Compreendendo o mecanismo da mudança
Em nossa última reunião dissemos que seriedade é aquele impulso, aquela intenção de “ir até o fim das coisas”, para descobrir-lhes a essência; e se não existe essa energia impulsora que nos estimula a descobrir o que é verdadeiro, acho que estas palestras terão muito pouca significação. É pena termos de falar em tão linda manhã, mas desejo examinar a questão da humildade e do aprender.
Por humildade, não entendo naturalmente aquela pretensiosa vaidade que se cobre com o nome de “humildade”. A humildade não é virtude; porque tudo o que cultivamos, extraímos penosamente de nós mesmos, disciplinamos, controlamos, é coisa falsa. A humildade não é coisa que se semeia para colher; ela tem de surgir na existência. E não é a subjugação daquele desejo que busca seu preenchimento no êxito. Não é tampouco a humildade religiosa do monge, do santo, do sacerdote, nem aquela que se produz pela austeridade cultivada. É coisa inteiramente diferente. Para a experimentarmos realmente, penso que temos de “ir até o fim”, de modo que todos os recantos da mente, todos os recessos obscuros, secretos, ocultos, do coração e da mente, fiquem abertos a essa humildade, dela se embebam. E se desejamos desvelar a verdadeira essência da humildade, importa considerar o que é aprender.
Aprendemos, de fato, alguma vez? Não é mecânica a nossa instrução? Aprender, para nós, é um mecanismo de adição, não achais? Esse mecanismo de adição constitui um centro, o “eu”, e este centro experimenta; e a experiência se torna memória — é memória; e a memória dá colorido a todas as experiências ulteriores. Ora, aprender é mecanismo de acumulação, como o é o conhecimento? E se há mecanismo de acumulação de experiência, conhecimento, ser e “vir a ser”, existe então humildade? Se a mente está repleta de conhecimentos, de experiência, de memória, ela de modo nenhum pode receber o novo. Não é, portanto, necessário o total esvaziamento da mente, para que possa surgir o atemporal? E não implica isso total e completo sentimento de humildade, um estado em que a mente não se esteja “tornando alguma coisa”, não esteja acumulando, já não esteja buscando ou aprendendo?
Eu quisera saber se temos aprendido alguma coisa. Nós temos acumulado; temos tido numerosas experiências, numerosos acidentes ocorreram, deixando-nos suas marcas e ficando armazenados como lembranças. Posso aprender uma nova língua, aprender uma nova maneira de explorar os espaços; mas tudo isso são mecanismos acumulativos, mecânicos, a que chamamos “aprender”. Ora, esse “mecanismo” de aprender deixa um centro, não é verdade? E esse centro acumulador de conhecimentos, experiências, resiste, deseja ser livre, afirma, aceita e rejeita, está sempre empenhado numa batalha, sempre em conflito. E é esse centro que está sempre a acumular e a esvaziar-se; há o movimento positivo de aquisição e o movimento negativo de rejeição. A esse mecanismo chamamos “aprender”.
Se me perdoais dizê-lo, estou bem certo de que desejais aprender algo deste que vos fala. Mas nada podeis aprender de mim, porquanto só podeis aprender coisas mecânicas, como ideias. Mas nós não estamos tratando de ideias; não estamos interessados na descrição de qualquer outra coisa; o que nos interessa é o fato, “o que é”. E compreender “o que é” não constitui processo mecânico, nem mecanismo de olhar as coisas com o fim de acumular, nem mecanismo de acrescentar ou tirar algo ao centro. É partindo desse centro, acumulado através de séculos, condicionado pela sociedade, pela religião, pelas experiências, pela educação, que estamos sempre procurando fazer modificações. Funcionando nesse centro, procuramos alterar nossas qualidades, modificar nossa maneira de pensar, implantar novo sistema de ideias e abandonar o velho. Esse centro, pois, está sempre procurando reformar-se ou destruir-se, a fim de obter outra coisa; e é isso o que estamos fazendo continuamente.
Tende a bondade de prestar atenção: Esse centro é o que chamamos “ego”, “eu” — ou qualquer nome que preferirdes. O nome é sem importância, mas o fato é importante, pois é “o que é”. E no mecanismo de modificação há violência. Toda alteração implica violência, e pela violência nada de novo pode surgir. Quando uma pessoa diz: “Preciso controlar-me, preciso dominar-me” (o que significa ajustar-se a um padrão), isso implica violência. Os santos, os líderes, os instrutores, os profetas — todos falam a respeito de mudança e controle. E, evidentemente, o mecanismo pelo qual o centro se disciplina para ajustar-se a um padrão, implica violência. E quando falamos de “não violência”, isso significa a mesma coisa.
Mudança, portanto, implica violência, dentro da esfera do tempo — “eu sou isto e vou obrigar-me a ser aquilo”. O “aquilo” está distanciado de nós: é o ideal, o exemplo, a norma. Nesse processo de tentar transformar a violência em paz, está, inteiramente, o conflito dos opostos. Assim, quando dizemos: “Preciso aprender tudo o que me diz respeito”, estamos ainda enredados no mecanismo de acumulação, o qual só serve para fortalecer o centro. Pode-se, pois, ver, não apenas verbalmente, intelectualmente, mas experimentar realmente o fato de que onde existe um centro a exigir mudança (e isso implica violência) nunca haverá paz.
Para mim, portanto, não há aprender; só há ver. Ver não produz acumulação; não é mecanismo de recolher ou rejeitar. Ver “o que é” tem efeito destruidor; e da destruição surge a paz, e não a violência. Existe violência, revolução ou modificação, no mecanismo de acumulação, da manutenção do centro. Mas, quando percebemos esse mecanismo total e completamente, com todo o nosso ser, então o fato — o que é — é radicalmente destrutivo; e destruição é criação.
A humildade, por conseguinte, é o estado em que a mente abandonou de todo o mecanismo de acumulação e o seu oposto, e está apercebida, de momento a momento, do que é. Portanto, ela não tem opinião nem juízo formado; e essa mente sabe o que é liberdade. A mente senhoreada pela violência não tem liberdade; e a mente que busca a liberdade nunca será livre, porque, para ela, liberdade significa mais acumulação.
A humildade implica destruição total, não das coisas externas, sociais, mas a dissolução completa do centro, do “eu”, de nossas ideias, experiências, conhecimentos, tradições — com o que a mente se esvazia de tudo o que já conhece. Por conseguinte, essa mente já não pensa em termos de modificação. Isso é realmente uma coisa maravilhosa, quando se é capaz de senti-la. E isso faz parte da meditação.
Assim, em primeiro lugar, temos de compreender perfeitamente o mecanismo de mudança; porque é isso o que em geral desejamos — mudar. O mundo se está transformando muito rapidamente, nas coisas exteriores. Pretendemos ir à lua, inventar foguetes, etc.; os valores se estão alterando; a “Coca-Cola” conquistou todo o mundo; as velhas civilizações estão desabando. A rapidez da mudança é maior do que o fato da mudança. Todos os velhos deuses, tradições, salvadores, Mestres, estão-se indo, ou já se foram. Uns poucos ainda se aferram a eles, erguendo muros defensivos ao redor de si mesmos — mas tudo se vai. E a mente não se interessa pela destruição, não se interessa pela criação; só lhe interessa defender-se, buscar sempre outros abrigos, um novo refúgio.
Assim, se aprofundardes seriamente a questão da humildade, não deixareis de pôr em dúvida todo esse mecanismo de aprender — o aprender no nível verbal, que nos veda a percepção das coisas como são. A mente que já não se preocupa com mudança nada teme e, portanto, é livre. E, a meu ver, a mente que compreendeu essa coisa — essa mente, decerto, é essencial; porque com essa compreensão a mente já não luta para ajustar-se a outro padrão, já não se abre a novas experiências, nada mais pede nem exige — porque é livre. E, então, talvez possa surgir aquilo que não tem nome. A humildade, portanto, é essencial, mas não a humildade artificial, cultivada. Devemos estar desprovidos de capacidades, de dons; devemos, interiormente, ser o mesmo que nada. E, parece-me, se se percebe isso, sem se tentar aprender como ser “o mesmo que nada” — pois isso é muito estulto e absurdo — parece-me que, então, ver é experimentar; e, assim, talvez possa manifestar-se “a outra coisa”.[...]
Krishnamurti, Saanen, 01 de agosto de 1961, O Passo Decisivo