A questão do ócio, do lazer e do descontentamento
Como só teremos mais duas palestras — a de hoje e a do próximo domingo — e havendo tantos assuntos para considerar, seria interessante investigarmos o problema do ócio, do lazer, o ócio gera em quase todos nós descontentamento e, por isso, ocupamo-nos com tantas coisas, a fim de mantermos nossa mente em atividade. Experimentamos diferentes atividades, e aquelas que nos parecem prometer êxito, lucro, satisfações, nessas nos estabilizamos. Passamos o resto da vida trabalhando em prol da causa ou da coisa a que nos consagramos; e achamos, assim, uma maneira de ocupar nossos dias, nossos pensamentos e nossos sentimentos. Eu considero o ócio muito importante — aquele período em que nada temos para fazer, aquele momento em que não existe nenhum pensamento, nenhuma ocupação, em que a mente não está dormindo, mas, sim, muito desperta.
Em geral dispomos de poucas folgas, pois passamos nossos dias muito ocupados — ganhando e perdendo, exercendo nosso emprego, comparecendo a reuniões, ao clube, procurando distrações, diversões; ou damos para ler e, se somos desses homens de ‘'inclinações religiosas”, dedicamo-nos à leitura dos livros considerados sagrados. Desse modo, passamos os dias e a vida inteira entregues a nossas ocupações; não há uma parte da mente que esteja “de folga”, quieta; não há uma parte de nosso ser livre para compreender totalmente os trabalhos, as atividades, as coisas que temos de fazer. Entretanto, dentro desse todo se encontra um certo repouso, uma certa tranquilidade, uma qualidade que permanece íntegra, uma qualidade que se purifica continuamente — assim como um rio que, por sua própria atividade, seu próprio movimento, se conserva límpido, “intato”, não corrompido.
Permiti-me salientar que esta não é uma palestra intelectual ou verbal, uma exposição de ideias. Aqui estamos reunidos, suponho, com o fim de nos investigarmos realmente, de abrir “a porta de acesso a nós mesmos” e descobrir o que é verdadeiro e o que é falso. E, talvez, pelo simples escutar de minhas palavras, possais ver claramente, por vós mesmos, o verdadeiro processo da mente, as tendências de vosso próprio pensar e os “hábitos” de vossos sentimentos.
A maioria de nós se sente descontente. Para quase todos nós, o descontentamento é uma tortura. Tentamos isto e aquilo e estamos sempre desejosos de dedicar-nos a uma dada norma de ação. E nossa ação, de modo invariável — se somos intelectualmente sensíveis — se dirige ou para os trabalhos sociais, visando à melhoria da sociedade, ou para a chamada religião, à margem da vida.
Nesse mecanismo, nesse “peregrinar” de nossa ação, encontramos alguma atividade que nos parece perfeitamente satisfatória e nela nos instalamos. Mas a vida não nos deixa em sossego. Sempre encontramos alguém que diz algo que destoa do padrão. E assim, de novo descontentes, nos pomos em movimento, à procura de alguma coisa; estamos sempre evitando o lazer, o momento de completa desocupação. Estando a mente deveras tranquila, não torturada por problemas, não ocupada com eles a todas as horas, talvez então, dessa placidez, possa nascer uma certa e diferente qualidade.
Nesta tarde, desejo investigar aquela qualidade da mente que tem lazeres e não se acha comprometida com coisa nenhuma; da mente capaz de ver, de atuar e, ao mesmo tempo, permanecer pura, não contaminada. Desejo, pois, se mo permitis, investigar aquela qualidade — mas não a maneira de adquiri-la. Desde já nos deve ficar bem claro que uma mente daquela qualidade não é encontrável por nenhum método, nenhum sistema, nenhum trabalho, nenhum sacrifício, nenhuma virtude. Tal é a beleza daquela mente. Mas, para compreendê-la, para que ela possa surgir na existência, temos de investigar o mecanismo do pensamento, investigar o que é o pensar — não por ser ele causador de sofrimento, por ser complexo, por criar problemas — que de fato cria.
Acho necessário compreender todo o mecanismo do pensamento, porque, se não o compreendermos, haverá inevitavelmente irracionalidade, pensar desequilibrado — e isso, naturalmente, não é uma maneira saudável de pensar. Precisamos de uma razão clara, de pensamento lógico, preciso. Necessitamos de profunda compreensão de como funciona o mecanismo do pensamento. Porque a mente, o cérebro que é incapaz de — verdadeiramente, desapaixonada e objetivamente — olhar, observar, sentir, perceber, com perfeito equilíbrio, de maneira sã, não pode evidentemente ir muito longe. Deste modo, cumpre-nos descobrir o que é pensar e, ao mesmo tempo, descobrir a contradição existente entre o pensador e o pensamento. Enquanto existe essa contradição, é inevitável o esforço e, por conseguinte, o conflito.
Devemos, pois, compreender todo o mecanismo do pensar. Como sabeis, nós temos uma longa história, um longo passado, um tesouro imenso, acumulado não só pela mente individual, mas também pela mente coletiva. Eu duvido que haja mente individual. Provavelmente ela não existe. Até que seja libertada, a mente é só coletiva. Mas a mente promana do tempo; o cérebro, com suas admiráveis aptidões, deriva do tempo, de muitos milhares de dias passados. Biologicamente, creio que a parte posterior do cérebro é o resultado de todos os instintos animais, ainda conservados, enquanto a parte anterior ainda está por desenvolver. Mas, para nós, o passado é o fundo de onde pensamos; o passado é a experiência, o conhecimento, inumeráveis incidentes e influências que se foram armazenando. A cultura, a civilização em que fomos educados — tudo isso é o passado. E, com base nesse passado, pensamos; ele constitui o nosso fundo; ele é que dá o “tom”, a qualidade do pensamento. Toda pergunta e todo “desafio” são respondidos pelo passado.
O pensamento é realmente — se o examinamos, se o observamos — reação da memória; e, sem memória, não há pensamento, não há pensar. O que quer que nos seja perguntado, qualquer que seja o desafio que se nos apresente, e qualquer que seja a nossa reação a ele — tudo provém do “registro”, é reação do passado, da memória, de todas as experiências acumuladas. Esse passado tem sempre um centro, de onde pensamos; e esse centro se torna da maior relevância em nossa vida; torna-se proveitoso, garante-nos segurança. Com base nele, pensamos, agimos. Tal centro é mais ou menos estático; embora seus “desafios” difiram na forma, embora lhe sejam acrescentadas e subtraídas coisas, ele subsiste sempre. Esse centro se tornou importante para cada um de nós. Pode ele ser a família; faculta-nos conforto, prazer, é o objeto em torno do qual tantas coisas temos reunido para nossa proteção. Há, pois, a existência desse centro, criado pelo pensamento — o mecanismo do passado. Enquanto não compreendemos o pensamento e o pensador, tem de haver dualidade, tem de haver conflito; e todo conflito consome energia, deteriora a qualidade da mente.
Assim, quem deseja realmente compreender esse mecanismo de acumular energia deve, por certo, compreender de todo essa divisão entre o pensador e o pensamento, e o conflito existente entre os dois.
Nós temos um centro; e esse centro é criado pelo pensamento, constitui ele nosso fundo. Este fundo é bem amplo e “histórico”, e contém também uma grande quantidade de mitologia e valores morais da sociedade. Por mais amplo que seja este fundo, nele há sempre um centro, o “eu”, muito mais importante do que a história. Esse “eu”, esse “ego” é criado pelo pensamento, porquanto, se não há pensar, não pode haver nenhum “eu”. Não é uma entidade sobrenatural que suscita o “eu”; ele é gerado pelos incidentes de cada dia, por cada acidente, cada experiência, por inumeráveis asserções e negações e buscas.
É possível eliminar o conflito entre o censor e a coisa censurada? Eis uma pergunta realmente importante para fazerdes a vós mesmo, porque com ela se elimina todo o conflito, toda a contradição. A mente em contradição, em conflito, está-se desperdiçando, deteriorando; todo problema a que damos tempo deteriora a mente, pois qualquer problema tem de ser resolvido imediatamente, instantaneamente. E o problema a que nos referimos é importantíssimo, porquanto se trata do centro de onde emanam todos os problemas.
É possível não termos centro algum? Não traduzais isso em vossa linguagem própria, ou tirada do Gita ou de outro livro; esquecei tudo isso e considerai a questão. Não a interpreteis em vossa linguagem peculiar — porque, assim, perdeis a vitalidade da percepção.
É possível pensar, sentir, agir, fazer tudo o que fazemos, sem aquele centro? As coisas que fazemos, e a angústia, o caos, a confusão, o sofrimento, o extremo desespero em que nos debatemos, existirão se nenhum centro existir, se nenhuma entidade existir, assumindo obrigações e atuando sob o ditado de uma coisa que se tornou mero feixe de lembranças e que assumiu desmedida importância? Por certo, só há pensar, e não há nenhum centro que pensa. Mas o pensamento, por várias razões, criou o centro. Uma delas é que o pensamento é inseguro, incerto; e o pensamento pode ser modificado, não tem segurança, não tem pouso, está sujeito a alterar-se, dia por dia. O homem, porém, está sempre em busca de um abrigo seguro, onde não seja perturbado em circunstância alguma; e, assim, gradualmente, o centro se torna psicologicamente muito importante, pois nele encontramos segurança.
Existe de fato segurança em alguma coisa — na família, no emprego, no que pensamos, no que sentimos? Há segurança, há alguma espécie de permanência? Entretanto, o pensamento busca a permanência em todas as coisas, e a busca de permanência é que produz o centro. Ouvi isso, apenas, pois nada podeis fazer. Não pergunteis; “Como poderei livrar-me do centro?” — pois esta é uma pergunta prematura e sem qualquer significação; mas, se observardes, se virdes simplesmente, se perceberdes os efeitos, então talvez se vos abra um novo caminho.
O pensamento, pois, é reação da memória, da experiência, do passado; constitui ele nossa mente, nossa consciência; e, nessa consciência, existe dor, alegria, sofrimento, lá estão as coisas que desejamos fazer, melhorar, modificar — tudo parte de lá. E, quando uma pessoa se sente insatisfeita com tudo, a menos que seja completamente infantil, acaba encontrando alguma satisfação estúpida, aí se instalando para o resto da vida; ou, por estar descontente, insatisfeita, deseja dedicar-se a um dado movimento. E, depois de iniciar as atividades nesse campo, verifica que não é bom o que está fazendo; e assim continua, passando de uma coisa para outra, sempre em perseguição de algo.
Para nós, a ideia e não a ação se tornou de suma importância, sendo a ação mero ajustamento à ideia. É possível agir sem ideia e, portanto, sem nenhum ajustamento, em tempo algum? Isso significa, com efeito, que devemos examinar a questão de porque a ideia tomou o lugar da ação. Muito se fala de ação, muito se pergunta: “Que é correto fazer?" O que é correto fazer não é uma ideia divorciada da ação, porque nesse caso a ação se torna ajustamento à ideia e, por conseguinte, a ideia continua sendo importante, e não a ação. Assim, como podereis atuar tão completamente, tão totalmente, que não haja ajustamento nenhum, que vivais plenamente a todas as horas? Não tem então a pessoa nenhuma necessidade de ideias, de conceitos, de fórmulas, de métodos. Não existe então o tempo, porém só ação. Só surge o tempo quando há ajustamento entre a ação e a ideia.
Isso poderá parecer extravagante e absurdo. Mas, se já examinastes bem a questão do pensamento, a questão da ideia (e visto que não podeis viver sem ação), deveis perguntar; “É possível viver sem a ideia, sem a palavra, porém somente com a ação?” Só depois de compreendido o mecanismo do pensamento, pode haver ação que não seja ajustamento. Sem dúvida, se pensardes nisso, vos mesmo, vereis que coisa extraordinária é.
Nós separamos a ação, o conhecimento e o amor, e os mantemos apartados; cada uma dessas coisas tem o seu impulso próprio, sua intensidade própria, sua própria força, e cada uma está em contradição com as outras. Assim é nossa existência diária, nossa vida. Perceber o significado dessas atividades separadas que, na realidade, pertencem à ordem das ideias e não dos fatos, e descobrir individualmente (quer dizer, não aprendê-lo de outrem nem de livro algum, mas descobrir por si mesmo o estado de ação sem ideia, o qual significa “fazer cada coisa totalmente”), isso só é possível quando há amor, afeição. O pensamento cria todas as divisões existentes na vida — amor divino, amor humano, etc.
O completo lazer da mente, resultante da compreensão, da observação — essa qualidade não é quietude, percepção do silêncio? Para mim, todo esse processo de auto-investigação é meditação. Meditação não é repetir palavras e fórmulas, não é uma pessoa hipnotizar-se para entrar em estados fantásticos, de toda espécie. Quem toma ópio ou um sedativo qualquer pode ter visões maravilhosas, mas isso não é meditação.
A meditação é, em verdade, esse processo de auto-investigação. Se vós mesmo a aprofundardes bem, não deixareis de atingir aquele estado em que é possível pensar sem o centro, ver sem o centro; atuar totalmente, sem ideia nem ajustamento; amar sem o centro e, por conseguinte, sem pensamento e sentimento. E depois de passardes por esse estado, descobrireis por vós mesmo uma mente inteiramente livre, sem limites, sem fronteiras; uma mente desimpedida, sem temor, não oriunda de nenhuma disciplina. Alcançado esse ponto, começamos a perceber, melhor, a mente começa a observar diretamente o próprio mecanismo do pensamento, verificando-se, assim, uma alteração completa daquela qualidade que é tempo, que é ontem, hoje e amanhã, de modo que a ação já não se relaciona com ontem, hoje e o dia imediato. Essa ação nenhum motivo tem, pois todo motivo está enraizado no passado, e qualquer ação nascida de motivo é sempre ajustamento.
Meditação, pois, é o perceber da totalidade de cada movimento do pensamento, e jamais negação dele; quer dizer, é deixar cada pensamento “florescer” livremente: pois só em liberdade pode o pensamento “florescer” e terminar. Assim, com esse trabalho (se isso se pode chamar “trabalho”) ou, melhor, com essa observação, a mente tudo compreendeu. Está então quieta, sabe o que realmente significa “estar quieta”, estar verdadeiramente tranquila. E, nessa tranquilidade, existem várias outras formas de movimento que, para quem nunca refletiu a esse respeito, só verbalmente se podem descrever.
PERGUNTA: Após um dia de intenso trabalho, a mente se torna cansada. Que se deve fazer?
KRISHNAMURTI: A pergunta é esta: Após um dia de trabalho, cheio de ocupações, vê-se que o pouco tempo disponível é todo ocupado; a mente está cansada; que se deve fazer?
Vede, nossa estrutura social está totalmente errada; nossa educação é absurda; essa chamada educação nada mais é senão repetir, “memorizar”, encher-se de conhecimentos. Como pode uma mente que lutou o dia todo, atuando como cientista, especialista, etc., que durante treze horas andou tão ocupada com isto ou com aquilo, como pode essa mente encontrar um lazer fecundo? Não pode. Como podeis vós, após quarenta ou cinquenta anos que passastes como cientista, burocrata, médico ou o que quer que seja (não estou dizendo que essas profissões não sejam necessárias), passar os próximos dez anos com vossa mente não condicionada, não incapacitada? A questão, pois, é realmente esta: É possível uma pessoa exercer um emprego, ser engenheiro, especialista em fertilizantes, ser um bom educador e, ao mesmo tempo, em todo o decorrer do dia, em cada minuto, manter a mente sobremodo penetrante, sensível, viva? Eis o verdadeiro problema, e não como ter tranquilidade no fim do dia. Vós vos dedicais à engenharia ou a outra especialidade; não podeis evitá-lo; a sociedade vo-lo exige, e vós tendes de trabalhar. É possível, em vosso trabalho, não vos deixardes colher na rodagem dessa coisa monstruosa que se chama sociedade? Eu não posso dar-vos a resposta. Digo ser isso possível, não teoricamente, porém realmente. Mas só é possível quando nenhum centro existe; foi por isso que vos falei a respeito do centro. Considerai um especialista em otorrinolaringologia que clinicou durante cinquenta anos. Qual é o céu desse médico? Naturalmente, é ouvido, nariz e garganta. Mas é possível ser-se um médico de primeira ordem e, ao mesmo tempo, funcionar, observar, estar apercebido de tudo, de todo o mecanismo do pensamento? Por certo, isso é possível, mas requer extraordinária energia. E essa energia é desperdiçada em conflitos, esforços; desperdiçais essa energia se sois vaidoso, ambicioso, invejoso.
Ao pensarmos em energia, esse termo nos sugere a ideia de “fazer alguma coisa”, ou a chamada ideia religiosa de que se necessita de imensa energia para alcançar Deus e que, para consegui-la, o homem deve ser celibatário, deve fazer isto, aquilo e aquilo outro — sabeis com quantas coisas as pessoas religiosas enganam a si próprias, e acabam extenuadas, vazias, embotadas. Deus não quer gente embotada, insensível. Só podemos chegar a Deus cheios de vitalidade, cada parte de nós bem viva, vibrante; mas, vede, a dificuldade está em vivermos sem nos deixarmos cair numa rotina, em hábitos de pensamento, de ideias, de ação. Se aplicardes devidamente a vossa mente, vereis que se pode viver neste mundo feio — emprego a palavra “feio” com seu significado lexicográfico, sem lhe dar nenhum conteúdo emocional — vereis que se pode viver neste mundo, trabalhar, agir, e ao mesmo tempo manter o cérebro alertado, semelhante ao rio que constantemente se purifica com seu próprio movimento.
Krishnamurti, Varanasi, 12 de janeiro de 1961, A mutação Interior