Ora bem, estamos procurando a
felicidade ou estamos buscando alguma espécie de satisfação, da qual esperamos
obter felicidade? Há diferença entre felicidade e satisfação. Pode-se procurar a felicidade? Talvez se possa achar a
satisfação, mas, por certo, não se pode achar a felicidade. A felicidade é
um derivado, um subproduto de outra coisa. Nessas condições, antes de
aplicarmos nossa mente e nosso coração a uma coisa que exige muito interesse,
muito estudo, reflexão e aplicação, precisamos saber o que estamos buscando, se
a felicidade, se a satisfação. Queremos estar satisfeitos, encontrar um
sentimento de plenitude, no fim da busca.
Afinal, se estamos procurando a
paz, podemos achá-la com muita facilidade. Basta devotarmo-nos cegamente a uma
causa qualquer, a uma ideia qualquer, e aí ficarmos abrigados. Decididamente,
este não é um meio de resolver o problema. Isolar-se na clausura de uma ideia não
é a maneira de nos libertarmos do conflito. Precisamos verificar, tanto
interior como exteriormente, o que cada um de nós deseja alcançar, não achais? Se nos esclarecermos a esse respeito, não
teremos mais a necessidade de ir a parte alguma, , a nenhum guia, a nenhuma
igreja, nenhuma organização. Nosso problema, por conseguinte, é o de fazermos
luz em nós mesmos sobre nossa intenção, não achais? Podemos ter essa clareza? Ela
nos vem como resultado de busca e de ouvirmos o que dizem outras pessoas, do mais
sublime instrutor ao medíocre pregador da igreja da esquina? Precisais de
alguém, para serdes capazes de descobrir? Entretanto, é isso que estamos
fazendo, não é? Lemos inúmeros livros, vamos a muitas reuniões, ingressamos em
várias organizações, em busca de remédio para nosso conflito, para as misérias
de nossa vida. Ou, se assim não procedemos, é porque julgamos ter encontrado o
que buscávamos. Dizemos que determinada organização, determinado instrutor,
determinado livro nos satisfaz; encontramos nele o que desejávamos; e aí nos
deixamos ficar, cristalizados e fechados.
No meio de toda esta confusão,
não estamos buscando alguma coisa que seja penetrante, perdurável, uma coisa
que chamamos o real, Deus, a Verdade, ou o que quiserdes? — o nome não importa,
pois a palavra não é a coisa. Não nos deixemos, pois, enredar pelas palavras.
Deixemos isso para os conferencistas profissionais. Há, em quase todos nós, o
desejo de atingir algo permanente, não é verdade? — algo a que nos possamos
apegar, que nos dê segurança, esperança, entusiasmo e certezas perenes, já que,
dentro de nós mesmos estamos tão incertos. Não conhecemos a nós mesmos.
Conhecemos muitos fatos e o que disseram os livros, porém, nada sabemos por nós
mesmos, não temos uma experiência direta.
Que é isso a que chamamos
permanente? Que é isso que estamos buscando e que esperamos nos dará a
permanência? Não buscamos a felicidade permanente, a satisfação permanente, a
certeza permanente? Queremos algo que dure eternamente, e que nos dê
satisfação. Se nos desnudarmos de todas as palavras e frases, e olharmos a
realidade, veremos que não desejamos outra coisa. Queremos prazer permanente,
satisfação permanente — que chamamos a Verdade, Deus, ou o que quiserdes.
Muito bem, queremos prazer.
Talvez seja uma maneira rude de dizê-lo, mas é o que queremos de fato:
conhecimento que nos dê prazer, experiência que nos dê prazer, satisfação que
não definhe de hoje para amanhã. Já experimentamos satisfações variadas e todas
elas se desvaneceram. Queremos encontrar agora a satisfação permanente na
realidade, em Deus. Positivamente, é isto o que todos nós estamos procurando,
tanto os inteligentes como os estúpidos, tanto o teórico como o prático que
luta pela obtenção de alguma coisa. Há, de fato, satisfação permanente? Existe
alguma coisa perdurável?
Se estais em busca da satisfação
permanente, a que chamais Deus, ou a Verdade, ou como quer que seja — o nome
não importa — é óbvio que deveis compreender a coisa que estais buscando. Quando
dizeis "busco a felicidade permanente" — Deus, ou a verdade, ou o que for — não deveis compreender também a entidade
que busca? Porque é bem possível que a segurança e a felicidade permanentes não
existam. A Verdade pode ser uma coisa completamente diferente e, acho eu, ela é
totalmente diferente daquilo que se pode ver, conceber, formular. Por
conseguinte, antes de nos pormos em busca de uma coisa permanente, não é bem óbvia a necessidade de compreendermos a
entidade que busca? A entidade que busca é diferente da coisa que se busca?
Quando dizeis estou buscando "Estou buscando a felicidade " — esse
ente que está empenhado na busca é diferente do objeto de sua busca? O pensador
é diferente do seu pensamento? Não constituem os dois um fenômeno conjunto, e
não dois processos separados? Consequentemente, é essencial que se compreenda o
empreendedor da busca, antes de procurar compreender aquilo que ele está
buscando.
Chegamos, assim, ao ponto em que
nos perguntamos muito séria e profundamente, se a paz, a felicidade, a
realidade, Deus, ou o que quer que seja, nos pode ser dado por outra pessoa.
Pode essa busca incessante, esta ânsia, dar-nos aquele extraordinário
sentimento de realidade, aquele "modo de ser" criador, que surge
quando compreendemos verdadeiramente a nós mesmos? Vem o autoconhecimento como
resultado da busca, como resultados de seguirmos outra pessoa, como resultado
de pertencermos a uma determinada organização, de lermos livros, etc? Afinal de
contas, o ponto mais importante é este, isto é, enquanto eu não compreender a
mim mesmo, não tenho base para o pensamento, e toda minha busca será em vão.
Posso refugiar-me em ilusões, fugir da competição, da luta, do conflito; posso
venerar uma pessoa; posso buscar minha salvação através de outrem. Mas enquanto
eu desconhecer a mim mesmo, enquanto desconhecer o processo total de mim mesmo,
não tenho base para o pensamento, para o afeto, para ação.
Esta é porém a coisa que menos desejamos:
conhecer a nós mesmos. Ela é, no entanto, decididamente, a única base sobre que
podemos edificar. Mas antes de podermos construir, antes de podermos
transformar, antes de podermos condenar ou destruir, precisamos saber o que
somos. Por-nos a procurar, a trocar de instrutores, de gurus, a praticar a
Ioga, disciplinar a respiração, observar rituais, seguir Mestres, e o que mais
seja, é inteiramente inútil, não achais? Não tem significação alguma, mesmo
admitindo que as pessoas que seguimos digam: "Estudai-vos!" — porque
o que nós somos, o mundo é. Se somos mesquinhos, invejosos, vãos, gananciosos —
isso é o que criamos ao redor de nós, isso é a sociedade em que vivemos.
Creio que, antes de nos pormos a
caminho para achar a realidade, para achar Deus, antes de podermos agir, ter
relações uns com os outros, as quais constituem a sociedade, é essencial comecemos
pela compreensão de nós mesmos. Creio que a pessoa séria é aquela que está toda
interessada neste fato, em primeiro lugar, e não em como atingir um determinado
alvo, porque, se vós e eu não nos compreendemos a nós mesmos, como podemos, com
nossa ação, promover uma mudança na sociedade, na vida de relação, em qualquer
coisa que fazemos? Mas isso, é claro, não implica que o autoconhecimento seja
uma coisa oposta à vida ou um isolamento da vida de relação. Não significa, por
certo, a exaltação do indivíduo, do "eu", como oposto da massa, como
oposto de outro indivíduo.
Pois bem, se não conheceis a vós
mesmos, se não conheceis vossa própria maneira de pensar e por que pensais
certas coisas; se não conheceis o fundo do vosso condicionamento e não sabeis
por que tendes certas crenças relativas à arte e à religião, relativas à
pátria, ao vosso próximo e a vós mesmos, como podeis pensar de modo correto a respeito
de qualquer coisa? Se não conheceis vosso íntimo, se não conheceis a substância
do vosso pensamento e de onde provém ele, vossa busca, sem dúvida alguma, é
de todo fútil, vossa ação nenhum significado
tem, não é verdade? E, também, nenhuma significação tem o fato de serdes
americano, hindu, ou de pertencerdes a qualquer outra religião.
Antes que possamos
esclarecer-nos sobre a finalidade da
vida, descobrir o que significa tudo isso — guerras, antagonismos nacionais,
conflitos, enfim toda esta confusão, temos de começar por nós mesmos, não
achais? Isso parece muito simples, mas é extremamente difícil.
Para que sejamos capazes de
observar a nós mesmos, de ver como opera nosso pensamento, precisamos estar
sobremodo vigilantes. Assim, começando a perceber cada vez melhor as
complexidades do nosso pensar e das nossas reações e sentimentos, teremos uma
compreensão mais clara, não só de nós mesmos como dos outros, com quem estamos
em relação. Conhecer a si mesmo é estudar a si mesmo em ação, que é relação. O
mal é que somos muito impacientes; queremos "tocar para a frente",
chegar à meta, e por isso não há tempo nem oportunidade para estudarmos e
observarmos. Estamos empenhados em várias atividades, alternadamente — ganhar a
vida, criar filhos; ou assumirmos certas responsabilidades perante várias
organizações; estamos tão cheios de compromissos, de diferentes espécies, que
dificilmente encontramos tempo para a reflexão sobre nós mesmos, para
observarmos e estudarmos. Assim, com efeito, a responsabilidade da reação é
nossa, e de mais ninguém. Andar pelo mundo em busca de gurus e de seus
sistemas, ler os livros mais recentes sobre esta ou aquela matéria, etc.,
parece-me completamente vão, completamente fútil. Podemos percorrer toda a
Terra, mas teremos de voltar a nós mesmos. E, visto que em geral nos
desconhecemos totalmente, é dificílimo começarmos a ver com clareza o processo
do nosso pensar, sentir e agir.
Quanto mais uma pessoa se conhece,
tanto mais clareza existe. O autoconhecimento é infinito; nunca se chega a um
remate, nunca se chega a uma conclusão. É um rio sem fim. Estudando-o e
penetrando-o mais e mais, encontramos a paz. Só quando a mente está tranquila —
em virtude do autoconhecimento e não de autodisciplina — só então, nessa
tranquilidade, nesse silêncio, pode manifestar-se a realidade. Só então pode
haver bem-aventurança, ação criadora. E se, sem termos esta compreensão, esta
experiência, pomo-nos a ler livros, a assistir a conferências, a fazer
propaganda, isto me parece extremamente infantil, uma simples atividade sem
muita significação. Mas se, ao contrário, o indivíduo for capaz de compreender
a si mesmo e, por conseguinte de fazer nascer aquela felicidade criadora, aquele
experimentar de algo não produzido pela mente, então talvez possa haver uma
transformação imediata das relações, ao redor de nós, e, por conseguinte, no
mundo em que vivemos.
Krishnamurti - A Primeira e a Última
Liberdade