Todos nós temos muitas experiências, e cada experiência deixa sua marca; cada pensamento, cada influência molda-nos de certa maneira a mente. E é uma coisa essencial morrermos para tudo o que temos experimentado, para que a mente se torne jovem, fresca e "inocente". Só uma mente "inocente", que embora tenha passado por milhares de experiências, está morta para o passado — só essa mente pode perceber o que é verdadeiro e transcender as coisas fabricadas pelo homem. E o medo, assim me parece, é uma das forças corruptoras e destrutivas que tornam impossível essa "inocência".
O medo é tempo psicológico. Não há medo, quando não temos tempo psicológico. Se não há um amanhã, para o qual estamos nos movendo, e não há lembranças do passado, o medo, em todas as suas formas, deixa de existir. Nasce o medo quando o pensamento se projeta no futuro, ou se compara com o que ele próprio foi no passado. Psicologicamente, o tempo é pensamento, tanto consciente como inconsciente; e é o pensamento que cria o medo.
Temos toda espécie de medo: medo da morte, medo de adoecer, medo da velhice, medo de perder as satisfações que temos experimentado, medo da opinião pública, de não nos preenchermos, de não termos êxito, de sermos ninguém. Como temos medo, buscamos vários tipos de fuga, tanto exterior como interiormente; e, para a maioria de nós, a religião se tornou um extraordinário meio de fuga ao medo. Para compreendermos o medo, temos de compreender todo o processo do pensar, todo o mecanismo do pensamento.
Como salientei da outra vez, releva escutar o que se diz, sem concordar nem discordar; porque nós estamos considerando fatos e não ideias. Estamos considerando fatos, independentemente de que esses fatos sejam agradáveis ou desagradáveis. E se somos capazes de considerar o fato que é o medo, escutar-lhe todo o conteúdo, ver sua estrutura, estou bem certo de que então a mente ficará num estante livre do medo.
Mas nós não sabemos escutar, porque estamos sempre procurando fugir do medo; queremos dissolvê-lo, descobrir uma maneira de nos livrarmos dele, descobrir-lhe a causa. Damos nome ao fato "medo", e a palavra se torna então importante; por essa razão nunca escutamos o fato.
O descobrimento da causa do medo não é a libertação do medo. Com muita análise, investigação, é possível conhecermos a causa do medo; mas, no final de tudo, continuamos com medo. E, se não estivermos realmente livres do medo, qualquer espécie de busca, qualquer espécie de investigação só produzirá mais ilusão ou desfiguração. Um homem verdadeiramente religioso, se posso empregar essa palavra, não tem medo, psicologicamente, interiormente. Por "homem religioso" entendo o "homem total", e não aquele que é meramente sentimental ou que foge ao mundo, narcotizando-se com ideias, ilusões, visões. A mente de um homem religioso é muito tranquila, são, racional, lógica; e dessa mente é que necessitamos, e não de uma mente sentimental, emotiva, medrosa, enredada em seu especial condicionamento.
(...)
Como sabeis, desejamos ficar livres do medo para todo o sempre. Não existe tal coisa: "estar livre do medo para todo o sempre". Para se compreender isso, é preciso compreender a continuidade. O que dá continuidade a uma coisa, agradável ou desagradável, é o pensar nela. Ao pensarmos a respeito de uma coisa, damos-lhe continuidade. Damos continuidade ao medo com o pensar sobre ele — mas isso não significa que não devamos investigar o processo total do medo.
Como disse, o medo é tempo, no sentido psicológico, e o tempo é pensamento. Tempo é o processo de "vir a ser", evitar, preencher-se: Sou isto e quero ser aquilo. O tempo, por conseguinte, é o fator do medo. Quando vocês se veem diretamente em presença de uma coisa, qualquer que ela seja, nesse momento não há medo. Mas o pensar a seu respeito causa medo.
O pensamento é reação da memória. A memória, no sentido comum, é necessária, porque do contrário nos colocaríamos à frente de um ônibus em movimento ou tomaríamos nas mãos uma serpente venenosa. Mas, quando a memória cria o pensamento, como reação, ela se torna um empecilho e gera medo. Isso é um fato psicológico.
A morte é o desconhecido; mas, quando dizemos que tememos a morte, não estamos realmente com medo ao desconhecido, porém, com medo de deixar o conhecido, de deixarmos as coisas que temos experimentado, fruído, construído. O pensamento é essa memória do conhecido, e a respectiva reação; o pensamento, pois, nunca pode ser livre. Não há liberdade de pensamento, porquanto o pensamento está sempre condicionado, é sempre reação da memória. E para ficar totalmente livre do medo, é necessário compreender a constituição da memória como continuidade.
Como mecânico, cientista, engenheiro, etc., necessitais da continuidade da memória, pois do contrário não podereis exercer vossas funções. Mas a continuidade do pensamento como feixe de lembranças relativas ao "eu" e ao "meu", e as reações desse pensamento condicionado, tudo isso é tempo psicológico, medo. O pensar a respeito da morte — o súbito findar de tudo o que conhecemos — gera medo e dá-lhe continuidade. Assim, para que o medo termine, é necessário que o pensamento termine. Podeis dizer: "Isto é uma coisa estranha. Como posso por fim ao pensamento? Se ponho fim a todo pensar, como poderei ganhar o meu sustento? Como poderei continuar no meu emprego amanhã de manhã?"
Há duas espécies diferentes de pensar: pensar para exercer uma função, e pensar no sentido de servir-se dessa função como meio de adquirir posição. A continuidade psicológica do pensamento, que se forma quando utilizamos a função como meio de adquirir autoridade, posição, prestígio — é essa continuidade que gera o medo.
(...) O tempo, no sentido psicológico, gera o medo. O tempo é o veículo do pensamento; e o homem que deseja ficar completamente livre do medo tem de colocar fim ao pensamento. Isso requer atenção — não concentração, porém atenção total a cada pensamento. Se puderdes dar atenção total a cada pensamento, importante ou sem importância, profundamente significativo ou sem muita significação, vereis então que nesse estado de atenção total ocorre o findar do pensamento.
O medo gera a "culpa", a ansiedade; e a ansiedade, em qualquer forma, é o começo do sofrer. Há o sofrimento de não ser amado; o sofrimento que experimentamos quando alguém a quem estamos profundamente apegados, sofre ou está a morrer. E nós temos divinizado o sofrimento. Isso é verdade principalmente em relação ao cristianismo, que sempre considerou o sofrimento uma coisa sublime. Ide a uma igreja, e lá encontrareis o "Crucificado". Não há fim ao sofrimento, para a maioria de nós, porque eternizamos o sofrimento e na sua sombra vivemos até o fim de nossos dias. O sofrimento tornou-se coisa respeitável. É algo que todo homem civilizado conhece e guarda fechado em seu coração; e quando ele vai à igreja, rende-lhe adoração, ou, por várias maneiras, procura evitá-lo.
Mas, há o findar do sofrimento. O sofrimento deve findar completamente, porque, do contrário, nunca poderá existir a mente religiosa a que me refiro. O sofrimento não nos leva à verdade; mas o sofrimento tem grande significação, porque algo nos indica. Infelizmente, a maioria de nós evita essa indicação, essa sugestão, e fica "vivendo com o sofrimento". Se o examinardes profundamente, vereis que o sofrimento é autocompaixão, embora possais dar-lhe outro nome. Perdeste alguém — marido, mulher, filho — e vosso sofrimento é a compaixão que tendes de vós mesmo, por terdes ficado só. Todos conhecemos essa autocompaixão resultante da solidão; e a autocompaixão, em qualquer forma que seja, a preocupação a respeito de si mesmo, é o começo do sofrimento. O sentimento de inferioridade e a luta para se tornar superior, o conflito e o triunfo que há em alcançar, atingir, a dor da frustração, — tudo isso produz sofrimento.
Como deveis saber, muito pouco de nós fazemos frente ao sofrimento. Provavelmente nunca experimentamos o sofrimento diretamente... Temos experimentado diretamente a fome, o sexo; mas não estou certo de que já experimentamos diretamente o sofrimento. Nós permanecemos com o que é agradável, queremos continuar nesse estado; mas o sofrimento procuramos evitar, nunca queremos encará-lo. O desejo de encontrar uma saída, um meio de fuga, nas palavras, nas ideias, na crença, na bebida, no que quer que seja — impede-nos de encarar diretamente o fato do sofrimento.
Se perdemos o filho, se a mulher ou o marido nos abandona, ficamos a sofrer. Que sucedeu realmente? Vemo-nos abandonados, sós, sem ninguém mais em quem nos amparar. Nós nos tínhamos identificado completamente com aquela pessoa e, agora, que ela se foi, sentimo-nos perdidos. O fato é que, psicologicamente, somos dependentes, e esse fato provoca outros fatos, ou sejam várias maneiras de fugir, que só podem perpetuar o medo e o sofrimento.
Assim, sendo, torna-se dificílimo encarar e experimentar diretamente o fato que é o sofrimento. A palavra "sentimento" tem certos significados sugestivos, e, para se experimentar qualquer coisa direta e totalmente, é necessário estar-se livre da palavra. Mas vós sois escravos da palavra... Analogamente, a palavra "sofrimento" tem em vós extraordinária influência. A palavra, o símbolo tem séculos de propaganda religiosa a ampará-lo: que é necessário sofrer, suportar o sofrimento; que pelo sofrimento virá a paz, etc. Tudo isso condicionou a mente, e vós nunca rompeis esse condicionamento. Mas, para ficardes livre do sofrimento, tendes de despedaçar todos os símbolos, rejeitar todas as palavras e encarar diretamente o fato. E não podeis encarar o fato, que é a vossa autocompaixão, se o retrato que está sobre o piano ou sobre a lareira se torna sumamente importante, porque nesse caso estais identificado com a ideia, uma lembrança, uma coisa morta e acabada, e estais vivendo no passado. Libertar-se completamente do passado, destruí-lo totalmente, com toda a sua história, todas as suas memórias, é o findar do sofrimento.
Assim como o medo desfigura a mente, produzindo várias formas de ilusão e corrupção, assim também o sofrimento torna a mente embotada, insensível; porque, no sofrimento, a mente está toda interessada em sua própria autocompaixão, sua própria solidão. E eu vos garanto — não digo que deveis acreditar, mas garanto-vos que o sofrimento pode findar e que, então, veem-se todas as coisas de maneira nova, cada incidente, cada movimento de maneira nova. É só quando a mente está livre do sofrimento e de toda espécie de medo, que há "inocência". E a mente precisa ser "inocente", embora tenha vivido um milênio; porque só a mente nova, inocente, jovem, é capaz de perceber o que se encontra além das limitações humanas.
Mas tudo isso requer muita atenção, verdadeira seriedade, que não significa "fazer uma cara solene", mas, sim, ser capaz de seguir velozmente um dado pensamento, até o fim, deixando que ele se desdobre por inteiro, sem obstáculos; e isso não é possível se tendes amarras no passado.
(...) A maioria de nós jamais experimentou um estado de "inocência"... Se sois rico ou remediado, podereis procurar um analista; mas nenhum agente externo, nenhum esforço pode libertar-vos do sofrimento, a fim de colocar fim ao seu sofrer — nesse caso não ficais atento.
Tentai uma vez, se o desejardes, considerar totalmente uma flor, uma árvore, um ente humano. Considerar sem conhecimento, sem pensamento — o que não significa um estado de amnésia, ter a mente "em branco". Vereis que, ao considerardes assim uma coisa, há um extraordinário estado de atenção que não é concentração. Concentração é exclusão. A mente que está atenta pode concentrar-se sem esforço, sem exclusão. Mas a mente que adquiriu a faculdade de concentração por meio do esforço, treino, disciplina — essa mente jamais poderá estar atenta.
Krishnamurti - 7 de junho de 1962
O Homem e seus desejos em conflito - ICK
O Homem e seus desejos em conflito - ICK