Inveja é mecanismo de comparação
Uma das grandes dificuldades, quando queremos comunicar-nos uns com os outros, é compreender o conteúdo, a intenção das palavras que empregamos, não achais? A profundeza de nossas palavras depende, sem dúvida, de nossa maneira de pensar, sentir e agir. Se pronunciamos as palavras superficialmente, ou se a palavra é meramente uma abstração, pouca significação terá o que dizemos. Mas se, ao contrário, a palavra não é mera abstração e tem um "ponto de referência" que compreendemos, de parte a parte, o qual estabelecemos juntos, com a, equilíbrio, com lucidez, com clareza, haverá então possibilidade de nos pormos em comunicação e uma reunião desta natureza será frutuosa. Mas, em geral, a dificuldade é que vós tendes um "ponto de referência" e eu tenho outro, muito diverso; ou, posso falar muito abstratamente, sem nenhum "ponto de referência" tornando-se, assim, impossível a comunicação, um profundo entendimento entre nós. Nessas condições, parece-me de grande importância possamos comunicar-nos uns com os outros, no mesmo nível e ao mesmo tempo. E esta comunicação só é realizável quando. compreendemos, vós e eu, o inteiro conteúdo das palavras que empregamos. A compreensão, por certo, é instantânea; não é para amanhã nem para depois de terdes ouvido esta conferência.
Para podermos compreender-nos reciprocamente, acho necessário não nos deixarmos enredar pelas palavras. Porque uma palavra como "Deus", por exemplo, pode ter um significado especial para vós, enquanto para mim pode representar uma ideia completamente diversa ou ideia nenhuma. Assim sendo, é quase impossível estarmos em comunicação uns com os outros, a menos que, tenhamos todos a intenção de compreender as palavras, e ultrapassá-las. A palavra "liberdade" em geral implica estar livre de alguma coisa, não é verdade? Significa, comumente, estar livre da avidez, da inveja, do nacionalismo, do rancor, disto ou daquilo. Entretanto, "liberdade" pode significar coisa muito diferente, ou seja o sentimento de ser livre, não de uma coisa, porém a "realização" do fato de "ser livre". E acho muito importante compreender este significado.
Em geral, não estamos bem familiarizados com o sentimento de "ser livre", mas precisamos familiarizar-nos com ele, acostumar-nos com esse sentimento, conhecê-lo. Porque a tirania se está a espalhar pelo mundo inteiro. Sob o disfarce de fascismo, comunismo, socialismo, etc., a sociedade está sendo cada vez mais organizada para ajustar-se a um plano — um plano quinquenal, um plano decenal, etc. — que torna necessária a existência de um corpo administrativo investido de autoridade, para levá-lo a efeito. E começa, assim, a tirania. Entretanto, a sociedade tem de ser organizada. Nestas condições, é verdadeiramente muito complexo o problema da liberdade — o conhecimento da liberdade — e acho muito importante examiná-lo.
Sem liberdade, não há evidentemente possibilidade alguma de explorar e descobrir o que é a verdade. Mas como é difícil a mente ser livre e experimentar, de fato, esse estado — e não apenas pensar que é livre! Para poder explorar e descobrir, deve a mente possuir essa qualidade, essa liberdade que não é o estado negativo de estar livre de alguma coisa. Acho que há uma diferença entre os dois estados. Quando, apenas, estou livre de alguma coisa, esse estado de liberdade é uma negação, um vácuo. Mas a "realização" do fato da liberdade que não é "estar livre de uma coisa", este é um estado positivo. Assim sendo, precisamos compreender o conteúdo desta palavra — "liberdade".
Desde a infância, educam-nos para sermos livres, mas somos condicionados, moldados pelo padrão social. Temendo que a liberdade possa desencaminhar a criança, fazê-la ultrapassar os limites permitidos, estabelecemos, por nossa vez, várias regras e preceitos, permissões e proibições, pensando que guiarão a criança pelo bom caminho, conduzindo-a à bem-aventurança, a Deus, à Verdade — ou como quer que se chame. Desde o início afirmamos ser necessário condicionar a mente, moldá-la. Por isso, nunca investigamos este problema da liberdade. Se o tivéssemos feito, os nossos valores, a nossa ação, toda a nossa perspectiva da vida, seriam completamente diferentes.
A questão, pois, é de saber se a mente, que é resultado de inumeráveis influências, dos livros que leu, do ambiente social, cultural e religioso em que foi educada, da memória que a moldou e a tornou assim como é — a questão é de saber se essa mente pode libertar-se, não abstratamente ou identificando-se com um ideal, porém libertar-se se verdadeiramente do passado. E, que é a continuidade do passado? Compreendeis o problema?
A mente, no momento, é de toda evidência um depósito de memórias — memória, que é acumulação, associação, reconhecimento, e reação. É muito interessante observar que existem atualmente máquinas que podem executar todas estas operações com muito mais rapidez do que a mente humana, provando-se assim que esta é um puro processo mecânico. E a mente que está presa a esse mecanismo, não importa quais sejam as suas atividades, tem de ser também mecânica. Pode, pois, a mente, reconhecendo este fato, manter-se num "estado de liberdade", embora possa fazer uso da máquina?
Não sei se estou esclarecendo bem a questão, mas acho-a muito importante. Porque, parece-me, nossa existência como indivíduos — se somos verdadeiros indivíduos, pois é provável que não o sejamos — é mecânica, rotineira, e, como indivíduos, não somos criadores. Não falo de criação no sentido restrito de "produção"; falo de criação, num sentido completamente diferente, que examinaremos mais adiante.
Ora bem, que é que dá à mente este senso de continuidade, em que não existe um só momento de liberdade, porém, unicamente, uma modificação constante, um processo mecânico de adição e subtração? Sem dúvida, só é possível a criação quando a mente não está sujeita ao mecanismo da memória. Acho que isso se vos tornará bem claro, se lhe prestardes atenção, embora verbalmente possa parecer difícil. Se observardes vossa própria mente, a operar, vereis que está continuamente a reagir, de acordo com aquele "fundo" constituído pela memória. Essa mente não pode conhecer o "estado de liberdade", o único em que é possível a criação. Para mim, é este o problema supremo; porque, é só no instante de "ser livre", que a mente pode descobrir algo completamente novo, não premeditado, não contaminado pelo passado.
Ora, que é que dá à mente essa continuidade mecânica, e porque teme a mente abandoná-la? E que é que cria o tempo — não o tempo cronológico, porém o tempo como sentimento de um movimento vindo de ontem e passando por hoje, para amanhã? Não há dúvida de que, enquanto a mente está em busca de mais, tem de existir este senso de continuidade. Estando insatisfeito comigo mesmo, assim como sou, desejo modificar-me; e para modificar-me digo que preciso de tempo. A modificação é sempre no sentido de mais; e quando peço mais, preciso da continuidade. A exigência de mais, é inveja, e nossa estrutura social está alicerçada na inveja. Há inveja, não só em nossas relações mundanas, mas também em nosso desejo de sermos mais espirituais. Enquanto a mente pensar em termos de mais — interior ou exteriormente — haverá inveja. E a libertação da inveja não é uma negação ou abstração da inveja, mas, sim, a total ausência de inveja, sem luta para ser não-invejoso.
Podemos examinar um pouco "este ponto? Sabeis o que é inveja, não? Penso que quase todos estamos perfeitamente familiarizados com este sentimento e talvez já tenhamos notado que toda a nossa sociedade se assenta na inveja. Há uma luta constante para se ser mais, não só na estrutura hierárquica da sociedade mas também interiormente. Vejo um automóvel, e desejo possuí-lo; vejo um santo, e desejo tornar-me santo. Esta luta incessante para ter ou vir a ser alguma coisa denota uma extraordinária insatisfação com o que somos; mas se desejamos compreender o que somos, não podemos compará-lo com o que gostaríamos de ser. A compreensão de o que é não resulta da comparação de o que é com o que deveria ser.
Não sei se já destes atenção, alguma vez, a este problema da inveja. Em nossos empregos, em nossa vida e trabalho de cada dia, a inveja campeia; transparece no respeito que tributamos ao homem que sabe mais, ao homem que tem poder, posição, prestígio, e na luta constante pelo mais, que se trava em nós mesmos. Todos conhecemos este sentimento de inveja, e enquanto ele existir, existirá frustração e sofrimento.
Ora, pode a mente libertar-se da inveja, totalmente? Considero muito importante esta questão; porque, se nunca for possível a mente libertar-se, de todo, da inveja, perpetuaremos uma sociedade baseada na aquisição, na ambição e todos os horrores que acarreta, e haverá um conflito infindável entre todos nós, a luta inútil para nos tornarmos algo, que se trava em todos os níveis de nossa existência. Pode a mente libertar-se da inveja? Se luto para libertar-me da inveja, pela disciplina, pela prática de um método, não há dúvida que dou continuidade à inveja, sob forma diferente. Aí está ainda presente o desejo de ser alguma coisa, tendo eu apenas mudado o objeto desse desejo: Quero ser agora o que chamo "não invejoso". Mas o desejo continua a ser o mesmo, a exigência de mais continua existente. Assim sendo, apercebida desse fato, pode a mente libertar-se da inveja? Se me acompanhardes lentamente, passo a passo, acho que percebereis isso.
Quando é que estou apercebido da inveja? A inveja não se torna existente pela comparação? Por certo, sou invejoso, porque vós tendes e eu não tenho. O próprio "mecanismo" de comparação é inveja. Eu sou um ente pequenino e insignificante, e vós sois um grande santo, e eu quero tornar-me igual a vós. Assim, onde há comparação, há inveja e, se observardes bem, vereis que somos educados nesta base. Nossa educação, nossa cultura, nossa maneira de pensar, tudo se baseia na comparação e na devoção à capacidade. Pode-se compreender o que quer que seja, pela comparação? Pela comparação, podemos ampliar o nosso saber; mas possuir conhecimentos não significa ter compreensão.
Assim, pois, a palavra inveja implica ambição, avidez, desejo de ser algo, não só socialmente mas também psicologicamente. E pode a mente libertar-se de todo dessa exigência de mais? Porque queremos mais? Esta exigência faz-nos progredir? Quando desejamos uma geladeira, um carro melhor, etc., isso, evidentemente, acarreta progresso, num certo nível. Mas, quando exigimos mais poder, mais preenchimento, mais virtude, quando psicologicamente desejamos alcançar um resultado, esta exigência interior destrói os benefícios do progresso técnico e traz sofrimentos ao homem. Enquanto, psicologicamente, estivermos exigindo mais, nossa sociedade será aquisitiva e continuará a haver conflito e violência. Não significa isto que devamos renunciar aos confortos físicos, aos benefícios produzidos pela tecnologia; mas é o impulso psicológico a nos servirmos dessas coisas como meios de autoexpansão — que é exigência de mais — que nos está destruindo.
Pode a mente libertar-se da inveja? Só poderá libertar-se, quando cessar a comparação, isto é, quando a mente se puser em confronto direto com o fato de que é invejosa. Estais compreendendo, senhores? Estar diretamente em confronto com o fato de que sou invejoso, não é a mesma coisa que o reconhecimento do fato mediante comparação. Espero estejais escutando, não apenas as minhas palavras, a descrição do que estou tentando transmitir-vos, porém escutando, no sentido de estardes verdadeiramente "experimentando" o que estou dizendo. Isto significa: observar a atividade de vossa mente, até vos tornardes apercebidos, diretamente apercebidos, do fato de que sois invejosos.
Ora, quando sabeis que sois invejosos? Sabeis que sois invejoso apenas quando existe comparação e empregais a palavra "inveja"? Não sabeis que sois invejoso, ao verdes uma coisa que desejais, e quando existe o desejo de mais mais prazer, mais prestígio, mais dinheiro, mais virtude, etc.? Ou sabeis que sois invejosos, independentemente do processo de desejar mais? Isto é, pode a mente perceber o fato de que é invejosa, independentemente desse desejar? Pode a mente libertar-se da palavra "inveja"?
A mente, afinal, é constituída de palavras, além de outros fatores. Pois bem; pode a mente libertar-se da palavra "inveja"? Fazei experiência a esse respeito, e vereis que palavras, como "Deus", "Verdade", "ódio", "inveja", produzem um efeito profundo na mente. E pode a mente libertar-se, neurológica e psicologicamente dessas palavras? Se não ficar livre delas, será incapaz de encarar o fato que se chama "inveja". Quando a mente pode olhar diretamente o fato a que chama "inveja", o próprio fato atua então muito mais rapidamente do que o esforço mental para fazer alguma coisa em relação ao fato. Enquanto a mente pensa em libertar-se da inveja, pelo ideal da "não-inveja", etc., está distraída, não está encarando o fato. A própria palavra "inveja" é uma distração, do fato. O mecanismo de reconhecimento se verifica pela palavra. No momento em que reconheço o sentimento por meio da palavra, dou continuidade ao sentimento.
Positivamente, senhores, o homem que está interessado em libertar-se completamente da inveja, tem de considerar bem o assunto; tem de ver que todo o nosso fundo cultural está baseado na inveja, na aquisição, espiritualmente e bem assim mundanamente. Isto é, os mais de nós desejamos ser algo, nesta vida ou na outra. Queremos mais saber, mais poder, posição mais alta, mais virtude; e, assim, a continuidade da mente, como "eu", se deve a essa exigência de mais, que é inveja. A inveja é também um "processo" de dependência.
Agora, em vista desses aspectos extraordinariamente complexos, da inveja, pode a mente libertar-se dela inteiramente? Porque, se não o fizer, a mente não poderá ser livre, para explorar, descobrir, compreender. Ela só pode libertar-se da inveja, quando está diretamente apercebida do fato de que é invejosa; e não estará diretamente apercebida desse fato, enquanto estiver condenando ou comparando. Isto, com efeito, é muito simples. Se desejais compreender o vosso filho, tendes de estudá-lo, não é verdade? Estudar o vosso filho significa observá-lo e não compará-lo com o irmão mais velho ou qualquer outro menino; significa olhá-lo diretamente, sem pensar, a seu respeito, de maneira comparativa. Se pensais comparativamente, o destruís, porque a imagem do outro se torna então mais importante do que o vosso filho.
Nessas condições, pode a mente observar em si mesma esse desdobrar-se da inveja, porém sem condenação nem comparação? Pode tornar-se conhecedora do fato de que é invejosa, sem atuar sobre o fato? A atuação da mente sobre o fato é também inveja, porque a mente quer então transformar o fato noutra coisa. A menos que nossa mente se liberte, de todo, da inveja, continuaremos na escravidão, haverá sempre sofrimento e toda e qualquer atividade da mente só produzirá mais malefícios. A mente que se interessa pela sua total libertação da inveja, tem de se tornar apercebida do fato, sem atuar sobre ele. Ver-se-á então com que rapidez o próprio fato produz um resultado, uma ação, que não é a ação da mente distraída do fato. Só então pode a mente estar tranquila. Não há controle nem auto-hipnose que possa tornar a mente verdadeiramente tranquila; e é essencial se torne a mente tranquila, despreocupada de si mesma, porque então se oferece a possibilidade de descobrir ou experimentar algo novo. Qualquer experiência que tem continuidade, tem por base a inveja, o desejo de mais; assim sendo, a mente tem de morrer para tudo o que aprendeu, adquiriu, experimentou. Vereis então a mente tornar-se silenciosa. E este silêncio tem seu movimento próprio, não contaminado pelo passado, tornando-se, assim, possível manifestar-se algo totalmente novo.
Ao considerarmos juntos as perguntas que aqui tenho, devo repetir que considero importante compreender que não há resposta para nada; e esta compreensão, em si mesma, é uma "experiência" extraordinária. Mas é muito difícil para a maioria de nós compreender que não há resposta para nada, porque nossa mente está buscando algum resultado. Quando a mente busca um resultado, encontrará o que busca; mas este próprio resultado cria problemas.
Krishnamurti, Segunda Conferência em Bombaim
11 de março de 1956, Da Solidão à Plenitude Humana