A percepção do mecanismo do sonhar
PERGUNTA: Qual é a significação dos sonhos, e como
podemos interpretá-los por nós mesmos?
KRISHNAMURTI: Eu gostaria de examinar esta questão
com certa profundeza, em vez de tratar dela superficialmente, e, portanto,
espero que estejais suficientemente interessados em seguir-me, passo a passo.
Quase todos nós sonhamos. Temos pesadelos quando
comemos demais ou ingerimos alimentos indigestos. Não é a respeito desses
sonhos que vou falar e, sim, sobre aqueles que têm significação psicológica.
Há, no sonhar, vários estados, não é verdade? Sonhais, e, ao despertardes, quereis
descobrir a significação do sonho — o interpretais. A interpretação depende do
vosso saber, do vosso condicionamento, de tudo o que aprendestes de vários
filósofos, psicólogos, etc. E se houver erro de interpretação, vossa conclusão
sairá toda errada. E também podemos sonhar e a interpretação se produzir ao
mesmo tempo que estamos sonhando, de modo que despertamos com uma compreensão
clara do sonho; o sonho foi compreendido e não continua a influenciar-nos. Não
sei se isso já vos aconteceu.
O problema, pois, não é saber interpretar os sonhos,
mas por que motivo sonhamos. Compreendeis? Se interpretais os vossos sonhos de
acordo com um certo psicólogo, vossa interpretação depende então do
condicionamento dele; e se o interpretais por vós mesmo, a interpretação é
moldada por vosso próprio condicionamento. Num e noutro caso, a interpretação
pode ser errônea, e portanto qualquer conclusão ou ação nela baseada
revelar-se-á de todo em todo falsa. O problema, pois, não é como interpretar os
sonhos, mas o porque sonhamos. Se pudésseis resolver este problema, a
interpretação não seria mais necessária. Se pudésseis compreender realmente
todo o mecanismo de sonhar, a questão se tornaria muito simples.
Porque sonhamos? Investiguemos isso juntos, e não de
acordo com uma certa autoridade que escreveu um livro sabre a matéria. Deixai
de parte todas essas coisas, se puderdes, e pensemos na questão juntos, de
maneira completa e muito simples. Porque sonhamos? Que entendemos por “sonhar”?
Ides deitar-vos, adormeceis, e enquanto dormis, desenvolve-se uma certa ação,
sob a forma de símbolos e cenas várias; e ao despertardes dizeis “Tive tal
sonho”.
Agora, que foi que aconteceu? Tende a bondade de
seguir isto, que é muito simples. Quando estais despertos, durante o dia, a
vossa mente superficial está ocupada, com muitas coisas — vosso emprego, vossas
brigas, os filhos, dinheiro, as compras no mercado, lavar pratos... dúzias de: coisas. Mas a mente superficial não
é a mente integral; há também o inconsciente, não é verdade? Não precisais ler
nenhum livro, para descobrirdes que o inconsciente existe. Nossos motivos
ocultos, nossas reações instintivas, nossos impulsos raciais — as contradições
que nos foram legadas por nossos ascendentes, nossas crenças — tudo isso se
acha no inconsciente. O inconsciente, como é bem óbvio, deseja transmitir algo
à mente superficial, e encontrando-a quieta, durante o sono, procura
transmiti-lo então. O inconsciente se acha também em movimento a todas as
horas, mas não tem oportunidade de expressar coisa alguma durante o dia, e por
essa razão projeta símbolos vários quando dorme a mente consciente; e então
dizemos “Tive um sonho”. Vereis que isto não é complexo, se o examinardes. Ora
bem, não desejo ficar eternamente ocupado com a interpretação dos meus sonhos...
coisa semelhante a estar ocupado com assuntos culinários, com Deus, ou bebidas,
ou mulheres, etc. etc. Desejo descobrir porque é que sonho e se é possível
deixar de sonhar, completamente. Os psicólogos poderão dizer que é impossível
deixar de sonhar, mas deixemos estes especialistas com suas especialidades e
investiguemos sozinhos (risos). Não,
por favor, não riais! Por que há sonhos? E é possível acabarmos com os sonhos,
sem esforço para suprimi-los ou para alterarmos o estado de sonho — de modo que
durante o sono a mente esteja tranquila de todo? Desejo descobrir isso, e
portanto vou investigá-lo em primeiro lugar.
Porque sonho? Sonho, porque durante o dia a minha
mente consciente está ocupada com uma multidão de coisas. Mas, pode a mente
consciente manter-se aberta, durante o dia, às sugestões e sussurros do
inconsciente? Compreendeis? Pode a mente superficial estar tão vigilante
durante o dia, que perceba os motivos inconscientes, os fugidios clarões das
coisas que estão ocultas, sem tentar suprimir ou alterar tais coisas ou fazer
algo com relação a elas? Se puderdes estar apercebido, simplesmente, não com
atitude crítica, mas de modo imparcial, da totalidade desse conflito; se
puderdes manter-vos aberto, de modo que o inconsciente possa enviar as suas
sugestões momento por momento, no correr do dia, quando viajais de ônibus ou de
táxi, quando estais à mesa ou a conversar com amigos; se puderdes observar a
maneira como olhais as pessoas, vossa maneira de falar-lhes, e de tratar
aqueles que não são de vossa “qualidade”, vereis então, à medida que
aprofundardes a vossa observação, que o sonhar cessará completamente. Porque
então não haverá mais necessidade de mensagens ou sugestões do inconsciente,
durante o sono, para mostrar-vos o que deveis ou não deveis fazer, visto que
tudo se vos está revelando no viver de cada dia.
Chegamos, assim, a um ponto interessantíssimo, que é
este: Durante o dia a mente está sobremodo vigilante, observando sem julgar,
sem condenar; e quando o mecanismo total da consciência tiver sido
revelado, examinado e compreendido, vereis que durante o sono haverá
tranquilidade completa e, nessa total tranquilidade, a mente poderá descer a
profundezas jamais atingíveis pela mente consciente. Compreendeis? Quer-me
parecer que não. Explicai-lo-ei de novo, e espero não aborrecer-vos, por já ser
um pouco tarde.
Como sabeis, nós estamos em busca da felicidade, da
paz, de Deus, da Verdade, etc. Fazemos um esforço constante para nos ajustar,
para amar, ser bondosos, generosos, libertar-nos disto e adquirirmos aquilo.
Com um pouco de observação, pode-se ver que isto é um fato. Observa-se a todas
as horas esta atividade, toda de agitação, ajustamento, luta, e num tal estado
é bem evidente que a mente nunca achará nada novo. Mas se, durante o dia, estou
apercebido dos vários pensamentos e motivos que surgem, apercebido de que sou
ambicioso, que estou condenando, julgando, criticando, e se percebo todos os
pormenores dessa atividade, que acontece? Minha mente não está mais a lutar,
não está mais a esforçar-se, não existe mais a agitação criada pelo desejo de
achar algo. A mente está, portanto, de todo quieta — não apenas a mente
superficial, mas a totalidade da consciência. E nesse estado de quietude total,
onde não há movimento algum para achar, nenhum esforço para ser ou não ser,
torna-se a mente capaz de atingir profundezas que nunca teria a possibilidade
de atingir por meio de esforço. Eis porque é tão importante estar-se apercebido
sem condenação, observar sem criticar nem julgar. E isso se pode fazer
durante o dia todo, à vontade, para que a mente não seja mais um instrumento de
luta, quando está a dormir, não esteja mais a captar mensagens simbólicas do
inconsciente e a tentar interpretá-las, ou inventando um plano astral e outros
absurdos que tais. Libertada de todo condicionamento, está a mente apta a
penetrar, durante o sono, em profundezas que ela nunca poderia atingir com a
consciência desperta; e ao despertar experimenta-se um sentimento de renovação,
nunca dantes experimentado. É como desprender-se do passado e nascer de novo.
Krishnamurti,
27 de agosto de 1955
Realização sem
esforço
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