(...)Nossas
relações com os entes humanos se baseiam no mecanismo defensivo, formador de
imagens. Em todas as nossas relações, formamos imagens uns dos outros, e são
essas imagens que ficam em relação, e não os entes humanos... cada um tem uma
imagem de sua pátria e uma imagem de si próprio. A essas imagens vamos fazendo
mais e mais acréscimos, a fim de fortalecê-las. E, com profunda observação,
pode-se ver que essas imagens têm relação umas com as outras. E, dessa maneira,
por causa da formação das imagens, o verdadeiro estado de relação entre dois ou
muitos entes humanos cessa completamente.
Cada um
pode observar esse fato em si próprio; e, evidentemente, as relações baseadas
em tais imagens jamais serão pacíficas, porquanto as imagens são fictícias e
não se pode viver abstratamente. Todavia, é isso o que estamos fazendo: vivendo
na esfera das ideias, das teorias, dos símbolos — tais como a nação, as imagens
que criamos a respeito de nós mesmos e de outros, as quais são puros devaneios,
irrealidades. Todas as nossas relações — com a propriedade, com as ideias, com
pessoas — se baseiam essencialmente nessa formação de imagens e, por isso, há
sempre conflito.
(...)
Pode-se olhar sem nenhuma interferência do passado, do pensamento? Pode-se
olhar o todo da consciência humana — que constitui a pessoa, o "eu" —
sem interferência, juízo, avaliação, tudo isso essencialmente baseado no
passado? Porque o importante é o ato de olhar e não aquilo que olhamos. Se
sabemos olhar, então aquilo que olhamos muda completamente de natureza. Isso se
pode observar em nossa vida de cada dia.
(...) O
tempo é o intervalo entre o observador e a coisa observada... Pode-se enfrentar
a chamada "morte" (ou o que quer que seja) sem esse intervalo de espaço-tempo? Só é possível quando há atenta e
profunda observação, na qual o observador não tem continuidade — o observador
que é o criador de imagens, o observador que é a coleção de memórias, ideias,
um feixe de devaneios. É possível enfrentar qualquer fato sem esse intervalo de
tempo e, portanto, sem nenhuma contradição, vale dizer, sem conflito?
(...) Vários métodos já se
experimentaram para eliminar o espaço entre o observador e a coisa observada:
drogas, identificação, meditação, observância de sistemas e outros mais — tudo
isso na esperança de eliminar esse intervalo de espaço entre o observador e a
coisa observada e, desse modo, libertar-se da contradição e do conflito,
criando-se assim a paz.
Não creio que algum sistema
ou droga, alguma identificação, alguma forma de sublimação tenha o poder de
eliminar o espaço. Mas, que é que pode eliminar o espaço e o tempo? É a maneira
de olhar, de observar. A meu ver, esta é a chave: observar, realmente, sem
nenhuma imagem. Eis porque cumpre haver muita simplicidade: observar uma flor
sem nenhuma atividade mental, sem nenhuma interferência do pensamento; porque
pensamento é tempo, e tempo é aflição. (...) Observar simplesmente!
(...) se uma pessoa observa
tudo isso dentro de si, e se penetrou suficientemente, junto comigo, nesta
manhã — descobre ser possível viver sem conflito e sem contradição. Existe
contradição quando há comparação, não apenas com alguma coisa, mas
também a comparação com o que eu era ontem. É assim que surge o conflito entre o
que foi
e o que é. Não havendo comparação, só há o que é. E viver
completamente com o que é é ser pacífico. Porque então se pode dispensar toda
atenção ao que é, sem distração alguma — a realidade interior, não
importa o que seja: desespero, malevolência, brutalidade, medo, ansiedade,
solidão — e viver plenamente com essa realidade. Não há então contradição e,
por conseguinte, não existe conflito.
Essa compreensão que só pode
nascer da observação de o que é — é paz. Isso não significa
aceitar o que é; ao contrário, não se pode aceitar esta sociedade monstruosa e
corrupta em que estamos vivendo, a qual entretanto é o que é. Significa,
sim, observá-la, observar toda a sua estrutura psicológica, que sou eu
— observá-la sem julgamento nem avaliação — observar realmente o que
é e, observando-o, transformar-se completamente. Pode assim uma pessoa
viver em paz com a esposa ou o marido, com o próximo, com a sociedade, porque
ela própria está vivendo, dia a dia, uma vida pacifica.
(...) Pois bem; que é o sofrimento?
E porque razão o homem jamais conseguiu livrar-se dele, acabar com ele, dentro em
si mesmo? É possível colocar fim ao sofrimento, completamente, não teórica,
porém realmente? Ele só pode cessar com a perfeita compreensão de nós mesmos. O
autoconhecimento é o fim do sofrimento. Não queremos dar-nos ao trabalho de
estudar-nos e ficamos inventando maneiras de fugir do sofrimento.
Enquanto existir o
observador com todas as suas memórias, essa entidade separada criadora de um
intervalo de tempo entre si e o que é, tem de haver sofrimento,
que é conflito. E colocar fim ao sofrimento, de fato e não verbalmente,
colocar-lhe fim todos os dias, é estar cônscio (o indivíduo) do movimento total
da própria existência, a todas as horas.
(...) Só existe confusão
quando não estou olhando diretamente o que é. E quando um homem está
confuso, quanto mais tenta livrar-se da confusão, tanto mais confuso se torna.
Assim, em primeiro lugar, que faz uma pessoa quando se vê confusa?
Eu estou confuso. Não sei o
que fazer; há várias possibilidades de escolha. E compreendo que, havendo
escolha, tem de haver confusão. E eu estou confuso; portanto, que devo fazer?
Primeiro, tenho de parar, não? Detenho-me; não fico a procurar, a pedir, a
perguntar, a olhar, a observar. Ao se perder numa floresta, você não se põe a
correr a esmo; primeiro para e olha para todos os lados. Mas, quanto mais uma
pessoa está confusa, tanto mais se põe a correr, a buscar, a interrogar, a
exigir, a rogar. Portanto, a primeira coisa — se posso sugerir-lhe — é deter-se
completamente em seu interior. E quando, interiormente, psicologicamente, você
detém todo movimento de busca, de escolha, de indagação, a sua mente se torna
muito plácida, muito clara. Pode então olhar. E só na claridade que se pode
olhar, e não na confusão.
(...) Eu lhe olho. Não lhe
conheço e, por conseguinte, não tenho nenhuma imagem a seu respeito. Mas, se
lhe conheço, olho-lhe com a imagem que tenho de você. Essa imagem foi formada,
constituída pelo que você disse — insultando-me ou elogiando-me — e com essa
imagem eu lhe olho. A imagem é uma distração que não me deixa olhá-lo. Só posso
olhá-lo quando nenhuma imagem tenho de você; estou então em relação com você.
É-me possível morrer para a imagem que construí, para as imagens que tenho de
você que venho formando há tantos anos, vivendo com você como marido ou esposa
ou vizinho — ou a imagem que tenho acerca dessas relações? Posso morrer para
todas elas? Se não morro para elas, e visto que essas imagens constituem uma
distração ou devaneio, não tenho a possibilidade de olhar. Se
tenho uma imagem relativa à arvore, não posso olhar a árvore.
(...) Assim, é possível
morrer para tudo o que é conhecido, inclusive a imagem deste orador? De outro
modo, a imagem se torna a autoridade, quer dizer, o devaneio se torna uma
autoridade, em lugar do estado real. Estamos sempre fazendo isso, não?
Jiddu krishnamurti — A essência da maturidade