[...] Cumpre encontrar ordem na sociedade e na liberdade. A sociedade são relações organizadas entre homens. Nessa organização, nessa sociedade, temos de encontrar liberdade, e nessa liberdade — ordem; do contrário, não é liberdade, porém mera reação contra a sociedade. Quer dizer, muitos de nós, vendo-nos cativos do ambiente, reagimos, revoltamo-nos; e essa revolta, segundo cremos, é liberdade. Mas, é bem evidente que nenhuma revolta originada de reação traz a liberdade; só traz desordem. A liberdade é um estado de espírito que não resulta de nenhuma reação — tal o comunismo, que é uma reação ao capitalismo. E essa reação, na vida diária ou numa sociedade organizada, só pode gerar mais desordem.
Na sociedade existe ordem, tecnologicamente, como se vê, no mundo inteiro. A ordem é necessária para os indivíduos poderem viver e trabalhar juntos; toda cooperação exige ordem. Mas, essa ordem é produto da necessidade tecnológica, da necessidade criada pela conveniência, pelo medo, etc. Nessa ordem tecnológica há desordem, porque o homem não é livre. Só quando se compreendem as relações psicológicas entre os homens, e nessas relações se estabelece a ordem, só então há liberdade.
Ao falamos de liberdade, não estamos falando de reação; estamo-nos referindo à ordem que nasce da integral compreensão da psique humana, da essência total do homem, da inteira estrutura sociológica e psicológica do homem. Da compreensão dessa estrutura nasce a liberdade que traz a ordem. Só dentro dessa ordem poderão os homens conviver pacificamente. Tal é o alvo que temos em mira, isto é, promover uma transformação na mente humana, mediante a compreensão das relações sociológicas e psicológicas do homem; pois dessa compreensão nascerá a liberdade, e dessa liberdade a ordem. O que nos interessa, por conseguinte, é descobrir uma maneira de viver em que não sejamos escravos da sociedade e possamos, ao mesmo tempo, estabelecer, num mundo novo, um estado de ordem e não de desordem nas relações humanas.
Na sociedade hoje existente, as relações entre os homens são organizadas; nela há desordem, porque vivemos em conflito, não só com nós mesmos, mas também uns com os outros. Exteriormente, estamos divididos em comunidades, separadas umas das outras por diferenças idiomáticas, nacionais e religiosas; divididos em famílias, em oposição à comunidade, e a comunidade em oposição à nação, etc. Interiormente, observa-se uma extraordinária ânsia de sucesso, um forte impulso à competição, ao ajustamento; a compulsão da ambição, do desespero, do tédio da existência de cada dia; o desespero do ente humano que se vê num estado de total e irremediável solidão. Tudo isso, consciente ou inconscientemente, constitui o campo de batalha das relações. A menos que se estabeleça a ordem nessas relações, qualquer que seja o resultado da revolução econômica, social ou científica, é inevitável a desintegração, porquanto não foi compreendida, resolvida e libertada a estrutura da mente humana.
Nosso problema, pois, se refere à obrigação que temos de promover uma completa revolução psicológica; porque cada um de nós, cada ente humano, é parte integrante da sociedade, dela não está separado. Não existe isso que se chama "um indivíduo". Pode um ente humano ter um nome, uma família separada, etc.; mas, psicologicamente, não é um indivíduo, porque está condicionado pela sua sociedade; por suas crenças, seus temores, seus dogmas; por todas as influências exercidas pela sociedade; pelas circunstâncias em que vive. Isso é bem óbvio. O indivíduo é condicionado pela sociedade em que vive, e esta foi criada por ele. Por essa sociedade ele é responsável; e somente a ele, como ente humano, cabe promover-lhe a transformação.
Eis a mais importante obrigação de todo ente humano. Não tem ele de aderir a certas reformas sociais, pois isso seria inteiramente inadequado e absurdo. Como entes humanos, cabe-nos a obrigação de promover uma revolução psicológica que estabeleça a ordem nas relações humanas. Essa ordem só poderá nascer da revolução psicológica, e esta só se realizará quando cada um de nós compenetrar-se de sua enorme responsabilidade.
Em geral, cremos que alguém, um outro qualquer promoverá essa revolução; que, por obra das circunstâncias, de Deus, de crenças, de políticos, rezas, leituras de certos livros chamados "livros sagrados", etc., nossa mente será transformada. Quer dizer, passamos adiante a nossa obrigação, a algum líder ou guia, a um certo padrão social, uma certa influência. Tal maneira de pensar denota total irresponsabilidade e profunda indolência.
[...] Deveis tornar-vos bem cônscios deste problema: que não há solução na revolução econômica, política ou científica; que nenhum líder político, por mais tirânico ou benfazejo que seja, nenhuma autoridade poderá promover a ordem psicológica; que ninguém, senão vós mesmo, como ente humano, pode promovê-la — não num mundo celestial, se tal mundo existe, porém neste mundo, e já!
Portanto, o problema é vosso. Podeis não desejá-lo, e dizer: "Preciso que alguém me mostre o caminho; estou disposto a seguir". Pois estamos muito acostumados a seguir pessoas: no passado, temos os instrutores religiosos; no presente, Marx ou um certo guru ou santo, com suas peculiaridades e idiossincrasias. Estamos sempre na sujeição da autoridade. A mente, escravizada há séculos pela autoridade, pela tradição, pelas convenções, pelo hábito, está sempre disposta a seguir e, em consequência, a transferir a outrem suas responsabilidades; nessas circunstâncias, não é possível estabelecer-se a ordem psicológica. Essa ordem psicológica é indispensável, porque nela é que temos de basear a nossa vida diária — a única coisa realmente importante. Daí, dessas bases sólidas, temos possibilidade de ir muito longe. Mas, se nos faltam essas bases ou se as assentamos na crença, no dogma, na autoridade, na confiança em outrem, estamos então totalmente extraviados.
Cabe-nos, pois, promover uma transformação psicológica em nossas relações com a sociedade em que vivemos. Por conseguinte, não há motivo de retirar-nos para o Himalaia, tornar-nos monges ou freiras ou prestar serviços sociais, e demais puerilidades. Nós temos de viver neste mundo, de realizar uma transformação radical em nossas mútuas relações, não num futuro distante, porém agora; é essa a nossa maior obrigação. Porque, se não modificar-se a psique, a estrutura interna da mente e do coração, nos veremos em eterna confusão, angústia e desespero.
Krishnamurti em, A Suprema Realização