[...]Devemos estar interessados numa única questão, ou seja, como operar em nós mesmos uma transformação fundamengtal, que atinja não só as nossas relações sociais, mas também o nosso pensar, as nossas emoções, nossa expressão criadora e nosso viver diário. Se não se realiza, dentro do indivíduo, uma transformação fundamental, sem dúvida qualquer reforma proveniente do exterior só o forçará a ajustar-se ao novo padrão e, por conseguinte, não será transformação nenhuma. Transformação sob compulsão, influência, pressão sociológica, várias formas de legislação, não constitui a verdadeira transformação, porém, simplesmente, "continuidade modificada" do que já existia. Transformação dentro da esfera do tempo não é transformação — sendo "tempo" o processo de pensamento, de compulsão, imitação, gradual ajustamento.
Agora, existe uma transformação fundamental não produzida sob pressão de espécie alguma, nenhum ajustamento a certo padrão ideológico? Existe uma transformação proveniente, totalmente, do interior e que não resulte de nenhuma pressão exterior? Nós nos transformamos superficialmente em virtude da compulsão, em várias formas, da ideia de recompensa, das pressões externas, da influência que em nós exercem os livros que lemos, etc.; mas tal mudança me parece superficial e, de modo nenhum, é a verdadeira transformação. Entretanto, é isso o que quase todos nós estamos fazendo com nossa vida. A mente consciente ajusta-se a um novo padrão social, econômico ou legislativo, mas isso não transforma na essência o indivíduo. Assim, se somos realmente sérios, deve-se-nos apresentar, inevitavelmente, a pergunta: É possível o indivíduo transforma-se a fundo, de modo que considere a vida, não parcialmente, fragmentariamente, porém como entidade integral, um ente humano total?
Em regra, nós reagimos à ideia de recompensa e punição, a uma certa forma de compulsão, e é a isso que chamamos "atenção", em nossa vida diária. Se observardes, vereis que vossa ação, religiosamente e a outros respeitos, é parcial, fragmentária, não é a ação completa de nosso ser integral. E parece-me de toda necessidade, na presente crise mundial, que cada um de nós descubra por si mesmo se é possível agir, não em mera conformidade com padrões ideológicos, ou governamentais, ou pessoalmente impostos, porém como ente humano total, com todo o seu corpo, mente e coração. É possível atuar de maneira total? Basicamente, este me parece ser o único problema do homem.
Vemos o que está acontecendo no mundo; vemos tirania, medonha crueldade, desditas a que estamos sujeitos, compulsões, uniformidade de pensar, como nacionalista, socialista, imperialista, o que quer que seja. Nesse "processo" não existe nenhuma ação plena por parte do indivíduo, ação em que sua mente e coração estejam unificados, seu ser inteiro completamente integrado. E parece-me que, se somos realmente sérios, em nosso próprio interesse devemos criar individualmente essa ação total; porque, enquanto nossa ação for simplesmente fragmentária, só da mente ou dos sentimentos, ou apenas dos sentidos, tal ação tem de ser contraditória e invariavelmente criará confusão.
Agora, existe desejo, aspiração, vontade capaz de atuar como entidade total? Ou o desejo é sempre contraditório? E é possível a mente compreender a totalidade de si própria, tanto o consciente como o inconsciente, e atuar, não parcial ou fragmentariamente, porém como ente humano integrado, sem autocontradição? Para mim, tal ação é a única ação reta, porque todas as outras formas de ação gerarão conflito, tanto interior como exteriormente.
Assim, como produzir essa transformação? Como poderá a mente atuar como entidade total, não dividida interiormente? Não sei se já refletistes alguma vez sobre este problema. Se já o fizestes, provavelmente pensais que os desejos contraditórios da mente podem ser harmonizados e que essa harmonia vem pelo esforço, pelas atividades ideológicas e várias formas de disciplina. Mas é possível harmonizar desejos contraditórios, como estamos tentando fazer? Eu sou violento e desejo ser "não-violento"; desejo ser artista, no lídimo sentido da palavra, e, no entanto, minha mente tende para a ambição, a avidez e a inveja, impedindo, assim, esse esforço criador. Dessarte, há uma perene contradição em nós mesmos. Esses desejos e conflitos promovem realmente certas atividades mas estas, também, em si mesmas, são contraditórias, como se pode ver diariamente em nossa vida. E é possível a mente alcançar aquela compreensão da totalidade de si própria, na qual a ação já não é questão de imitação, de compulsão, de medo, ou desejo de recompensa?[...] Isto é, a necessidade de uma ação não organizada pela mente, ação que não seja resultado de um pensar fragmentário, mas, sim, o reflexo de todo o nosso ser. Todos sentimos essa necessidade, porém não sabemos como atingir aquela ação. Podemos recorrer à religião, esperando encontrar uma ação não-contraditória, que seja completa; todavia, religião, para a maioria de nós, é uma coisa um tanto vaga e superficial, questão de crença, e nenhuma eficácia tem em nossa vida diária. Muito falamos a respeito disso que chamamos religião, mas o que dizemos não tem significação básica e apenas se torna mais um fator de contradição em nossa vida. Pensamos que devemos amar, mas não amamos. Desejamos buscar Deus, porém ao mesmo tempo estamos todos empenhados em atividades mundanas; e vemo-nos, assim, divididos, puxados em ambas as direções. Parece-me, entretanto, que a real compreensão do que é religião constitui a única solução para os nossos problemas. O mais importante, decerto, é que cada um de nós experimente diretamente a Realidade; e no próprio "processo" de experimentar a Realidade se encontra a ação da Realidade. Não se trata de experimentar a Verdade, e depois agir; o que há é ação da Verdade, no próprio "processo" de experimentar e compreender a Verdade. É então a Verdade que atua, e não a pessoa que compreende a Verdade.
Jiddu Krishnamurti em, O Homem Livre