Ora, evidentemente, não estamos livres quando estamos seguindo a outro. É preciso estar-se livre do instrutor religioso, e isso significa que cada um tem de ser uma luz para si mesmo e não depender da luz de nenhum outro. E pode-se realmente "experimentar" esse aliviar, esse libertar da mente do líder, do instrutor, do guru? Podemos experimentar realmente esse estado agora, que estamos falando sobre ele, de modo que a mente não dependa de nenhuma autoridade, não dependa de ninguém, para orientá-la e guiá-la?
Todas as suas chamadas doutrinas religiosas criam um ideal, que você segue; e este ideal se torna uma nova espécie de instrutor. E, por certo, esta total libertação da ideia do guia, do instrutor, do seguir, sob qualquer forma que seja, esta libertação é essencial. Porque o seguir um instrutor implica acumulação de conhecimentos, e a libertação só é possível pela completa renúncia ao conhecimento. Afinal, são só conhecimentos o que estamos verdadeiramente buscando, na nossa vida de cada dia, não é verdade? Precisamos de conhecimentos para executar trabalhos, conhecimentos para agir, conhecimentos para nos guiarem ao alvo, ao sucesso, à realização de algo. E esse próprio conhecimento se torna o fator de nosso cativeiro. Mas pode a mente liberta-se do conhecimento?
(...) O seguir implica sempre acumulação de conhecimentos, não é verdade? E onde há acumulação de conhecimentos tem de haver imitação. Afinal, quando lhe é feita uma pergunta sobre uma questão que conhece bem, sua resposta é imediata. Se lhe perguntam onde mora, qual a sua profissão, seu nome, etc., a memória responde instantaneamente, porque são coisas com que você familiarizado. Mas se lhe é feita uma pergunta mais complexa, há então hesitação — isso implica que a mente está dando uma busca nos arquivos da memória, para achar a resposta correta. E se lhe perguntam uma cosia sobre a qual praticamente nada sabe, você recorre a um livro ou busca mais profundamente naquela parte da consciência que é a memória. Deve Haver memória, porque do contrário, você não poderia voltar para sua casa, executar seu trabalho, construir uma ponte, etc. Aprendemos uma multidão de coisas necessárias e esses conhecimentos naturalmente não devem ser esquecidos. Mas eu me refiro a conhecimentos de ordem completamente diferente: os conhecimentos que a psique acumula, com o fim de proteger-se no futuro e realizar qualquer coisa que deseje realizar, psicologicamente, espiritualmente. É esse conhecimento que nos faz egocêntricos, porque a mente se serve dele como meio de dar continuidade a si mesma, como meio de expansão do "eu", É a esse conhecimento que cumpre renunciar totalmente. Esta é a verdadeira renúncia — e não o abandonar uns poucos bens, uma casa, um pedaço de terra, e cingir uma tanga. Temos, pois, esse conhecimento acumulado, sobre o qual a psique se forma e se mantém. E pode a mente, que é resultado do passado, renunciar a esse conhecimento? Decerto, enquanto a mente não se descartar desse conhecimento, nunca encontrará o que é novo, jamais conhecerá o instante atemporal, que é o "estado criador". Veja, o que necessitamos neste momento não é mais físicos, mais cientistas, engenheiros, políticos, burocratas, porém indivíduos que conheceram esse "estado criador", porque esses indivíduos é que são as pessoas verdadeiramente religiosas — o que significa que não pertencem a nenhuma sociedade, nenhum grupo, nenhuma classificação. Eis porque é muito importante compreender todo esse processo de acumulação de conhecimentos, que subentende identificação e senso de avaliação. Pode a mente estar livre, para observar sem avaliação nem julgamento? Não resta dúvida de que suas avaliações, suas comparações, suas condenações baseiam-se todas no conhecimento, e essa mente é incapaz de compreender o que é verdadeiro.
Se você observar o processo de seu próprio pensar, verá que a mente só tem interesse em acumular mais e mais conhecimentos, e por essa razão nunca há um momento de liberdade, para explorar. E acho muito importante compreender, isto é, "experimentar", real e instantaneamente, esse estado de liberdade do passado, sem continuidade, — e não apenas asseverar que a mente pode ou que a mente não pode ser livre.
(...) A mente, em verdade, é resultado do passado, de muitos dias pretéritos, o que é um fato bem óbvio. Ela é o resíduo do conhecido — sendo o conhecido a coisa experimentada, a palavra, o símbolo, o nome, o inteiro processo de reconhecimento. Essa mente, de certo é incapaz de descobrir ou "experimentar" o desconhecido. Ela poderá especular, mas sua especulação estará baseada no conhecido, nas coisas que leu. Só poderá a mente experimentar "aquele estado", quando o conhecimento — e por este termo entendo a memória de muitas experiências, — o inteiro processo de reconhecimento, que é "eu", "meu" — houver terminado.
Pois bem. Se você puder, escutar não apenas o que está sendo dito, mas também afastar de si tudo o que conhece — as conclusões, as avaliações, as determinações, os ideais — verá então surgir um estado sem continuidade, como memória, mas que é, instantaneamente, a totalidade do Ser. Esse momento é que é o Sublime, o Supremo, e ele precisa ser experimentado. Mas só se pode experimenta-lo, quando a mente está completamente tranquila, compreendendo a totalidade de sua própria estrutura. É pelo autoconhecimento que vem a quietude da mente, e não por meio da disciplina, por meio da compulsão. E nessa tranquilidade total, você encontrará um momento em que não está relacionado com o passado, um instante em que se verifica a criação. E esse estado é essencial, porque liberta a mente do "coletivo" e dá existência à individualidade.
O "coletivo" é a mente condicionada pela sociedade, por influências inúmeras, pelos valores e crenças a que se apega a multidão e de que uns poucos se livram, mas só para lhe acrescentarem mais uma crença. Em vista de tudo isso, é possível para a mente, sem esforço algum, renunciar ao passado? Enquanto não o fizer, continuará a haver a observância da tradição, de ontem ou de há milhares de anos. E a mente que segue a tradição é imitativa, dependente de um instrutor, com o que mantém a desigualdade, não apenas no nível físico, mas também no nível psicológico. Para essa mente, a "criação" é apenas uma palavra sem sentido. Para se reproduzir um estado diferente, uma cultura diferente, uma diferente maneira de vida, é de todo necessária a libertação do indivíduo, a libertação dessa força criadora interior que produzirá sua sociedade própria, seu valores próprios.
Krishnamurti em, DA SOLIDÃO À PLENITUDE HUMANA
Krishnamurti em, DA SOLIDÃO À PLENITUDE HUMANA