Por que estamos descontentes, e que há de maus no descontentamento? Evidentemente, estamos descontentes porque — para dize-lo com muita simplicidade — queremos ser alguma coisa. Se sou um bom pintor, pinto para tornar-me mais famoso; se escrevo um poema, sinto-me insatisfeito por não achá-lo bom e luto para melhorar a minha capacidade. Se sou dessas pessoas ditas religiosas, também neste terreno quero ser alguma coisa. Sigo o exemplo dos vários santos e desejo alcançar nome igual ao deles. Desde meninos, sempre nos dizem que devemos ser bons ou melhores do que os outros. Fui criado na base da comparação, da competição, da ambição e, por isso, levo em toda a vida o peso do descontentamento. Propriamente falando, descontentamento é inveja; e nossa cultura religiosa e social está baseada na inveja. Somos estimulados para sermos alguma coisa, para maior glória de Deus. Por um lado, estimula-se o descontentamento, e, por outro lado, queremos achar meios e modos de dominar o descontentamento. Estando descontentes, econômica, socialmente, recorremos aos exemplos religiosos, a fim de encontrarmos satisfação; meditamos, praticamos disciplinas, a fim de nos livrarmos do descontentamento, ficarmos em paz. Isto está acontecendo com todos vocês e eu lhes digo que é uma coisa completamente fútil, sem nenhum significado. Seguir, imitar, obedecer uma autoridade em assuntos religiosos é uma coisa má, assim como é uma coisa má a tirania do governo, porque então está completamente perdida a individualidade.
Atualmente, vocês não são indivíduos, e sim meras máquinas de imitar, produto de um certo meio cultural, um certo sistema educativo. Vocês são o corpo do coletivo, não são indivíduos, sendo isto muito óbvio. Todos são hinduístas ou cristãos, isto ou aquilo, com certos dogmas, crenças, o que significa que são produto da massa. Por conseguinte, não são indivíduos. Precisam estar totalmente descontentes, para poderem descobrir. Mas a sociedade não deseja lhes ver descontentes, porque teriam vitalidade, começariam a questionar, a investigar, a descobrir e, consequentemente, se tornariam perigosos para ela.
Infelizmente, o descontentamento de quase todos vocês está baseado no desejo de satisfação, e no momento em que se veem satisfeitos, desaparece o descontentamento. E então definham e declinam. Já não observaram como pessoas descontentes quando jovens, perdem esse descontentamento logo que obtêm um bom emprego? Dai ao comunista um emprego rendoso, e lá se foi o seu descontentamento. O mesmo acontece com as pessoas religiosas. Não riam — isso também acontece com vocês. Desejam encontrar o mestre certo, o guru certo, a disciplina certa: e o que se encontra é uma gaiola que os asfixiará de destruirá; e esta destruição se chama "busca da verdade"... Isto é, querem se achar permanentemente satisfeitos, para não sofrerem perturbação, descontentamento, não terem o desejo de investigar. Foi isso o que realmente ocorreu; e quanto mais antiga a civilização, tanto mais destrutiva, porque a tradição sempre gera mediocridade.
Vemos, pois, que o descontentamento, tal como ora o conhecemos, é meramente desejo de encontrar satisfação permanente. E existe de fato satisfação permanente, um permanente estado de paz? Ou só existe um estado em que nada é permanente? Só a mente que, na sua totalidade, é impermanente, incerta, pode descobrir o que é verdadeiro; porque a Verdade não é estática. A Verdade é sempre nova e só pode ser compreendida pela mente que está morrendo para todas as acumulações, todas as experiências e é, por conseguinte, fresca, jovem, "inocente".
Agora, existe descontentamento sem objetivo, sem "motivo"? Compreendem? A mente cujo descontentamento tem um "motivo" procurará uma conclusão que a satisfaça, destruindo o descontentamento; e, então, a mente definha, declina. Todo nosso descontentamento está baseado em algum "motivo", não? Mas agora estamos fazendo uma pergunta completamente diferente: existe descontentamento sem "motivo", que não seja produto de uma causa? Não devem investigar e averiguar isso? Ora, tal descontentamento é necessário. Ou empregamos uma palavra diferente — o que aliás é sem importância — digamos que é um movimento sem causa, sem "motivo". Penso que tal movimento existe, e isto não é mera especulação nem promessa. Quando a mente compreende o descontentamento que tem "motivo", o descontentamento nascido do desejo de satisfação, permanência; quando percebe, realmente, a verdade relativa a esse descontentamento, vem então à existência "outra coisa". Mas a "outra coisa" não pode ser compreendida nem experimentada, se há descontentamento com "motivo", e atualmente todo descontentamento nosso tem "motivo": não posso alcançar o que desejo, minha mulher não me ama, nada valho assim como sou e, portanto, tenho que ser diferente, e assim por diante. Há esta interminável multiplicidade de causas e efeitos, causadora dessa coisa que chamamos "descontentamento".
Ora, se a mente está consciente de todo esse processo e o compreende integralmente, percebe a sua verdade, verão então se manifestar um movimento sem "motivo" algum — um movimento, uma ação, uma coisa não estática , que se pode chamar Deus, a Verdade, ou como quiserem. Nesse movimento há beleza infinita, e ele pode ser chamado de "amor"; porque, afinal, o amor é sem "motivo". Se eu os amo e desejo algo de vocês, isto não é amor — embora eu lhe dê esse nome — porque, aí, há "motivo". A atividade social ou religiosa baseada em "motivo", ainda que a denominemos "serviço", não é serviço, porém, sim, autopreenchimento.
Pode-se descobrir o que é amar sem "motivo"? Isso é uma coisa que se precisa descobrir e que não pode ser praticada. Se disserem: "Como alcançarei esse amor?" — estarão fazendo uma pergunta sem significação, porque o desejo de alcançá-lo já é um "motivo". Se empregam um método, para alcançar esse amor, esse método se tornará mais o "motivo", que é "vocês". Vocês são importante, e não o amor.
Se penetrarem profundamente esta questão — o que é muito difícil e é, em si, meditação — penso que descobrirão um movimento sem "motivo", um movimento sem causa alguma e é esse movimento que traz a paz ao mundo, e não o movimento do descontentamento de vocês, determinado por alguma causa. O homem em que se verifica esse movimento sem causa é um homem religioso, é um homem que ama e, portanto, pode fazer o que deseja. Mas o político, o reformador social, o homem que cultiva a virtude, a fim de ser feliz ou de conhecer Deus, o homem cujos esforços são o resultado de um "motivo", num nível qualquer —, as atividades desse homem só podem gerar ódios, antagonismos e sofrimentos.
Eis porque muito importa que cada um de nós descubra por si mesmo, deixando de seguir Sankara, Ramana, Buda ou Cristo. Para nós mesmos descobrirmos, acharmos uma coisa, temos de ser livres; e não somos livres, se meramente citamos Sankara ou outra autoridade qualquer. Se seguimos, nunca achamos. Assim, pois, a liberdade está no começo, e não no fim. A liberdade precisa ser buscada agora, não no futuro. Liberdade significa estar livre de autoridade, da ambição, da avidez, da inveja, do descontentamento que tem um "motivo" e exige resultados, e que asfixia o verdadeiro descontentamento.
Torna-se necessária uma revolução, não dentro do padrão da sociedade, porém dentro de cada um de nós, a fim de que nos tornemos indivíduos totais e não pequenos Sankaras, pequenos Budas, pequenos Cristos. temos de empreender a jornada sozinhos, completamente desacompanhados, sem ajuda de ninguém, de nenhuma influência, de nenhum estímulo ou desestímulo; porque, então, já não existe "motivo" algum. A própria jornada representa o "motivo", e só os que a empreendem produzirão algo novo, algo não corrompido, neste mundo — e não os reformadores sociais, os "beneméritos", os mestres e seus discípulos, os pregadores de fraternidade. estes nunca trarão paz ao mundo. São eles os verdadeiros mal-feitores. O "homem da paz" é aquele que repele toda autoridade, que compreende, em todos os seus aspectos, a ambição, a inveja, que se desprende totalmente da estrutura desta sociedade aquisitiva e de todas as coisas envolvidas de tradição. Só então a mente é nova. E é necessária uma mente nova, para encontrar deus, a Verdade — ou como quiserem chamá-lo — não uma mente fabricada pela sociedade, pela influência.
Jiddu Krishnamurti em, Da solidão à plenitude humana