Libertando-se da ânsia
do amanhã
A meu ver, uma das coisas mais difíceis é viver com
simplicidade; e talvez possamos, nesta tarde, examinar esta questão, não apenas
no nível superficial, mas profundamente, para ver se descobrimos o que, em
essência, significa viver simplesmente. Por pouco ativos que sejamos, a vida
nos apresenta inúmeros problemas. Cada problema parece gerar muitos outros. Os
problemas parecem surgir numa sucessão interminável, tanto no nível consciente
como nos níveis mais profundos da consciência. Parece, nunca podemos livrar-nos
de um problema, ou resolvê-lo, sem suscitar outros problemas. Mas se pudéssemos
compreender o que significa viver simplesmente, pensar simplesmente, então,
talvez estivéssemos aptos a produzir em nós mesmos um “estado de ser” em que não
criássemos problemas e mais problemas.
Por que é que a mente acumula? Por que armazenamos
conhecimentos? Por que nos condiciona a experiência? Se pudermos investigar esse
“mecanismo” acumulador da mente, talvez nos seja mais fácil compreender o que é
pensar diretamente, simplesmente; e ao percebermos porque a mente colhe, retém,
acumula, talvez nos tornemos capazes de dissolver as nossas múltiplas,
dificuldades, à medida que surgem.
Acreditamos que, acumulando conhecimentos e
experiência, estaremos capacitados para compreender a vida com todas as suas
lutas complexas. Mas, que acontece quando acumulamos saber e experiência? Ficamos
traduzindo todo incidente, toda crise, toda reação, em conformidade com a nossa
passada experiência, que é memória. Com essa carga do passado, não nos é
possível ver as coisas diretamente; e talvez aí se encontre o nó do problema.
Nunca enfrentamos coisa alguma de maneira nova, mas sempre em conformidade com
o “velho”, com o que já conhecemos. E porque jamais encaramos um problema
diretamente, para compreendê-lo por nós mesmos, continuamos a produzir
problemas e a provocar mais lutas.
Ora, nossa concepção de uma vida simples é que
devemos possuir poucas coisas, ou mesmo nada. Mas isso, por certo, não é uma
vida simples. Olhamos com reverência os que levam uma vida simples, no sentido
físico, que têm poucas roupas e nenhuma propriedade, como se isso fosse uma
coisa maravilhosa. Por quê? Porque nós, intrinsecamente, somos apegados a
coisas, a posses. Mas o viver uma vida simples requer, meramente, que nos
despojemos de tudo, que renunciemos às coisas físicas? Ou é coisa muito mais
profunda? Embora tenhamos muito pouco, interiormente estamos sempre juntando,
acumulando; estamos cheios de crenças, de dogmas, de toda espécie de
experiência e memória, e há em nós um conflito interminável entre as várias
necessidades, ânsias, esperanças, desejos. Tudo isso indica, não uma vida
simples, mas uma vida interior sobremodo complexa. Creio, pois, importante
descobrir-se porque a mente acumula, tanto consciente como inconscientemente;
porque é incapaz de ir ao encontro de cada incidente, de cada reação, como se fosse
algo inteiramente novo, original. Porque traduzimos cada experiência de acordo
com “o velho”, de acordo com o que já é conhecido? A mente está sempre a
acumular experiências, reações, e armazenando-as na memória, com o propósito de
servir-se delas, como garantia de sua própria segurança. E a compreensão, a
inteligência é resultado de experiências inumeráveis? Ou é a capacidade de
olhar as coisas de maneira nova, de encarar a vida momento por momento, sem que
a experiência do passado lhe empane a visão?
Como disse há dias, não deveis ouvir estas palestras
com o fim de compreender o que eu estou dizendo, mas, sim, de descobrir como
vós mesmos estais pensando. Não estais aqui apenas para acompanhar a minha
descrição de um certo estado mental, mas para descobrir como opera a vossa
mente toda vez que surge uma experiência nova.
Consideremos, por exemplo, o problema do temor.
Podemos, vós e eu, compreender o temor e dissolvê-lo, sem intrometermos a
acumulação do passado? Em geral, temos medo de muitas coisas: do amanhã, do que
dizem os outros, da pobreza, da frustração, da morte. Ora, que é esse temor?
Não podemos examiná-lo, compreendê-lo de maneira muito simples, e desse modo
libertar-nos dele — não para todo o sempre, mas a cada momento, dia por dia —
de modo que a mente fique aliviada da ânsia do amanhã? Bem considerado, o temor
é uma reação, não é? Fiz algo que me envergonha, cometi um erro que não desejo
seja descoberto por outro. O temor, pois, é uma reação, e não adianta lutar
contra ele, procurar subjugá-lo, analisá-lo ou evitá-lo. O medo é o fantasma do
meu malfeito. O problema, por conseguinte, não é o temor, senão a maneira como
considero o meu ato. Ora, posso considerar esse ato de maneira nova? Isto é,
posso eu, conhecendo a causa do temor, considerá-lo com toda a simplicidade,
sem acumular, sem converter a compreensão da causa numa técnica de dominar o temor?
Compreendeis ? Quando, conhecendo a causa do temor, a mente procura compreender
essa causa, a fim de proteger-se contra novos temores, os temores de amanhã,
põe ela em funcionamento o complexo “mecanismo” da autoproteção, e, por isso,
nunca está em condições de corresponder a cada experiência com clareza,
simplicidade, de modo direto.
Ora, não pode a mente observar a causa, o incidente
que produziu o medo, sem interpretação e sem julgamento? Não pode ela olhar,
simplesmente, para a causa do temor, “escutá-la”, deixá-la revelar toda a sua
história, sem interpretá-la, sem negá-la ou aceitá-la, sem procurar ocultá-la,
sem buscar um abrigo ou fugi-la? Daí, a meu ver, é que nasce a simplicidade,
tão essencial à compreensão. Se somos capazes de considerar a causa do problema
com muita simplicidade, sem traduzirmos ou condenarmos, parece-me que, então, é
possível estarmos livres, momento por momento, não só do temor, mas também da
inveja, do ciúme, do desejo de sermos bem-sucedidos e de todos os demais
problemas. humanos inevitáveis. Problemas surgirão sempre e teremos sempre
reações, enquanto vivermos. Não é, portanto, necessário tenhamos a capacidade
de enfrentar os problemas, ao surgirem, dia por dia, sem acumularmos
experiência, que nos limita o pensar e impede-nos a compreensão do problema?
Simplicidade de pensamento e de espírito é uma coisa
essencial, mas não pode haver simplicidade enquanto estiver em funcionamento o
“mecanismo” acumulador da autoproteção; e esse “mecanismo” de pensamento, visando
à autoproteção, existe não apenas no nível consciente, mas também nos
diferentes níveis inconscientes do nosso ser. É por querermos proteger-nos, que
o saber e a experiência se tornam tão extraordinariamente importantes em nossa
vida. Quando se nos depara um problema, nunca estamos completamente
desvencilhados do passado. E é-nos possível — a vós e a mim — aliviar a mente
de todo o passado, do saber acumulado de ontem?
Senhores, reputo assaz importante examinarmos esta
questão e compreendê-la. Com a carga do passado, a mente cria os seus próprios
problemas, não é verdade? E pode a mente começar a atender a cada problema de
maneira nova, observando-o, ao surgir, sem interpor todas as sombras da passada
experiência? Sem dúvida, este é que é o nosso problema:
considerar cada incidente, cada reação, sem preconceito, sem tendências, sem
interpretá-los de acordo com coisas aprendidas, no desejo de nos protegermos.
Pode a mente ficar livre de tudo isso e considerar diretamente
cada problema que surge? Se pode, então já não há morte, e todos os problemas
humanos podem ser resolvidos; mas não para sua satisfação, seu aprazimento. No
momento em que introduzimos o desejo de satisfação, começamos a acumular, do
que resulta temor. Mas, não nos é possível considerar o problema, qualquer que ele
seja, sem julgamento, sem avaliação? O avaliar um problema implica memória,
julgamento, pesar, calcular — e tudo isso indica a constante preocupação da
mente de proteger-se. O desejo de nos protegermos, de nos resguardarmos, tanto
é consciente como inconsciente; e, ao se tornar conhecedora de todo esse mecanismo,
pode a mente aboli-lo e considerar o problema diretamente? Só pode fazê-lo
quando vós e eu compreendemos a necessidade de nos libertarmos do temor.
O medo corrompe e nos ensombra todas as ações; onde
há temor, não há amor. Sabemos disso teoricamente. Temos lido a seu respeito.
Quando, porém, estamos cônscios de que tememos inúmeras coisas, não podemos
examinar rigorosamente esse fato? Não podemos descobrir a causa do temor
e compreendê-la realmente, sem lutarmos, sem traduzirmos, sem julgarmos ou
interpretarmos o que é? E quando a mente está apercebida do que é,
não apenas no nível consciente, mas como o “mecanismo” total do nosso ser, não
há um desafogo, uma libertação da causa que produziu o temor? Mas não há
libertação quando não existe a intenção de compreender o que é, de observá-lo,
de familiarizar-nos com ele, de “escutar” todo o seu conteúdo, observar-lhe o
fluir, o movimento.
Vemos, pois, que a simplicidade do pensar não
resulta da acumulação de conhecimentos. Pelo contrário, quanto mais sabemos,
tanto menos simples é a nossa mente; e a mente tem de ser sobremaneira simples,
para compreender o que é. O que é nunca é a mesma coisa, pois
varia de momento a momento, e o seu movimento não pode ser compreendido por uma
mente carregada de condenação, julgamento, da ânsia de autoproteção e do temor
do futuro.
Senhores, acredito ser da mais alta importância
descobrir se podemos observar o que é, sem sentir desgosto e
repulsa. Afinal de contas, que somos nós? Somos o resultado de muitas reações,
muitas influências condicionadoras, desejos, temores, — e nessa agitação está
sempre envolvida a nossa mente; sempre batalhando, sempre em conflito. E para
se por fim a essa luta incessante, a esse sofrimento e dor, não nos cabe
compreender, simplesmente, momento por momento, o movimento do que é?
Se sou ganancioso, colérico, ou invejoso, devo por certo compreender essa coisa
tal como é, em vez de tentar dissolvê-la ou dominá-la; pois a própria ação de
dominar é uma luta, um novo conflito, e, por conseguinte, não nos traz nenhuma libertação
do que
é. Mas se estou apercebido não somente da minha inveja, mas também da
sua causa mais profunda, cuja reação ela é, e do desejo de estar livre da
inveja; se estou apercebido desse “mecanismo” total, sem julgamento, sem
escolha, então, acho que esse percebimento esclarece e dissolve aquela causa.
Requer isso, não exercício ou disciplina, mas vigilância por parte da mente; e
a mente não pode estar vigilante, se está sempre escolhendo, condenando,
julgando, fugindo ou procurando modificar o que é.
Simplicidade é compreensão do que é. E só há
compreensão do que é quando a mente desistiu de lutar contra o que
é e desistiu de moldá-lo de acordo com suas fantasias. Na compreensão
do que
é revelam-se-nos os movimentos do “eu”, do “ego”; e isso, certamente, é
o começo do autoconhecimento, não só no nível verbal, mas também naqueles
níveis em que o “eu” se acha profundamente oculto e de onde sai
espontaneamente, nas ocasiões em que relaxamos a vigilância.
Quando estamos apercebidos de nós mesmos, não é, todo
o movimento do viver, uma forma de revelar o “eu”, o “ego”? O “eu” é um mecanismo
muito complexo, que só pode ser revelado na vida de relação, em nossas
atividades diárias, na maneira como falamos, como julgamos, calculamos, como
condenamos a outros e a nós mesmos. Tudo isso revela o estado condicionado do
nosso próprio pensar; e não é importante estar-se cônscio de todo esse mecanismo?
Só pela percepção do que é verdadeiro, momento por momento, se dá o
descobrimento do atemporal, do eterno. Sem autoconhecimento não pode existir o
eterno. Quando não conhecemos a nós mesmos, o eterno se transforma em simples
palavra, um símbolo, uma especulação, um dogma, uma crença, uma ilusão em que a
mente pode refugiar-se. Se começamos, porém, a compreender o “eu” em todas as
suas atividades, dia por dia, então, nessa própria compreensão, apresenta-se,
sem nenhum esforço de nossa parte, o inefável, o atemporal. Mas o atemporal não
é uma recompensa ao autoconhecimento. O que é eterno não pode ser procurado; a
mente não pode adquiri-lo. Ele se apresenta quando a mente está tranquila; e a
mente só pode estar tranquila quando é simples, quando já não está armazenando,
condenando, julgando, pesando. Apenas a mente simples pode compreender o Real,
e não a mente repleta de palavras, de conhecimentos, de ilustração. A mente que
analisa, que calcula, não é uma mente simples.
Para ser criadora, a mente tem de estar despojada de
todas as suas acumulações; e, sem criação, nossa vida é vazia, ainda que esteja
cheia de atividades, de resoluções e determinações, coisas essas de muito pouca
significação. Entretanto, a mente que percebe todo esse mecanismo de acumulação
para fins de autoproteção; que percebe todo o seu conteúdo, sem
procurar alterá-lo ou rejeitá-lo, essa mente, por ser simples, está
tranquila e compreende o que é. E nisso há um desafogo
extraordinário, uma liberdade em que está a Realidade.
Krishnamurti em,
Percepção Criadora,
11 de julho de 1953
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