Cada um de nós tem uma certa imagem de si próprio, em geral uma imagem algo lisonjeira, e dessa base é que olhamos a coisa que nos causa dor ou prazer.
(...)Você tem, pois, uma imagem de si mesmo — de como você é ou como deveria ser ou deve ser — e dessa imagem você olha a coisa a qual chama de “um problema”. Há, pois, a imagem e o problema; e você procura então comparar o problema com a imagem ou o interpreta em conformidade com o padrão estabelecido pela imagem. Não é assim? Tendo uma certa imagem a respeito de si mesmo, com essa imagem é que você olha o problema; há por isso uma divisão, uma contradição entre o problema e o que você pensa ser ou o que pensa que deveria ser; há um constante conflito entre aquilo que sua imagem representa, e o problema que contradiz a imagem.
(...)O problema nunca será resolvido enquanto a imagem existir — a imagem do que você deveria ser, ou a imagem de si própria que a mente criou por efeito do saber, da história, da tradição familiar, de todas as formas de experiência. Você está cônscio, não da imagem, porém, do problema, enquanto o que aqui estamos tentando não é resolver o problema, porém, sim, compreender a estrutura da imagem; porque, se nenhuma imagem temos de nós, poderemos resolver o problema.
O indivíduo, em geral, tem de si próprio a imagem de que é um ser humano extraordinário, ou um homem mal sucedido na vida, um infeliz que precisa preencher-se, ou um homem vaidoso, ambicioso — você bem sabe que imagens a maioria das pessoas têm de si próprias. Pensam ser Deus, ou pensam mão ser Deus, porém, apenas ambiente, que são isto ou aquilo. Têm uma dúzia de imagens de si próprias, ou apenas uma imagem predominante. Ora, se eu tenho uma imagem de mim mesmo, essa imagem terá de contradizer os fatos da existência diária, e só sou capaz de olhar esses fatos com os olhos dessa imagem. Por conseguinte, o problema é criado pela imagem e não pelo próprio fato.
(...)Ora, por que formo essa imagem de mim mesmo? Vejo que enquanto eu tiver qualquer conceito, imagem, conclusão a meu respeito, os problemas continuarão existentes. Assim, já não estou interessado no problema, na dificuldade; apenas me interesso em compreender por que tenho essas imagens, conceitos e conclusões sobre a minha pessoa. No Oriente, muita gente tem a ideia de que é Deus, têm uma infinidade de conceitos; e aqui, no Ocidente, você tem também seus conceitos, suas imagens. Se você for ao mundo comunista, verá que também lá eles têm suas imagens. Ora, por que formamos imagens, conceitos?
(...) Por que razão eu, que vivo há quarenta, cinquenta, sessenta ou não importa quantos anos — por que razão mantenho esse depósito repleto das coisas que penso, que sinto, que sou, que deveria ser, essa enorme acumulação de conhecimento e experiência? E, se eu não o fizesse, o que aconteceria? Compreende? Se nenhum conceito eu tivesse a respeito de mim mesmo, que me aconteceria? Ver-me-ia como que perdido numa floresta, não é verdade? Sentir-me-ia incerto, aterrorizado com a vida. Por isso, formo uma imagem, um mito, um conceito, uma conclusão a meu respeito, porque, sem essa estrutura, minha vida se tornaria, para mim, sem significação, incerta, medonha. Não haveria segurança. Exteriormente, posso estar em segurança, ter emprego, casa, etc., porém, desejo estar também em perfeita segurança interiormente; e é esse desejo de segurança que me impele a formar essa imagem de mim próprio — imagem puramente verbal, isto é, não tem realidade nenhuma, é um mero conceito, uma memória, uma ideia, uma conclusão.
Vejo isso agora como um fato. Dele estou consciente.(...) Sei como formei a própria imagem, quer por esforço consciente, quer inconscientemente, através das inumeráveis influências da sociedade, da religião organizada, dos livros. Agora o sei. Eu a formei, e vejo por que a formei. A sociedade o exige; e, também, independente da sociedade, desejo estar em segurança. A sociedade me ajuda e eu também me ajudo a ser essa imagem, essa ideia, essa conclusão; de todo esse processo estou bem consciente.
(...) Ora, o que acontece quando percebo o fato de que formei uma imagem de mim próprio — quando dele estou tão consciente como da fome? Estamos acostumados a fazer esforços. Desde a infância estimulam-nos a nos esforçar, a lutar, para termos mais êxito do que outro qualquer. Mas aqui não há necessidades de esforço algum, porque não há nada a exigir-nos esforço. Entende? Estou simplesmente a observar o fato de que tenho uma imagem de mim próprio. Todo esforço que faço para alterar, melhorar ou desfazer essa imagem consiste em ajustar-me a outra imagem que tenho de mim mesmo. Está claro? Se faço um esforço para dissipar ou destruir a imagem atual, esse esforço se origina de uma outra imagem que formei de mim, a qual diz que a imagem atual deve deixar de existir.
Como disse no começo(...) o problema é absolutamente sem importância, pois o que importa é a imagem que você tem de se mesmo. Se nenhuma imagem você tem, se amente está completamente livre de todas as imagens, você está então apto a resolver qualquer caso que se apresente, e ele não constitui problema algum.
A mente, pois, está cônscia de ter criado uma imagem de si própria, e que todo esforço para dissipar, dissolver ou fazer alguma cosia a respeito dessa imagem nasce de uma outra imagem, existente num nível muito mais profundo e me diz: “Não devo criar nenhuma imagem”. Todo esforço no sentido de alterar a imagem atual procede de outra imagem, mais profunda, de uma conclusão mais profunda. Vejo que isso é um fato e, por conseguinte, minha mente não está fazendo esforço algum para dissipar a imagem.(...) A mente está totalmente cônscia da imagem, sem ter nenhum desejo, sem fazer nenhum esforço, sem sofrer nenhuma alteração; está simplesmente cônscia da dela, simplesmente a olhá-la. Olho para este microfone, e não posso fazer coisa alguma a respeito dele. Ele existe, foi feito. De modo idêntico, a mente olha a imagem, a conclusão que tem a respeito de si mesma, sem fazer nenhuma espécie de esforço; esta é a atenção real. Nessa observação você descobrirá que existe uma tremenda disciplina — não a estúpida disciplina do ajustamento. Visto que não faz nenhum esforço para alterar a imagem, a própria mente é essa imagem. Não existem separadas a mente e a imagem, porém a mente é a imagem. Todo movimento por parte da mente para identificar-se com essa imagem ou destruí-la é criado ou impulsionado por outra imagem. A mente, por conseguinte, percebe que ela própria é a criadora da imagem.
Se você percebe esse fato, realmente, a imagem perde então toda a importância. A mente está então apta a resolver qualquer problema, qualquer crise que surja, sem o auxílio de nenhuma conclusão prévia, emanada da imagem. A mente está agora livre de todas as imagens e, por conseguinte, não se acha numa posição estática, sobre um pedestal — uma crença, um dogma, uma experiência na forma de conhecimento — de onde observa o problema. A mente, por conseguinte, pode agora “estar completamente” com qualquer dificuldade que se apresenta, sem considera-la um problema. Só existem problemas quando há contradição. Mas, aqui não há contradição alguma. Não tenho nenhuma imagem, nenhum centro, nenhuma conclusão, de onde estou olhando; deste modo, não há contradição e, portanto, não há problema.
Como disse de início, a vida é um movimento de relações, não só com pessoas, porém com tudo — a natureza, o dinheiro, ideias. A vida é um movimento, e quando nos movemos com a vida, ela não apresenta nenhum problema. É só quando se apresenta uma situação estática, da qual estamos tentando compreender, que a vida se torna um problema. A vida mundana é a única vida que você tem de compreender, e não a vida espiritual. Quando já não estamos sendo impelidos pela ambição, pela avidez, pela inveja, quando já não buscamos a fama, e quando todas as coisas que constituem isso que chamamos “vida mundana” estão em perfeita ordem, há então um movimento totalmente diferente, que a mente não pode prever, nem nele crer ou a seu respeito chegar a uma conclusão. Só existe o movimento da vida, mas nós o dividimos em movimento mundano e movimento espiritual, em vida exterior e vida interior. Fizemos da vida interior uma cosia separada. Cansados da nossa vida mundana, com seus horrores e brutalidades — você bem sabe tudo o que se passa — tratamos de evadir-nos, de estabelecer dentro de nós uma “vida espiritual” — o que é um grande disparate. Você não pode estabelecer para si mesmo uma vida espiritual sem ter, primeiramente, perfeita ordem; e ordem significa liberdade. Você verá, então, que há uma vida sem causa, sem fim, sem começo — um movimento. Mas, o que quer que você faça — sentar-se em qualquer posição, escutar todos os truques que quiser — nenhuma possibilidade você terá de alcançar ou de compreender aquele movimento, se não existe completa ordem, quer dizer, se você não está livre da luta exterior de cada dia — da dor, do sofrimento, da avidez, da ambição.
Krishnamurti — O descobrimento do amor