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Parece-me que uma das coisas mais difíceis é separar o pensar e a ação individual do pensamento e da atividade coletiva; entretanto, é de essencial importância libertar a mente, o inteiro processo de pensar, do "coletivo", sobretudo agora, quando o coletivo está tendo um papel tão compulsório em nossa diária existência. No mundo inteiro, todos os meios estão sendo empregados para dominar a mente do indivíduo. Não só os comunistas, mas também todas as classes de pessoas religiosas se mostram ansiosas por moldar a mente humana; e à medida que cresce a eficiência governamental, à medida que se universaliza a chamada educação e em todos os sentidos se expandem os progressos técnicos, o pensamento vai sendo moldado cada vez mais em conformidade com o padrão de uma dada cultura.
Quase todos nós somos o resultado do "coletivo". Não há pensar individual. Não estou empregando a palavra "individual" em oposição ao "coletivo". Penso que a individualidade é completamente diferente da coletividade e tampouco é uma reação ao "coletivo"; mas, pela maneira como estamos atualmente constituídos, a individualidade como coisa inteiramente separada do "coletivo" não existe. O que chamamos "individualidade" é apenas uma reação, e reação não é ação total. Toda reação produz mais limitação, condiciona mais ainda a mente.
Não emprego, pois, a palavra "individualidade" no sentido de "oposição ao coletivo"; estou-me referindo a um processo coletivo de pensar. O pensar, como hoje conhecemos, é quase uma reação ao "coletivo"; e quer-me parecer que, em face da crise atual, desse imenso desafio, com seus inumeráveis problemas de fome, miséria, guerra, horrível brutalidade, nenhum valor tem a reação de caráter coletivo. O "coletivo" só pode reagir consoante o velho condicionamento, o velho padrão de pensamento; o importante, decerto, é que se verifique o despontar da individualidade, a qual é exterior à atual estrutura social e não faz parte do padrão coletivo de pensamento, com seus dogmas e crenças, quer comunistas, quer da chamada religião.
[...]Pode-se ver que a velha reação coletiva não se tem mostrado adequada e que essa maneira inadequada de reagir cria novos problemas — e é isso o que realmente se sucede no mundo nos tempos presentes. Nosso problema, portanto, é descobrir se a mente, resultado do coletivo, pode libertar-se e tornar-se individual — mas não no sentido de reação, de revolta contra o coletivo, porquanto tal revolta é evidentemente um "processo" adicional de condicionamento segundo um diverso padrão. Pode a mente, pela compreensão do "coletivo", pelo investigar, pesquisar o seu inteiro processo, dissociar-se do coletivo e, com essa profundeza de compreensão, promover, não intelectual porém realmente, ação imediata? Pode a mente libertar-se e atuar como individualidade total? Não estou empregando a palavra "individualidade" na acepção comum, ou seja, significando um indivíduo que se opõe ao coletivo, um individuo egocêntrico, interessado unicamente em sua própria atividade, em seu próprio gozo, seu próprio sucesso.
[...] Se estais razoavelmente cônscios dos acontecimentos mundiais, cônscios das compulsões e pressões sociais a que estais sujeitos, essa questão tem de surgir inevitavelmente. Pode a mente libertar-se do "coletivo", ou seja, de seu próprio condicionamento? Libertar-se do coletivo não é simplesmente questão de jogar fora vosso passaporte ou de renunciar verbalmente a determinado estado mental; significa libertar-se de todo o conteúdo emocional de palavras tais como "hinduísta", "budista", "cristão", "comunista", "hindu", "russo", "americano", etc. Podeis despojar a mente da etiqueta verbal, mas lá fica um certo "conteúdo íntimo", um íntimo sentimento de ser algo, numa determinada cultura ou sociedade. Sabeis o que quero dizer. Um homem reage como cristão, comunista, hinduísta, porque foi educado num certo ambiente, com uma perspectiva superficial, limitada; e essa reação "coletiva" é o que chamamos "nosso pensar".
[...] Assim, peço-vos não escuteis simplesmente a minha descrição, mas, se o puderdes, observeis, por meio dela, o funcionamento de vossa própria mente. Vereis então quanto é difícil pensar de maneira totalmente nova, isto é, não pensar em termos de hinduísmo, budismo, cristianismo ou o que quer que seja. E se vos rebelais contra o padrão do hinduísmo apenas para cairdes em outra gaiola a que chamais "budismo", isto ou aquilo, neste caso a mente está ainda condicionada.
Vemos, pois, que vossa mente é resultado do "coletivo". Ela reage, não como "indivíduo", no sentido em que estou empregando a palavra, porém como expressão do "coletivo", o que significa que está agrilhoada pela tradição, pelo inteiro processo de condicionamento. Vossa mente está sob o peso de certos dogmas, crenças, rituais, a que chamais religião, e com esse fundo (background) tenta reagir a algo essencialmente novo e vital. Mas só a mente que está livre de seu fundo pode corresponder de todo ao desafio, e só essa mente é capaz de criar um novo mundo, uma nova civilização, uma maneira de viver inteiramente nova.
Ora, pode-se libertar a mente de seu fundo, que é o "coletivo", não em reação, oposição, mas por se perceber a imperiosa necessidade de uma mente que não seja um mero mecanismo de repetição?[...] Atualmente, somos o resultado do que nos foi ensinado, não é verdade? Eis um fato óbvio. Desde a infância ensinaram-nos a crer ou não crer em algo, e nós repetimos tal ensino; e se não se trata da repetição das coisas velhas a que estamos presos, trata-se então da repetição das mesmas coisas em forma nova. Quer viva no mundo comunista, no mundo socialista, quer no mundo hinduísta, esse centro que chamamos "eu", "ego", é o "processo" de repetição e acumulação próprio do "coletivo".
O problema, pois, é saber se esse centro pode ser "dinamitado", de modo que nenhum outro centro possa formar-se e surja uma ação que seja total e não simples atividade do "eu". Afinal de contas, a mente é agora um processo de atividade egocêntrica, de tradição, não achais?[...]
Krishnamurti em Madastra, 19 de dezembro de 1956
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Ora, pode-se libertar a mente de seu fundo, que é o "coletivo", não em reação, oposição, mas por se perceber a imperiosa necessidade de uma mente que não seja um mero mecanismo de repetição?[...] Atualmente, somos o resultado do que nos foi ensinado, não é verdade? Eis um fato óbvio. Desde a infância ensinaram-nos a crer ou não crer em algo, e nós repetimos tal ensino; e se não se trata da repetição das coisas velhas a que estamos presos, trata-se então da repetição das mesmas coisas em forma nova. Quer viva no mundo comunista, no mundo socialista, quer no mundo hinduísta, esse centro que chamamos "eu", "ego", é o "processo" de repetição e acumulação próprio do "coletivo".
O problema, pois, é saber se esse centro pode ser "dinamitado", de modo que nenhum outro centro possa formar-se e surja uma ação que seja total e não simples atividade do "eu". Afinal de contas, a mente é agora um processo de atividade egocêntrica, de tradição, não achais?[...]
Krishnamurti em Madastra, 19 de dezembro de 1956
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Nina Simone - Ain't Got No