Nossos problemas são muito mais profundos e temos necessidade de uma resposta profunda que, acho, encontraremos se examinarmos criteriosamente a questão de se a cultura que temos no presente — cultura envolvendo religião e toda a estrutura moral e social — ajuda o homem a descobrir a realidade. Se a resposta for negativa, então a mera reforma de tal cultura ou civilização não passará de uma perda de tempo; mas se ajudar o homem, no verdadeiro senso, então todos nós devemos empenhar nossos corações nessa reforma. Disso, penso eu, depende a solução do problema.
Por cultura queremos significar todo o problema do pensamento, não é? Para a maioria de nós, pensamento é o resultado de várias formas de condicionamento, de educação, de conformidade, de pressões e influências, às quais estamos sujeitos dentro do arcabouço de uma determinada civilização. Presentemente nosso pensamento é moldado pela sociedade e, a menos que ocorra uma revolução em nossa forma de pensar, a mera reforma de uma cultura ou sociedade superficial a mim parece uma loucura, um fator que apenas desencadeará maior miséria.
Afinal de contas, o que denominamos civilização constitui um processo de educar o pensamento dentro dos moldes hindus, cristãos ou comunistas, e assim por diante. Poderá uma forma de pensar tão educada criar uma revolução fundamental? Acaso qualquer tipo de pressão, de padronização de pensamento trará como consequência a descoberta ou a compreensão do que é a verdade? Claro, o pensamento precisa livrar-se de toda pressão, o que significa, realmente, livrar-se da sociedade, de todas as formas de influência e, assim, descobrir o que é verdade; então, esta mesma verdade tem poder para desenvolver uma ação sua e muito própria que dará origem a uma cultura totalmente diferente.
Isto é, a sociedade existe para descobrir a realidade ou precisamos nos livrar da sociedade para descobrir a realidade? Se a sociedade ajuda o homem a descobrir a realidade, então dado tipo de reforma dentro da sociedade é essencial; mas, se constitui um empecilho a essa descoberta, não deve o indivíduo cortar relações com a sociedade e buscar a verdade? Só a pessoa que é verdadeiramente religiosa o consegue, não o homem que celebra vários rituais ou aquele que vê a vida através de padrões teológicos. Quando o indivíduo se liberta da sociedade e busca a realidade, ele não suscita nessa mesma busca uma diferente cultura?
Acho que essa questão é muito importante porque a maioria de nós está meramente interessada em reformas. Constatamos a pobreza, a superpopulação, todas as formas de desintegração, de divisão e conflito e, vendo tudo isso, que podemos fazer? Começamos por participar de um grupo particular, ou trabalhar por uma ideologia? É essa a função do homem religioso? O homem religioso, sem dúvida, é aquele que busca a realidade e não aquele que lê ou cita a Bíblia, ou que vai todo dia ao templo. Isso, obviamente, não é religiosidade — é meramente compulsão, condicionamento do pensamento pela sociedade. Então, o que o homem justo, o homem que reconhece a necessidade e quer provocar uma imediata revolução deve fazer? Trabalhar em prol dessa reforma dentro da estrutura da sociedade? A sociedade é uma prisão e deverá ele apenas reformar a prisão, decorando suas grades e se esforçando para que as coisas sejam feitas de um modo mais bonito dentro de suas muralhas? Sem dúvida, o homem que é verdadeiramente justo, que é realmente religioso é o único revolucionário; não existe outro e esse homem é aquele que está buscando a realidade, que está tentando descobrir o que é Deus, ou a verdade.
Agora, qual deve ser a atitude desse homem? O que ele deve fazer? Deve atuar em meio à atual sociedade ou romper com ela, não se preocupar em absoluto com a sociedade? Rompimento não significa tornar-se um monge hindu, um eremita, isolando-se graças a peculiares sugestões hipnóticas. E, no entanto, ele não pode ser um reformista, porque constitui um desperdício de energia, de pensamento, de criatividade, o homem justo entregar-se a meras reformas. Então que deve o homem justo fazer? Se ele não tenciona decorar as grades da prisão, remover algumas grades, deixar entrar um pouco mais de luz, se não está absolutamente nisso, mas se também vê a importância de suscitar uma revolução de base, uma mudança radical no relacionamento de homem para homem — relacionamento que deu origem a esta apavorante sociedade em que existem pessoas imensamente ricas e aquelas que não possuem absolutamente nada, tanto interna como externamente — então, o que ele deve fazer? Acho importante fazer esta pergunta a nós mesmos.
Afinal de contas, a cultura se concretiza através da ação da verdade ou cultura é obra do homem? Se é obra do homem, obviamente não o conduzirá para a verdade. E nossa cultura é obra do homem porque se baseia em várias formas de aquisição. Não somente no que se refere a coisas mundanas, mas também às assim ditas espirituais; resulta do desejo de posição sobre todos os aspectos, de auto-engrandecimento e assim por diante. Tal cultura não pode, é claro, conduzir o homem à realização do supremo; e se compreendo isso, que posso, então fazer? O que você faria se compreendesse que a sociedade é uma barreira? Sociedade não significa apenas uma ou duas atividades, mas toda a estrutura do relacionamento humano, na qual toda a criatividade cessou, na qual existe constante imitação; consiste num arcabouço de medo em que a educação é mera conformidade e onde não existe nem um pouquinho de amor, mas simplesmente ação nos moldes de um padrão descrito como amor. Nessa sociedade os principais fatores são reconhecimento e respeitabilidade: é pelo que todos nós lutamos — para sermos reconhecidos. Nossa capacidade, nosso saber precisam ser reconhecidos pela sociedade para que sejamos ser alguém. Quando ele compreende tudo isso e vê a pobreza, a tremenda fome, a fragmentação da mente em diversas formas de crenças, o que o homem justo deve fazer?
Se realmente ouvimos o que se diz, ouvimos no sentido de querer descobrir a verdade, de forma que inexista o conflito de sua opinião contra a minha opinião ou de seu temperamento contra o meu, se podemos colocar tudo isso de lado e tentarmos descobrir o que é a verdade — o que requer amor — penso que nesse verdadeiro amor, nesse sentimento de bondade, encontramos a verdade que criará uma nova cultura. Então estaremos livres da sociedade, não mais preocupados com a reforma da sociedade. Mas a descoberta da verdade demanda amor e nossos corações estão vazios, pois estão repletos de coisas da sociedade. Estando repletos, tentamos reforma-la e nossa reforma não traz em si o perfume do amor.
Jiddu Krishnamurti — Sobre Deus