De fato, não sabemos o que é amor
PERGUNTA: Sou artista, e preocupa-me sumamente a técnica de pintar. É possível que esta própria preocupação constitua um obstáculo à genuína expressão criadora?
KRISHNAMURTI: Eu quisera saber por que é que a maioria de nós, inclusive os artistas, tanto se preocupa a respeito de técnica. Todos perguntamos "como?" — como poderei ser mais feliz, como poderei achar Deus, como poderei ser um artista melhor, como poderei fazer isto ou aquilo? Todos andamos cheios de cuidados a respeito do "como". Se sou violento, desejo saber como ser não violento. Por termos tanto interesse na técnica e como o mundo não nos oferece outra coisa, estamos presos nessa rede. Cultivamos a técnica, porque desejamos resultados. Quero ser um grande artista, grande engenheiro, grande músico, alcançar fama, notoriedade. Minha ambição me impele à busca do método. Pode um artista, ou qualquer ente humano, cultivando uma técnica, tornar-se um verdadeiro artista? Mas, se amamos a coisa que estamos fazendo, não somos então artistas? Entretanto, não compreendemos a significação desta palavra — amar. Posso amar uma coisa por ela própria, se sou ambicioso, se desejo tornar-me conhecido? Se desejo ser o melhor pintor, o melhor poeta, o maior dos santos, se estou em busca de um resultado, posso amar realmente uma coisa, por ela própria? Se sou invejoso, imitativo, se há medo, se há competição, posso amar aquilo que estou fazendo? Se amo uma coisa, posso então aprender a técnica — como misturar as tintas, etc. Mas, atualmente, não possuímos esse sentimento de verdadeiro amor por uma coisa. Estamos cheios de ambição, de inveja; desejamos ser "um sucesso". E, assim, estamos aprendendo técnicas e perdendo a coisa real — "perdendo", não, pois nunca a tivemos.
Por ora, a nossa mente só está aplicada em adquirir uma técnica que nos leve a alguma parte. Se amo o que estou fazendo, então, por certo, não há problema, não existe competição, não é exato? Estou fazendo o que gosto de fazer, e não porque isso me dará popularidade, pois tal coisa não é importante para mim. O importante é amarmos totalmente o que estamos fazendo, e esse próprio amor será o nosso guia. Se o pai deseja que o filho siga nas suas pegadas, que se torne "alguma coisa", se os pais procuram preencher-se nos filhos, não há então amor, e, sim, mera autoprojeção. O próprio amor ao filho trará sua cultura própria, não achais? Mas, infelizmente, nós não pensamos em tal direção. E por isso temos este enorme problema e este espantoso desenvolvimento técnico.
PERGUNTA: Vejo-me inteiramente ocupado com os costumeiros cuidados, alegrias e tristezas da vida diária. Estou perfeitamente apercebido de que minha mente se acha ocupada exclusivamente com ações, reações, "motivos", mas sou incapaz de transcender essas coisas. Depois de ler os vossos livros e ouvir vossas palestras, vejo que existe outra maneira de viver, completamente diferente, mas não posso achar a chave que abrirá a porta do meu atravancado habitáculo, libertando-me. Que devo fazer?
KRISHNAMURTI: Tenho minhas dúvidas sobre se estamos realmente apercebidos daquilo com que a nossa mente está ocupada! Como diz o interrogante, a mente está ocupada apenas com coisas superficiais — o ganhar do sustento, os deveres paternais, etc. Mas sabemos o com que nossa mente está ocupada num nível mais profundo? Afora as ocupações cotidianas, sabemos com que está ocupada a nossa mente num nível diferente, no inconsciente? Ou a nossa mente consciente está tão ocupada durante o dia, a todas as horas, que não sabemos com o que está ocupado o inconsciente? Sabemos com que estamos ocupados, além da rotina diária, da existência diária? Pelo geral, a nossa ocupação é com o processo diário do viver, e nossa preocupação é o saber como produzir uma alteração aí — um melhor ajustamento, mais felicidade, menos disto e mais daquilo. Conservar nossa superficial felicidade, repelir certos fatores que nos causam dor, evitar certas tensões e pressões, ajustar-nos a certas relações, etc. — eis toda a nossa ocupação.
Sendo assim, podemos deixar tal ocupação entregue a si mesma, isto é, deixá-la seguir o seu curso, na superfície, para investigarmos, nas profundezas da mente, o com que ela está ocupada, inconscientemente? Todos percebemos a necessidade de certo ajustamento, na superfície; mas temos algum interesse a respeito da ocupação mais profunda da mente? Sei, eu, e sabeis vós, com o que está ocupada a mente mais profunda? Ora, é preciso investigar isso, porque essa ocupação pode traduzir-se em ocupações e ajustamentos superficiais, com suas alegrias e tristezas, suas tribulações e provações. E, assim, se vós e eu não conhecemos as ocupações mais profundas da mente, uma simples alteração de superfície tem muito pouca significação. Não é certo que deve terminar toda ocupação superficial, se desejo achar "a outra coisa"? Se minha mente está ocupada a todas as horas com ajustamentos superficiais — endireitando o quadro que outro pôs torto, preocupada com assuntos domésticos, a respeito dos filhos, da esposa, do que a sociedade pensa, e não pensa, da opinião do vizinho — essa mente, já tão ocupada, é capaz de descobrir a ocupação mais profunda, de si mesma? Ou não é necessário que termine a ocupação superficial? Isto é, podemos deixá-la prosseguir, ajustar-se, sem esforço, mas também investigar aquilo com que a mente está ocupada num nível mais profundo? Com o que está ela ocupada, num nível mais profundo? Eu o sei? Vós o sabeis? Ou apenas fazemos conjecturas a tal respeito? Ou pensamos que alguém no-lo pode dizer? É claro que não posso investigá-lo, a menos que não esteja totalmente ocupado com ajustamentos superficiais. Isto é, torna-se necessário nos desligarmos do superficial, para podermos investigar. Mas não ousamos desligar-nos, não ousamos soltar o que temos, porque não sabemos o que existe em baixo — temos-lhe medo, terror. E é por isso que os mais de nós estamos ocupados. Lá, muito fundo, pode encontrar-se uma completa solidão, um sentimento de profunda frustração, medo, torturante ambição — de que não estamos plenamente apercebidos. Mas, se ficamos um pouquinho apercebidos, ligeiramente vigilantes, assustamo-nos com o que vemos. E por isso nos preocupamos com o aspecto da sala, com os quadros, os abajures, os que entram e os que saem, os entretenimentos sociais; lemos livros, ouvimos rádio, aderimos a grupos — conheceis bem todo este triste negócio. Tudo isso bem pode ser uma fuga ao problema mais profundo. E, para examinar este problema mais profundo, temos de abandonar a sala com todo o seu conteúdo. Infelizmente, queremos ficar na sala, e o descobrimento da "outra coisa" é algo que nunca nos permitimos experimentar. Não se trata de tentar alcançar o nível mais profundo. O tentar depende sempre do tempo. Se desejo investigar o problema mais profundo e percebo a necessidade de deixar as coisas superficiais, não há então "tentar". Eu não tento abrir uma porta e não me ponho conscientemente em movimento para sair de casa. Sei que tenho de sair e saio — a porta lá está. Não se faz nenhuma "tentativa" para alcançar a porta; não se pensa em termos de "tentar". Compreensão e ação são simultâneas. Mas tal integração não é possível, se estamos interessados meramente no nível superficial.
Krishnamurti, Quarta Conferência em Londres, 24 de junho de 1955