo quanto é tradição e a mente tornar-se sobremodo clara, "inocente", pura. Essa mente é capaz de resolver os problemas da vida.
Krishnamurti, Segunda Conferência em Madrasta, 15 de janeiro de 1956
Da Solidão à Plenitude Humana