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sábado, 21 de abril de 2018

O pensamento impede a integral comunhão do amor


O pensamento impede a integral comunhão do amor

Há, a meu ver, vasta diferença entre mudança e mutação. A mera mudança não conduz a parte alguma. Uma pessoa pode tornar-se superficialmente adaptável, muito hábil no ajustar-se aos diferentes ambientes e circunstâncias sociais, e existem várias formas de pressão interior e exterior; mas a mutação requer um estado mental bem diferente. Nesta manhã desejo salientar a diferença entre estas duas coisas.

Mudança é alteração, reforma, substituição de uma coisa por outra. Mudança implica ato de vontade, consciente ou inconsciente. E, considerando-se a confusão, a miséria, a opressão, a extrema aflição existente em toda a Ásia subdesenvolvida, torna-se evidente a necessidade de uma mudança radical, revolucionária. Há necessidade, não só de mudança física ou econômica, mas também de mudança psicológica — mudança em todos os níveis de nosso ser, exteriores e interiores, a fim de se proporcionar uma melhor existência ao homem. Isso é óbvio, e até os mais extremados conservadores o admitirão. Mas, ainda que o reconheçamos, em regra não consideramos profundamente a questão da mudança e tudo o que ela encerra. Qualquer ajustamento, substituição, reforma, é de ação profunda, ou consiste meramente num polimento superficial, numa “limpeza”, na moralidade das relações humanas? Penso que devemos compreender plenamente o que está implicado nesse mecanismo de mudança, antes de examinarmos o que considero mutação.

A mudança, embora necessária, me parece sempre superficial. Entendo por mudança todo movimento operado pelo desejo ou pela vontade, toda iniciativa concentrada numa dada direção, visando a uma certa atitude ou ação bem definida. Toda mudança, evidentemente, tem atrás de si um motivo. Esse motivo pode ser pessoal ou coletivo, manifesto ou remoto; pode ser um motivo bondoso, generoso, ou um motivo de medo, desespero; mas qualquer que seja a natureza ou o nível do motivo, a iniciativa ou movimento resultante desse motivo produz uma certa mudança. Isso me parece claro. Em geral somos suscetíveis, individual e coletivamente, de modificar nossas atitudes, sob influência, pressão, e também quando aparece alguma invenção nova que direta ou indiretamente influi em nossa vida. Podemos ser levados a mudar nossos pensamentos, orientá-los em diferente direção, por um artigo de jornal ou pela propaganda que se faz de uma ideia. A religião organizada empenha-se em educar-nos, desde a infância, numa certa forma de crença, condicionando-nos assim a mente, e, pelo resto da vida, toda mudança que operamos fica dentro dos limites “modificados” dessa crença.

Assim, são raros os que mudam, a não ser com um motivo. O motivo poderá ser altruísta ou interesseiro, limitado ou amplo; poderá ser o medo de perder uma recompensa, ou de não atingir um certo e prometido estado para o futuro. O indivíduo se sacrifica à coletividade, ao Estado, a uma ideologia, ou a determinada forma de crença em Deus. Tudo isso implica uma certa mudança, consciente ou inconscientemente produzida.

Pois bem; a chamada mudança é uma "continuidade modificada” do que já existia, e nessa suposta mudança nos tornamos muito hábeis. Estamos constantemente fazendo novas descobertas na Física, na Ciência, na Matemática, inventando coisas novas, preparando-nos para ir à Lua, etc. etc.

Em certos aspectos tornamo-nos extraordinariamente “sabidos”, bem informados; e essa espécie de mudança envolve capacidade de ajustamento ao novo ambiente, às novas pressões que ela cria. Mas, basta isso? Pode-se perceber tudo o que determina essa superficial modalidade de mudança. Entretanto, sabemos, interiormente, profundamente, ser necessária uma mudança radicalmudança não produzida por nenhum motivo ou como resultado de pressão. Percebemos a necessidade de mutação na própria raiz da mente, pois, sem ela, somos apenas uma horda de macacos habilíssimos e dotados de extraordinárias aptidões — e não autênticos entes humanos.

Percebendo-se isso, profundamente, em nós mesmos, que cumpre fazer? Vemos que se necessita de uma mudança revolucionária, de completa mutação na raiz mesma de nosso ser, porque, do contrário, nossos problemas, tanto econômicos como sociais, irão crescendo inevitavelmente, e se tornando cada vez mais críticos. Necessita-se de uma mente nova, fresca — e, para a termos, deve operar-se, na totalidade de nossa consciência, uma mutação não produzida por ato de vontade e, portanto, sem motivo.

Não sei se me estou expressando claramente.

Percebendo a necessidade de mudança, pode uma pessoa exercer a vontade, a fim de produzi-la — sendo “vontade” o desejo fortalecido, em dada direção, pela determinação e posto em movimento pelo pensamento, pelo medo, pela revolta. Mas toda mudança dessa ordem — mudança produzida pela ação do desejo, da vontade — é sempre limitada. É uma “continuidade modificada” do que era antes, como se pode ver pelo que está ocorrendo no mundo comunista, e também nos países capitalistas. Necessita-se, pois, de uma revolução extraordinária, de revolução psicológica no ente humano, no próprio homem; mas, se ele tem um alvo, se sua revolução é planejada, está ainda dentro dos limites do “conhecido” e, por conseguinte, não constitui mudança nenhuma.

Eu posso mudar, posso forçar-me a pensar de outro modo, a adotar um diferente sistema de crenças; posso suprimir um dado hábito, livrar-me do nacionalismo, reformar meu raciocínio, fazer eu próprio a “lavagem” de meu cérebro, em vez de deixá-la para ser feita por um partido ou igreja. Tais mudanças são muito fáceis de operar em mim mesmo; mas percebo sua total inutilidade, porquanto são superficiais e não conduzem à compreensão profunda que deve orientar-nos na vida. Assim, que fazer?

Compreendeis minha pergunta? Acho que fui claro.

Se faço um esforço para mudar, esse esforço tem motivo, significando isso que o desejo inicia um movimento em certa direção. Aí está em ação a vontade, e, por conseguinte, qualquer mudança que seja produzida é uma simples modificação — não é uma mudança real, absolutamente.

Vejo claramente que preciso mudar, e que essa mudança deve ocorrer sem esforço. Todo esforço para mudar anula-se a si próprio, uma vez que supõe a ação do desejo, da vontade, em conformidade com um padrão, uma fórmula, um conceito preestabelecido. Assim sendo, que fazer?

Não sei se sentis como eu a relevância desta questão — o quanto ela nos interessa, não só no sentido intelectual, mas, principalmente, como um fator essencial em nossa vida. Há milhões de anos vem o homem fazendo um esforço incessante para mudar, entretanto continua envolto em aflições, desespero, medo, só tendo raros e fugidios clarões de alegria e deleite. E como pode essa entidade, que há tanto tempo vem sendo fortemente condicionada, alijar sua carga sem nenhum esforço? Esta a pergunta que estamos fazendo a nós mesmos. Mas, “o lançar fora a carga” não deve tornar-se mais um problema; porque, como antes indiquei, problema é algo que não compreendemos, algo que não temos capacidade para examinar até o fim e liquidar de uma vez.

Para se produzir essa mutação — “produzir”, não, esta é uma expressão errônea; a mutação é uma necessidade e tem de verificar-se agora. Introduzindo-se o tempo como fator de mutação, o tempo cria o problema. Não há amanhã, não há tempo nenhum em que eu irei mudar — sendo o tempo pensamento. Isso tem de acontecer agora ou nunca. Compreendeis?

Percebo a necessidade dessa mudança radical em mim, ente humano, parte integrante da humanidade; e percebo, também, que o tempo, que é pensamento, não deve representar nisso um fator. O pensamento não deve representar nisso um fator. O pensamento não pode resolver este problema. Venho exercendo o pensamento há milhares de anos e, no entanto, não mudei. Continuo com meus hábitos, minha avidez, minha inveja, meus temores, e me vejo ainda todo enredado no padrão de competição da existência. Foi o pensamento que criou o padrão; e o pensamento não pode, em circunstância alguma, alterar esse padrão sem criar outro padrão — sendo o pensamento tempo. Portanto, não posso contar com o pensamento, com o tempo, para operar a mutação, a mudança radical. Não pode haver exercício da vontade, e não se pode deixar o pensamento orientar a mudança.

Que me resta, então? Vejo que o desejo, que é vontade, não pode operar em mim uma verdadeira mutação. O homem vem trabalhando nisso há séculos e nele não se produziu nenhuma mudança fundamental. Tem-se servido, também, do pensamento para produzir mudança em si próprio — pensamento como tempo, pensamento como amanhã, com todas as suas exigências, invenções, pressões, influências — e, como vemos, ainda não houve nenhuma transformação radical. Que fazer, pois?

Ora, uma vez compreendida, em sua totalidade, a estrutura e o movimento da vontade, esta deixa de atuar; e, percebendo-se que o emprego do pensamento, do tempo, como instrumento de mudança, não passa de mero adiamento, termina então o mecanismo do pensar. Mas, que queremos exprimir ao dizer que percebemos ou compreendemos uma coisa? A compreensão é meramente intelectual, verbal, ou significa que se está vendo uma coisa como fato? Posso dizer que “compreendo” — mas a palavra não é a coisa real. A compreensão intelectual de um problema não é a solução desse problema. Ao compreendermos uma coisa apenas verbalmente (e isso é o que chamamos compreensão intelectual), a palavra importa muito; mas, havendo verdadeira compreensão, ela perde toda a importância, sendo então simples meio de comunicação. Há contato direto com a realidade, o fato. Se percebemos como um fato a futilidade da vontade, e também a futilidade do pensamento, ou do tempo, no produzir essa radical transformação, então a mente (que rejeitou toda a estrutura da vontade e do pensamento) nenhum instrumento tem com que iniciar a ação.

Bem, até agora vós e eu temos estado em comunicação, e talvez tenhamos também estabelecido entre nós uma certa comunhão. Mas, antes de prosseguirmos, considero importante compreender o que entendemos por comunhão. Se alguma vez andastes entre as árvores de uma floresta, ou pela margem de um rio, e sentistes a quietude, tivestes o sentimento de estar vivendo completamente com todas as coisas, com as pedras, com as flores, com o rio, com as árvores, com o céu — sabereis então o que é comunhão. O “eu” — com seus pensamentos, suas ânsias, seus prazeres, lembranças, desesperos — cessou completamente. Não existis como observador separado da coisa observada; há só aquele estado de completa comunhão. E espero que seja esta a comunhão aqui estabelecida entre nós. Ela não é um estado hipnótico; o orador não vos está hipnotizando, para pôr-vos nesse estado. Explicou certas coisas com todo o cuidado, Mas há algo mais, que não pode ser explicado verbalmente. Até um certo ponto podeis ser informados pelas palavras do orador, mas ao mesmo tempo cumpre ter em mente que a palavra não é a coisa, e que ela não deve interferir na direta percepção do fato. Quando comungais com uma árvore — se alguma vez o fazeis — vossa mente não está ocupada com a espécie dessa árvore, ou a respeito de sua utilidade ou não utilidade. Estais em comunhão direta com a árvore. Analogamente, deve-se estabelecer esse estado de comunhão entre vós e o orador, porque vamos passar agora a um assunto dos mais difíceis de tratar verbalmente.

Como disse, a ação da vontade, e a ação do pensamento como tempo, e o movimento que é iniciado por influência ou pressão de qualquer natureza, cessaram de todo. A mente, por conseguinte, que de fato observou e compreendeu tudo isso, está completamente quieta. Ela não é a iniciadora de qualquer movimento, consciente ou inconsciente. E isso, também, é algo que precisa ser considerado, antes de podermos ir um pouco mais longe.

Conscientemente, podereis não desejar atuar em nenhuma direção determinada, porque já observastes a futilidade de toda espécie de mudança calculada, da mudança promovida pelo comunista ou pelo mais reacionário conservador. Vedes quanto tudo isso é fútil. Mas, interiormente, inconscientemente, há o tremendo peso do passado a impelir-vos numa certa direção. Estais condicionado como europeu, como cristão, como cientista, como matemático, como artista, como técnico; e há a milenar tradição (muito zelosamente explorada pela igreja) que instilou no inconsciente certas crenças o dogmas. Podeis, conscientemente, rejeitar tudo isso, mas, incutis cientemente, o seu peso continua existente. Sois ainda cristãos, inglês, alemão, francês; sois ainda movido pelos interesses nacionais, econômicos, familiais, e pelas tradições da raça a que pertenceis, e, quando se trata de raça antiquíssima, mais profunda ainda é sua influência.

Ora, como eliminar tudo isso? Como purificar o inconsciente, imediatamente, do passado? Creem os analistas que o inconsciente pode ser expurgado, em parte ou no todo, por meio da análise mediante investigação, exploração, a confissão, a interpretação dos sonhos, etc., — de modo que qualquer um pode tornar-se pelo menos um ente humano “normal”, capaz de ajustar-se ao atual ambiente Mas, na análise, há sempre o analista e a coisa analisada, um observador a interpretar a coisa observada — e isso representa uma dualidade, fonte de conflito.

Vejo, pois, que a mera análise do inconsciente a nenhuma parte conduz. Poderá ajudar-me a ser menos neurótico, mais amável com minha mulher, meu próximo — ou outra superficialidade semelhante; mas não é disso que estamos falando. Percebo que o processo analítico (que implica tempo, interpretação, movimento do pensamento que analisa, como observador, a coisa observada) não pode libertar o inconsciente; por conseguinte, rejeito completamente o mecanismo analítico. Assim que percebo esse fato, que a análise não pode, em circunstância nenhuma, afastar o fardo do inconsciente estou fora da análise. Já não analiso. Assim, que aconteceu? Não havendo analista separado da coisa analisada, o próprio analista é essa coisa. Não é uma entidade à parte. Descobre-se, então, que o inconsciente é de pouca importância. Percebeis?

Estive mostrando quanto é trivial o consciente, com suas atividades superficiais, sua perene tagarelice, etc.; e o inconsciente é também trivial. O inconsciente, como o consciente, só se torna importante quando o pensamento lhe dá continuidade. O pensamento tem seu lugar próprio, sua utilidade em assuntos técnicos, etc., mas o pensamento é de todo em todo fútil, quando se trata de operar aquela radical transformação. Se percebo ser o pensamento que dá continuidade ao pensador, termina essa continuidade.

Espero estejais seguindo o que estou dizendo, que requer muita atenção.

O consciente, ou o inconsciente, pouco significam. Eles só se tornam importantes quando o pensamento lhe dá continuidade. Ao perceberdes a verdade de que todo o “mecanismo do pensar” é uma reação do passado e não pode, de modo nenhum, atender à enorme necessidade de mutação, então, tanto o consciente como o inconsciente perdem toda a importância, e a mente deixa de ser influenciada ou impelida por qualquer dos dois. Por conseguinte, já nenhuma iniciativa toma; fica completamente quieta, tranquila, silenciosa. Embora ciente da necessidade de mutação, revolução, de completa e radical transformação de nosso ser, a mente nenhum movimento inicia, em qualquer sentido; e, nesse total percebimento, nesse silêncio completo, opera-se a mutação. A mutação, pois, só pode verificar-se de uma maneira não “diretiva”, isto é, quando a mente nenhum movimento inicia e, por conseguinte, permanece inteiramente tranquila. Nessa tranquilidade há mutação, porque a raiz de nosso ser, ficando exposta, estiola-se. Esta é a única revolução real (e não a revolução econômica ou social) e não pode ser feita pela vontade ou pelo pensamento. Só naquele estado de mutação, pode-se perceber o imensurável, algo de supremo, acima de toda tecnologia e todo reconhecimento.

Espero não tenhais adormecido! Quereis fazer perguntas?

PERGUNTA: Até onde tenho experimentado, o pensamento me condena ao isolamento, porquanto me impede a comunhão com as coisas que me cercam , e também de penetrar as raízes de meu ser. Por conseguinte, pergunto: Porque pensam os entes humanos? Qual a função do pensamento? E porque tanto exageramos a importância do pensar?

KRISHNAMURTI: Supus que isso já tivesse ficado para trás. Está bem, senhor, vou explicar.

Escutar meramente uma explicação não é ver o fato, e não podemos estar em comunhão por meio de uma explicação, a menos que ambos vejamos o fato e não o toquemos, isto é, nos abstenhamos de nele interferir. Então, estamos também em comunhão com o fato. Mas, se interpretais o fato de uma maneira e eu o interpreto diferentemente, não estamos em comunhão nem com o fato nem entre nós.

Ora, como surge o pensamento — o pensamento que isola, que não dá amor, o único meio de comunhão? E, como pode terminar esse pensamento? O pensamento — a totalidade do mecanismo do pensamento tem de ser compreendido, e essa própria compreensão é o seu fim. Examinemos isso.

Surge o pensamento, como reação, quando há um “desafio”. Se nenhum desafio houvesse, vós não pensaríeis. O desafio pode ter a forma de uma pergunta, trivial ou importante, e conforme a pergunta “respondemos”. No intervalo de tempo entre a pergunta e a resposta, começa o mecanismo de pensamento, não é verdade? Se me perguntais alguma coisa com que estou bem familiarizado, minha resposta é imediata. Se me perguntais onde moro, por exemplo, não há intervalo de tempo, porque não tenho de pensar nisso, e imediatamente respondo. Mas, se vossa pergunta é mais complexa há um intervalo (durante o qual fico rebuscando na memória) entre vossa pergunta e minha resposta. Podeis perguntar-me qual a distância entre a Terra e a Lua, e eu digo: “Será que sei alguma coisa a este respeito? Ah! se i...” — e, então, respondo. Entre vossa pergunta e minha resposta há um intervalo de tempo, durante o qual a memória se põe em funcionamento, fornecendo, por fim, a resposta. Assim, quando sou “desafiado”, minha “resposta” pode ser imediata ou pode necessitar de algum tempo. Se me perguntais algo a cujo respeito nada sei, o intervalo é muito mais longo. Digo: “Não sei, mas vou verificar”; e, não encontrando a resposta entre as coisas guardadas na memória, apelo para alguém, a fim de obter a informação, ou procuro-a num livro. Também aqui, durante esse longo intervalo, o “mecanismo de pensamento” está em função. Essas três fases nos são bem familiares.

Pois bem; há uma quarta fase que talvez desconheçais ou nunca tenhais encadeado às outras, e que é a seguinte: Vós me fazeis uma pergunta, e eu realmente não sei a resposta. Minha memória não tem registro dela, e eu não estou contando que outra pessoa me dê a resposta. Não tenho resposta nenhuma, e nenhuma expectativa. Com efeito, eu não sei. Não há intervalo de tempo e, por conseguinte, não há pensamento, porque a mente não está à procura de nada, nem esperando nada. Este estado é, com efeito, uma negação completa, um estado livre de todas as coisas que a mente tem conhecido. E só então o novo pode ser compreendido — sendo o novo o Supremo, ou outra qualquer palavra que preferirdes. Nesse estado, cessou todo o mecanismo do pensamento; não há observador nem coisa observada, não há experimentador nem coisa experimentada. Toda experiência cessou, e nesse silêncio total há completa mutação.

Krishnamurti, Saanen, 19 de julho de 1964,
A mente sem medo

terça-feira, 10 de abril de 2018

Como pode uma pessoa saber se mudou?


Como pode uma pessoa saber se mudou?

PERGUNTA: Como pode uma pessoa saber se mudou?

KRISHNAMURTI: Esse cavalheiro pergunta: Como pode uma pessoa saber se mudou? Ainda que se trate de uma mudança salutar produzida pelos fatos externos — não é ela desejável? Como se sabe de qualquer coisa? “Como sabe um indivíduo que mudou?” é uma pergunta importante — assim o diz o referido cavalheiro. Vamos examiná-la. Como se sabe disso? Sabe-se, quer por experiência direta, quer por intermédio de outrem. Só há duas possibilidades de sabê-lo: ou alguém vo-lo diz, ou vós mesmo experimentais o fato.

Ora, pode a experiência servir-nos de critério, fazer-nos saber? Vossa experiência vos dirá o que é verdadeiro? Vossa experiência é a reação a um desafio, e essa experiência está condicionada ao vosso fundo. Por certo, “respondeis” a cada desafio em conformidade com vosso fundo; e o vosso fundo resulta de inumeráveis influências, de milênios de propaganda; essa propaganda pode ser boa ou pode ser má. Esse fundo provém de vosso condicionamento, esse fundo é vosso condicionamento; e, de acordo com esse condicionamento, “respondeis” a cada desafio, por mais insignificante que seja. É esse o critério do que é bom e do que é mau? Ou o que é bom, realmente salutar, se encontra fora do condicionamento? Entendeis? Este país começa agora a cultuar bandeiras, a adquirir consciência nacional; essa a nova espécie de condicionamento que se está verificando aqui. O nacionalismo, evidentemente, é um veneno, porque irá separar o homem do homem. Em nome da bandeira iremos destruir vidas humanas, não só neste país, mas também noutros países. Pensamos que ele (o nacionalismo) será o “toque de reunir”, o fator que unirá os homens; esta é a mais recente influência, a mais nova forma de pressão, a mais nova propaganda. Ora, se não a contestamos, se aceitamos passivamente a influência da imprensa ou dos líderes políticos, como giremos descobrir se ela é justa, se verdadeira ou falsa, nobre ou ignóbil? Não há influência que seja boa; e toda influência pode ser má. Por conseguinte, vossa mente precisa ser cortante como uma navalha, para penetrar, descobrir, e conservar-se sã num mundo onde se rende culto às coisas falsas.

Eis por que deveis investigar o vosso próprio condicionamento; e essa investigação é o começo do autoconhecimento.

PERGUNTA: Podemos conservar a mente livre quando estamos em contato com a natureza?

KRISHNAMURTI: Pergunta esse cavalheiro: É possível uma pessoa ser livre ao achar-se em contato com a natureza? Não compreendo bem esta pergunta. Talvez ele queira dizer que estamos sendo constantemente estimulados pelos fatos externos, por nossos sentidos e que cada estímulo deixa marca na mente, na forma de lembrança; e como pode uma pessoa ficar livre dessa lembrança? Isto é — deixai-me esclarecer a pergunta para mim mesmo — como pode um ente humano que a todas as horas está recebendo “desafios”, na forma de estímulos, e reagindo a esses desafios, consciente ou inconscientemente, com seu próprio fundo, com sua memória — como pode a mente, em tais condições, ser livre? Tem ela possibilidade de ser livre?

Ora, posso formular a pergunta de outra maneira? Não vou fugir à pergunta, mas, sim, apenas formulá-la diferentemente. Toda experiência deixa marca na mente, na forma de lembrança; qualquer experiência, consciente ou inconsciente, deixa um “arranhão”, que chamamos lembrança, memória; e, enquanto essa memória funciona, pode a mente ser livre?

Que necessidade há de memória? Preciso dela para saber onde moro; do contrário não poderia regressar a casa. É também necessário para a construção de uma casa, para se andar de bicicleta, acionar um motor. Dessa forma, a memória é essencial em relação às coisas mecânicas; e é por isso que críamos hábitos; uma vez formado um hábito, funciono sem pensar, maquinalmente. Assim sendo, nossa vida se torna gradualmente mecânica, mercê do hábito, da memória, das chamadas experiências, que deixam marcas. Distingamos, pois, entre a necessidade da memória mecânica e a daquela memória prejudicial à compreensão. Eu preciso saber escrever— essa memória é boa. O inglês que estou falando resulta da memória, e é indispensável para que eu possa comunicar-me convosco; o conhecimento técnico que adquiri, o saber fazer as coisas, é-me necessário para dirigir um escritório, trabalhar numa fábrica, etc. Mas, quando a sociedade, por meio da cultura, da tradição, impõe à mente uma certa crença e de acordo com ela eu fico funcionando mecanicamente, essa crença e minha consequente atuação mecânica não prejudicam a mente e, por conseguinte, não constituem uma negação da liberdade? Vós sois hinduístas. Há séculos que vos dizem isso; fostes educados desde pequenos para crerdes em certas coisas, e isso se vos tornou automático, mecânico; credes em Deus incondicionalmente; isso é mecânico. Não deveis negar tudo isso para poderdes descobrir? Se observardes bem, podereis negá-lo, apagar de todo essa lembrança de serdes hinduísta.

Há, pois, liberdade no ver as coisas que vos foram impostas ao pensamento — como conceito, como ideia, como crença, como dogma — no negá-las e no examinar todo o processo da negação, o porquê da negação. Daí resulta, então, liberdade, embora continueis a funcionar mecanicamente nos incidentes da vida cotidiana.

Dizem que o homem é mero resultado do ambiente — e com efeito o é. De nada serve alegardes que não o sois, dizerdes que sois Paramatman, pois isso é uma espécie de propaganda que aceitastes passivamente, coisa que vos foi inculcada. Portanto, sois efetivamente resultado do ambiente — do clima, da alimentação, dos jornais, das revistas, da mãe, da avó, da religião, da sociedade, dos valores sociais e morais. Vós sois isso, e nenhum bem vos faz o negardes, dizendo que sois Deus; isso, também, é pura propaganda. Precisamos admitir esse fato, percebê-lo, e libertar-nos dele. Podemos libertar-nos dele? Verbal ou teoricamente, não é possível. Mas, se o examinardes concretamente, passo por passo e negardes de todo que sois hinduísta, ou hindu, ou cristão, ou seja o que for (e isso significa investigar toda a questão do medo, que não vamos examinar agora, porquanto envolve muita coisa), podereis então descobrir se podemos ser livres ou não; mas é de todo inútil o mero especular sobre a liberdade.

PERGUNTA O pensamento não funciona na forma de símbolos?

KRISHNAMURTI: Diz essa senhora que o pensamento funciona na forma de símbolos, que o pensamento é palavra; e é possível eliminar os símbolos e a palavra e, por conseguinte, tornar existente um pensamento novo? Símbolos e palavras vêm-nos sendo impostos há séculos e séculos. Ora, é possível estarmos apercebidos dos símbolos e da respectiva fonte, e passarmos além deles?

Em primeiro lugar, temos de investigar não apenas a mente consciente, mas também a inconsciente. Do contrário, estaremos apenas lidando com palavras — quer dizer, com meros símbolos e não com a realidade. Só há consciência. Dividimos a consciência em “consciente” e “inconsciente” por conveniência, mas, realmente, não há tal divisão. Dividimo-la por comodidade; não há essa divisão de mente consciente e mente inconsciente. A mente consciente é a mente educada, que aprendeu uma nova língua, uma nova técnica, para trabalhar num escritório, acionar um motor; ela foi educada para viver neste mundo. O inconsciente, que compreende as camadas mais profundas dessa mesma mente, é o resultado de séculos de herança racial, de temores raciais, do resíduo da experiência humana — tanto coletiva como individual — das coisas ouvidas na infância, das histórias que a bisavó contava, das influências recolhidas da leitura dos jornais — coisas de que não estamos claramente conscientes. Assim, as influências, o passado, quer imediato, quer de há dez mil anos, tudo isso está enraizado no inconsciente. Não precisais de concordar comigo; trata-se de um fato psicológico e não de uma invenção minha, com a qual podeis concordar ou não concordar. Eis a realidade. Assim é, mas precisais examinar-vos, em vez de lerdes livros, para dizerdes que assim é. Se penetrardes em vós mesmos mui profundamente, não deixareis de encontrar-vos com esse fato. Se meramente ledes livros e chegais a uma conclusão, trata-se então de uma questão de concordar ou discordar — e isso nenhuma importância tem.

Todo o pensar é simbólico. Todo pensar resulta de vossa memória, é reação a vossa memória; essa memória é bem profunda, e ela “responde” por meio de palavras, de símbolos. E essa senhora pergunta: É possível ficar-se livre desses símbolos? É possível o cristão ficar livre do símbolo de Jesus e da Cruz? É possível o hinduísta ficar livre da ideia de Krishna, do Gita, etc.? A referida senhora pergunta também: Como apareceram esses símbolos? Como sabeis, é muito mais fácil nos deixarmos arrebatar pelo símbolo do que pela realidade. O símbolo é instrumento de propaganda, nas mãos do propagandista. O símbolo é a bandeira — e podeis apaixonar-vos terrivelmente por causa da bandeira. Pois bem, o símbolo da Cruz, o símbolo de Krishna, etc., — como surgem eles? Eles surgem, evidentemente, a fim de obrigar o homem a comportar-se dentro de um certo padrão, a submeter-se, por medo, à autoridade — porque este mundo está a deteriorar-se, é um mundo em desordem, um mundo confuso; e a Cruz e Krishna são símbolos graças aos quais podemos fugir a ele. A autoridade diz: “Recorrei a isto, e sereis feliz; cultivai aquilo e vos tornareis nobre”, e outras coisas que tais. Assim, por causa do medo, do desejo de estarmos em segurança, psicologicamente, interiormente, surgem os símbolos.

A mente que interiormente, profundamente, é sem temor, nenhum símbolo tem. Porque deveria ter qualquer símbolo que fosse? Quando a mente já não busca segurança de espécie alguma, que necessidade tem de símbolos para funcionar? Ela se; acha em presença do fato, e não de uma ideia a respeito do fato, ideia que se torna um símbolo. Dessa forma, psicologicamente, interiormente, para a maioria de nós, os símbolos assumem desmedida importância. E essa senhora pergunta: É possível estarmos apercebidos, não só dos símbolos e de sua fonte, mas também do medo? Eu poderia responder “Sim”, mas isso nenhum valor teria, porquanto seria apenas a minha palavra contra a palavra de outrem. Mas, se puderdes penetrar fundamente em vós mesma, se puderdes pensar e estar apercebida de todo o mecanismo de pensamento — porque pensais, como pensais, e se há possibilidade de transcender a imagem — e investigardes bem isso, tratar-se-á, então, de uma experiência direta, vossa. E só a mente que conhece a fonte do símbolo e da palavra, só essa mente pode ser livre.

PERGUNTA: Pode a mente ser livre e ao mesmo tempo ter fé?

KRISHANAMURTI: Pergunta esse senhor: Pode a mente livre ter fé? Claro que não. Fé em que? Porque deve ter fé num fato? Vejo um fato — vejo que sou ciumento; porque devo ter fé e dizer que um dia não serei mais ciumento? Estou em presença do fato, e o fato é que sou ciumento; e eu vou eliminá-lo. Descobrir como fazê-lo — isso é mais importante para mim do que ter fé em que não serei ciumento, fé na ideia.

Assim, a mente que está investigando o que é a liberdade trata de destruir tudo para descobrir. Essa mente, por conseguinte, é uma mente em extremo perigosa. Por conseguinte, a sociedade é sua inimiga.

PERGUNTA: Como fazer a mente parar de condicionar-se?

KRISHNAMURTI: Pergunta esse cavalheiro: Qual a ação concreta que deterá o condicionamento? Qual a ação positiva que fará a mente parar de condicionar-se?

Ela só pode ser detida ao estarmos apercebidos do mecanismo condicionante. Quando ledes o jornal — como o fazeis todos os dias — no qual só se fala em política, o que ledes, obviamente, se imprime na vossa mente. Mas, ler o jornal sem se deixar influenciar, ver o mundo tal como é e não sofrer sua influência, isso exige uma mente vigilante, penetrante, capaz de raciocinar de modo são, racional, lógico; numa palavra, uma mente bem sensível.

Agora, a questão é: como criar uma mente sensível? Senhores, não há nenhum “como”, nenhum método; se algum método houvesse, o mesmo efeito se conseguiria tomando um sedativo, um comprimido para acalmar a vossa agitação, fazer-vos dormir. Quando estais apercebido de todos os problemas (e isso significa conhecê-los, observá-los, senti-los, não verbalmente, porém realmente — conhecê-los assim como conheceis vossa fome, vossos apetites sexuais), esse próprio conhecimento, esse próprio contato com o fato torna a mente sensível. O saberdes que não tendes coragem — não que deveis desenvolver a coragem — saberdes que não sois independente, que sois incapaz de sustentar o que pensais — conhecerdes o fato de que careceis de capacidade — tudo isso vos dará capacidade, e não há necessidade de a procurardes.

Krishnamurti, Varanasi, 01 de janeiro de 1961, A mutação Interior

segunda-feira, 9 de abril de 2018

Compreendendo o mecanismo da mudança

Compreendendo o mecanismo da mudança

Em nossa última reunião dissemos que seriedade é aquele impulso, aquela intenção de “ir até o fim das coisas”, para descobrir-lhes a essência; e se não existe essa energia impulsora que nos estimula a descobrir o que é verdadeiro, acho que estas palestras terão muito pouca significação. É pena termos de falar em tão linda manhã, mas desejo examinar a questão da humildade e do aprender.

Por humildade, não entendo naturalmente aquela pretensiosa vaidade que se cobre com o nome de “humildade”. A humildade não é virtude; porque tudo o que cultivamos, extraímos penosamente de nós mesmos, disciplinamos, controlamos, é coisa falsa. A humildade não é coisa que se semeia para colher; ela tem de surgir na existência. E não é a subjugação daquele desejo que busca seu preenchimento no êxito. Não é tampouco a humildade religiosa do monge, do santo, do sacerdote, nem aquela que se produz pela austeridade cultivada. É coisa inteiramente diferente. Para a experimentarmos realmente, penso que temos de “ir até o fim”, de modo que todos os recantos da mente, todos os recessos obscuros, secretos, ocultos, do coração e da mente, fiquem abertos a essa humildade, dela se embebam. E se desejamos desvelar a verdadeira essência da humildade, importa considerar o que é aprender.

Aprendemos, de fato, alguma vez? Não é mecânica a nossa instrução? Aprender, para nós, é um mecanismo de adição, não achais? Esse mecanismo de adição constitui um centro, o “eu”, e este centro experimenta; e a experiência se torna memória — é memória; e a memória dá colorido a todas as experiências ulteriores. Ora, aprender é mecanismo de acumulação, como o é o conhecimento? E se há mecanismo de acumulação de experiência, conhecimento, ser e “vir a ser”, existe então humildade? Se a mente está repleta de conhecimentos, de experiência, de memória, ela de modo nenhum pode receber o novo. Não é, portanto, necessário o total esvaziamento da mente, para que possa surgir o atemporal? E não implica isso total e completo sentimento de humildade, um estado em que a mente não se esteja “tornando alguma coisa”, não esteja acumulando, já não esteja buscando ou aprendendo?

Eu quisera saber se temos aprendido alguma coisa. Nós temos acumulado; temos tido numerosas experiências, numerosos acidentes ocorreram, deixando-nos suas marcas e ficando armazenados como lembranças. Posso aprender uma nova língua, aprender uma nova maneira de explorar os espaços; mas tudo isso são mecanismos acumulativos, mecânicos, a que chamamos “aprender”. Ora, esse “mecanismo” de aprender deixa um centro, não é verdade? E esse centro acumulador de conhecimentos, experiências, resiste, deseja ser livre, afirma, aceita e rejeita, está sempre empenhado numa batalha, sempre em conflito. E é esse centro que está sempre a acumular e a esvaziar-se; há o movimento positivo de aquisição e o movimento negativo de rejeição. A esse mecanismo chamamos “aprender”.

Se me perdoais dizê-lo, estou bem certo de que desejais aprender algo deste que vos fala. Mas nada podeis aprender de mim, porquanto só podeis aprender coisas mecânicas, como ideias. Mas nós não estamos tratando de ideias; não estamos interessados na descrição de qualquer outra coisa; o que nos interessa é o fato, “o que é”. E compreender “o que é” não constitui processo mecânico, nem mecanismo de olhar as coisas com o fim de acumular, nem mecanismo de acrescentar ou tirar algo ao centro. É partindo desse centro, acumulado através de séculos, condicionado pela sociedade, pela religião, pelas experiências, pela educação, que estamos sempre procurando fazer modificações. Funcionando nesse centro, procuramos alterar nossas qualidades, modificar nossa maneira de pensar, implantar novo sistema de ideias e abandonar o velho. Esse centro, pois, está sempre procurando reformar-se ou destruir-se, a fim de obter outra coisa; e é isso o que estamos fazendo continuamente.

Tende a bondade de prestar atenção: Esse centro é o que chamamos “ego”, “eu” — ou qualquer nome que preferirdes. O nome é sem importância, mas o fato é importante, pois é “o que é”. E no mecanismo de modificação há violência. Toda alteração implica violência, e pela violência nada de novo pode surgir. Quando uma pessoa diz: “Preciso controlar-me, preciso dominar-me” (o que significa ajustar-se a um padrão), isso implica violência. Os santos, os líderes, os instrutores, os profetas — todos falam a respeito de mudança e controle. E, evidentemente, o mecanismo pelo qual o centro se disciplina para ajustar-se a um padrão, implica violência. E quando falamos de “não violência”, isso significa a mesma coisa.

Mudança, portanto, implica violência, dentro da esfera do tempo — “eu sou isto e vou obrigar-me a ser aquilo”. O “aquilo” está distanciado de nós: é o ideal, o exemplo, a norma. Nesse processo de tentar transformar a violência em paz, está, inteiramente, o conflito dos opostos. Assim, quando dizemos: “Preciso aprender tudo o que me diz respeito”, estamos ainda enredados no mecanismo de acumulação, o qual só serve para fortalecer o centro. Pode-se, pois, ver, não apenas verbalmente, intelectualmente, mas experimentar realmente o fato de que onde existe um centro a exigir mudança (e isso implica violência) nunca haverá paz.

Para mim, portanto, não há aprender; só há ver. Ver não produz acumulação; não é mecanismo de recolher ou rejeitar. Ver “o que é” tem efeito destruidor; e da destruição surge a paz, e não a violência. Existe violência, revolução ou modificação, no mecanismo de acumulação, da manutenção do centro. Mas, quando percebemos esse mecanismo total e completamente, com todo o nosso ser, então o fato — o que é — é radicalmente destrutivo; e destruição é criação.

A humildade, por conseguinte, é o estado em que a mente abandonou de todo o mecanismo de acumulação e o seu oposto, e está apercebida, de momento a momento, do que é. Portanto, ela não tem opinião nem juízo formado; e essa mente sabe o que é liberdade. A mente senhoreada pela violência não tem liberdade; e a mente que busca a liberdade nunca será livre, porque, para ela, liberdade significa mais acumulação.

A humildade implica destruição total, não das coisas externas, sociais, mas a dissolução completa do centro, do “eu”, de nossas ideias, experiências, conhecimentos, tradições — com o que a mente se esvazia de tudo o que já conhece. Por conseguinte, essa mente já não pensa em termos de modificação. Isso é realmente uma coisa maravilhosa, quando se é capaz de senti-la. E isso faz parte da meditação.

Assim, em primeiro lugar, temos de compreender perfeitamente o mecanismo de mudança; porque é isso o que em geral desejamos — mudar. O mundo se está transformando muito rapidamente, nas coisas exteriores. Pretendemos ir à lua, inventar foguetes, etc.; os valores se estão alterando; a “Coca-Cola” conquistou todo o mundo; as velhas civilizações estão desabando. A rapidez da mudança é maior do que o fato da mudança. Todos os velhos deuses, tradições, salvadores, Mestres, estão-se indo, ou já se foram. Uns poucos ainda se aferram a eles, erguendo muros defensivos ao redor de si mesmos — mas tudo se vai. E a mente não se interessa pela destruição, não se interessa pela criação; só lhe interessa defender-se, buscar sempre outros abrigos, um novo refúgio.

Assim, se aprofundardes seriamente a questão da humildade, não deixareis de pôr em dúvida todo esse mecanismo de aprender — o aprender no nível verbal, que nos veda a percepção das coisas como são. A mente que já não se preocupa com mudança nada teme e, portanto, é livre. E, a meu ver, a mente que compreendeu essa coisa — essa mente, decerto, é essencial; porque com essa compreensão a mente já não luta para ajustar-se a outro padrão, já não se abre a novas experiências, nada mais pede nem exige — porque é livre. E, então, talvez possa surgir aquilo que não tem nome. A humildade, portanto, é essencial, mas não a humildade artificial, cultivada. Devemos estar desprovidos de capacidades, de dons; devemos, interiormente, ser o mesmo que nada. E, parece-me, se se percebe isso, sem se tentar aprender como ser “o mesmo que nada” — pois isso é muito estulto e absurdo — parece-me que, então, ver é experimentar; e, assim, talvez possa manifestar-se “a outra coisa”.[...]

Krishnamurti, Saanen, 01 de agosto de 1961, O Passo Decisivo

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Diálogos sobre mudanças

O que designamos por mudança? Será que a mudança é a mera transferência do que acumulei para outros campos do conhecimento, para novos pressupostos e ideologias, projetados a partir do passado? É isso que costumamos chamar de mudança, não é mesmo? Quando digo que preciso mudar, penso em mudar para alguma coisa que já conheço. Quando digo que preciso ser bom, já tenho uma idéia, uma formulação, um conceito do que é ser bom. Mas isso não é o florescer da bondade. O florescer da bondade só surge quando compreendo o processo e o acúmulo do conhecimento e quando desfaço o que sei. Então há possibilidade de uma revolução, de uma mudança radical.

Mas o simples passar do conhecido para o conhecido não é mudança nenhuma.

Espero estar sendo claro, porque vocês e eu precisamos mudar radicalmente, de uma maneira espantosa, revolucionária. É um fato óbvio que não podemos continuar como estamos. As coisas alarmantes que estão acontecendo no mundo exigem que todos esses problemas sejam abordados a partir de uma perspectiva totalmente diferente, com uma mente e um coração totalmente novos. Eis por que tenho de compreender como fazer em mim essa mudança radical. E vejo que só posso mudar desfazendo tudo o que já conheço. O desembaraçar a mente do conhecimento constitui em si uma mudança radical, porque assim a mente fica humilde, e essa mesma humildade faz surgir uma ação totalmente nova. Enquanto a mente estiver adquirindo, comparando, pensando em termos do “mais”, ela será incapaz de uma ação nova. E será que eu, invejoso, ambicioso, posso mudar completamente, de modo que a mente pare de adquirir, de comparar, de competir? Em outras palavras, será que a mente pode esvaziar-se a si mesma e, nesse mesmo processo de auto-esvaziamento, descobrir a ação nova?

Ou seja, será possível efetuar uma mudança fundamental que não seja o resultado de um ato de vontade, que não seja o mero resultado da influência, da pressão? A mudança fundada na influência, na ação, no ato de vontade, não é mudança nenhuma. Isso é evidente se vocês penetrarem na questão. E se sinto necessidade de uma mudança completa, radical, em mim mesmo, tenho de examinar o processo do conhecimento, que forma o centro a partir do qual acontece toda experiência. Há em cada um de nós um centro que é o resultado da experiência, do conhecimento, da memória; e nós agimos e “mudamos” de acordo com esse centro. O próprio ato de desfazer esse centro, a própria dissolução desse “eu”, desse processo de acúmulo, gera uma mudança radical. Isso, todavia, exige o esforço do autoconhecimento.

Tenho de conhecer a mim mesmo tal como sou, e não como acho que devo ser. Tenho de me conhecer como o centro a partir do qual estou agindo, a partir do qual estou pensando, o centro formado pelo conhecimento acumulado, por pressupostos, pela experiência passada, que são coisas que impedem uma revolução interior, uma radical transformação de mim mesmo. E como temos um tão grande número de complexidades no mundo atual, com tantas mudanças superficiais acontecendo, é necessário que haja essa mudança radical no individuo, porque só o indivíduo, e não o coletivo, pode criar um novo mundo.

Em vista de tudo isso, será possível que você e eu, como dois indivíduos, nos modifiquemos, não de modo superficial, mas radicalmente, de forma que haja a dissolução do centro de que emana toda vaidade, todo o sentido de autoridade, esse centro que acumula ativamente, centro feito de conhecimento, de experiência, de memória?

Trata-se de uma pergunta a que não se pode dar uma resposta verbal. Faço-a somente para despertar o pensamento de vocês, sua capacidade inquisitiva, a fim de que vocês iniciem a caminhada sozinhos Porque vocês não podem fazer essa caminhada com a ajuda de outra pessoa; vocês não podem ter um guru que lhes diga o que fazer, o que procurar. Se alguém lhes disse isso, vocês já não estarão nessa caminhada. Mas será que vocês não podem começar essa caminhada sozinhos, sem o acúmulo do conhecimento, que impede o progresso nesse exame? Para examinar, a mente precisa estar livre do conhecimento. Quando há alguma pressão por trás desse exame, ele não é mais reto, mas torto e é por esse motivo que é essencial ter uma mente realmente humilde uma mente que diga “não sei; vou procurar saber”. E que nunca acumule no processo de exame das coisas. No momento em que acumulam, vocês passam a ter um centro, e esse centro sempre irá influenciar o exame. E então? Será que a mente é capaz de examinar sem acumular, sem assimilar coisas, sem enfatizar o centro através da autoridade do conhecimento? E, se for capaz, qual o estado dessa mente? Qual o estado da mente realmente inquisitiva? Sem duvida é o estado do vazio.

Não sei se vocês já tiveram a sensação do que é estar completa mente só, sem nenhuma pressão, sem motivação nem influência, sem a idéia do passado nem do futuro. Estar completamente só é totalmente diferente da solidão. Há solidão quando o centro de acumulação se sente isolado em suas relações com o outro. Eu não estou falando dessa sensação de solidão. Falo do estar só, em que a mente não se acha contaminada porque já compreendeu o processo de contaminação, que é o acúmulo. E quando a mente estiver totalmente só — porque, mediante o autoconhecimento, ela compreendeu o centro de acumulação —, vocês vão perceber que, estando vazia, livre de influências, a mente é capaz de uma ação não vinculada com a ambição, com a inveja nem com nenhum dos conflitos que conhecemos. Por ser indiferente, no sentido de não estar procurando um resultado, essa mente pode viver com compaixão. Mas esse estado mental não pode ser adquirido nem desenvolvido. Ele surge por meio do autoconhecimento, por meio do conhecimento de si mesmo — não de algum eu enorme, maior, mas de pequeno eu, que é invejoso, ambicioso, teimoso, raivoso, maldoso. O necessário é conhecer o todo dessa mente que é o seu pequenino eu. Para ir muito longe, você tem de começar de muito perto, e o perto é você mesmo, é o “eu” que você precisa compreender. E quando vocês começarem a compreender, vão perceber que o conhecimento se dissolve, o que deixa a mente totalmente alerta, atenta, vazia, sem esse centro. E só uma mente assim é capaz de perceber o que é a verdade.

Krishnamurti
Do livro: Sobre Aprendizagem e o Conhecimento - Páginas 18 à 21 – Ed. Cultrix
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"Quando você compreende, quando chega a saber,
então traz toda a beleza do passado de volta
e dá a esse passado o renascimento, renova-o,
de forma que todos os que o conheceram
possam estar de novo sobre a terra
e viajar por aqui, e ajudar as pessoas." (Tilopa)



"Nos momentos tranqüilos da meditação, a vontade de DEUS pode tornar-se evidente para nós. Acalmar a mente, através da meditação, traz uma paz interior que nos põe em contato com DEUS dentro de nós. Uma premissa básica da meditação, é que é difícil, senão impossível, alcançar um contato consciente, à não ser que a mente esteja sossegada. Para que haja um progresso, a comum sucessão ininterrupta de pensamentos tem de parar. Por isso, a nossa prática preliminar será sossegar a mente e deixar os pensamentos que brotam morrerem de morte natural. Deixamos nossos pensamentos para trás, à medida que a meditação do Décimo Primeiro Passo se torna uma realidade para nós. O equilíbrio emocional é um dos primeiros resultados da meditação, e a nossa experiência confirma isso." (11º Passo de NA)


"O Eu Superior pode usar algum evento, alguma pessoa ou algum livro como seu mensageiro. Pode fazer qualquer circunstância nova agir da mesma forma, mas o indivíduo deve ter a capacidade de reconhecer o que está acontecendo e ter a disposição para receber a mensagem". (Paul Brunton)



Observe Krishnamurti, em conversa com David Bohn, apontando para um "processo", um "caminho de transformação", descrevendo suas etapas até o estado de prontificação e a necessária base emocional para a manifestação da Visão Intuitiva, ou como dizemos no paradigma, a Retomada da Perene Consciência Amorosa Integrativa...


Krishnamurti: Estávamos discutindo o que significa para o cérebro não ter movimento. Quando um ser humano ESTEVE SEGUINDO O CAMINHO DA TRANSFORMAÇÃO, e PASSOU por TUDO isso, e esse SENTIDO DE VAZIO, SILÊNCIO E ENERGIA, ele ABANDONOU QUASE TUDO e CHEGOU AO PONTO, à BASE. Como, então, essa VISÃO INTUITIVA afeta a sua vida diária? Qual é o seu relacionamento com a sociedade? Como ele age em relação à guerra, e ao mundo todo — um mundo em que está realmente vivendo e lutando na escuridão? Qual a sua ação? Eu diria, como concordamos no outro dia, que ele é o não-movimento.

David Bohn: Sim, dissemos que a base era movimento SEM DIVISÃO.

K: Sem divisão. Sim, correto. (Capítulo 8 do livro, A ELIMINAÇÃO DO TEMPO PSICOLÓGICO)


A IMPORTÂNCIA DA RENDIÇÃO DIANTE DA MENTE ADQUIRIDA
Até praticar a rendição, a dimensão espiritual de você é algo sobre o que você lê, de que fala, com que fica entusiasmado, tema para escrita de livros, motivo de pensamento, algo em que acredita... ou não, seja qual for o caso. Não faz diferença. Só quando você se render é que a dimensão espiritual se tornará uma realidade viva na sua vida. Quando o fizer, a energia que você emana e que então governa a sua vida é de uma frequência vibratória muito superior à da energia mental que ainda comanda o nosso mundo. Através da rendição, a energia espiritual entra neste mundo. Não gera sofrimento para você, para os outros seres humanos, nem para qualquer forma de vida no planeta. (Eckhart Tolle em , A Prática do Poder do Agora, pág. 118)


O IMPOPULAR DRAMA OUTSIDER — O encontro direto com a Verdade absoluta parece, então, impossível para uma consciência humana comum, não mística. Não podemos conhecer a realidade ou mesmo provar a existência do mais simples objeto, embora isto seja uma limitação que poucas pessoas compreendem realmente e que muitas até negariam. Mas há entre os seres humanos um tipo de personalidade que, esta sim, compreende essa limitação e que não consegue se contentar com as falsas realidades que nutrem o universo das pessoas comuns. Parece que essas pessoas sentem a necessidade de forjar por si mesmas uma imagem de "alguma coisa" ou do "nada" que se encontra no outro lado de suas linhas telegráficas: uma certa "concepção do ser" e uma certa teoria do "conhecimento". Elas são ATORMENTADAS pelo Incognoscível, queimam de desejo de conhecer o princípio primeiro, almejam agarrar aquilo que se esconde atrás do sombrio espetáculo das coisas. Quando alguém possui esse temperamento, é ávido de conhecer a realidade e deve satisfazer essa fome da melhor forma possível, enganando-a, sem contudo jamais poder saciá-la. — Evelyn Underhill