A verdadeira revolução é espiritual
Como salientei no último domingo, a verdadeira revolução, a transformação radical não pode realizar-se no nível físico, mas, única e fundamentalmente, no nível do espírito, e esta noite desejo aprofundar mais ainda esta questão.
A verdadeira revolução é a religiosa, e não a revolução de ordem meramente econômica ou social. Uma revolução fundamental só pode verificar-se quando o homem é verdadeiramente religioso; porque outra qualquer espécie de revolução é puramente uma continuidade, sob forma modificada, do que já existe. Importa compreender-se o que entendo por “revolução religiosa”. A menos que haja uma transformação no nível fundamental do nosso pensar, do nosso ser, as alterações superficiais, de qualquer natureza que sejam, as persuasões, as compulsões, ou os ajustamentos ao ambiente, não constituem a verdadeira transformação. Tais modificações só podem acarretar maiores danos e sofrimentos. A revolução, pois, tem de ocorrer no nível denominado “religioso”, o qual desejo agora considerar.
Antes disso, porém, repito — acho muito importante saber escutar, porquanto nós não escutamos verdadeiramente. Ouvimos palavras, conhecemos-lhe o significado geral e com isso nos satisfazemos. Mas escutar é coisa toda diferente. A meu ver, quando se sabe escutar, esse escutar, por si só, produzirá aquela revolução fundamental. Escutar não é um esforço, uma vez que o esforço implica continuidade de propósito, continuidade da memória em determinada direção; e a memória é diretora, não é criadora. O escutar, quando sabemos escutar, é uma força verdadeiramente criadora, porquanto no escutar não se requer absolutamente a participação da memória. Quase todos nós, porém, escutamos com uma atitude de resistência. Se digo alguma coisa de que não gostais, ou se digo algo de que gostais, vos pondes imediatamente a julgar, repelindo o que vos desagrada e aceitando o que vos agrada; mas isso não é escutar. O escutar é um processo em que a mente está verdadeiramente tranquila, não está interpretando o que ouve, não está traduzindo, mas, sim, acompanhando, sem esforço nenhum — uma vez que o esforço é de efeito destrutivo. Quando se sabe escutar, revela-se em plena luz o significado do que se diz, sua verdade ou falsidade; mas se se opõe a uma sugestão outra sugestão, a uma ideia outra ideia, nunca se descobrirá a Verdade ou a falsidade de uma asserção. Acho muito importante compreender o que estou dizendo neste momento, isto é, que cumpre descobrir a verdade ou a falsidade de tudo o que ouvimos dizer. Cumpre escutar o que se diz, sem se lhe opor uma opinião, uma lembrança, uma experiência anterior. O que estamos tentando, nestas palestras, não é convencer-vos a respeito de coisa alguma, não é persuadir-vos a adotar uma determinada atividade, pois isso seria mera propaganda, sem nenhum valor. O que estamos tentando — vós e eu juntos — é promover aquela revolução radical no processo do desenvolvimento humano total, e não num nível determinado. Parece-me, portanto, sumamente importante saber-se escutar. Não vos estou sugerindo nenhuma linha de ação determinada, não vos ofereço nenhum padrão de pensamento, nenhuma filosofia. A revolução segundo um padrão não é revolução. Quando sabemos em que é que vamos ser transformados, não há transformação alguma. Mas, se nos transformamos em algo que não conhecemos — o desconhecido — isso é revolução. E desejo nesta noite, se possível, examinar esta questão de modo bastante simples. Temos aí um problema muito complexo, mas eu acho que, se for possível acompanhar tranquilamente, sem oposição nem resistência, o que se vai dizer, a fim de se compreender a sua verdade ou falsidade, então essa verdade ou falsidade produzirá sua ação própria.
Para a maioria de nós, religião é dogma, crença, quer se trate da religião comunista, da cristã ou hinduísta. O dogma, a tradição, os rituais, as esperanças, a luta perene para “vir a ser” alguma coisa, alcançar o ideal — o homem ideal, o amor ideal, o Estado ideal — é o que chamamos religião. Mas isso, por certo, não é religião. Religião não é conformidade, religião não é uma busca, impulsionada pelo pensamento contínuo. Religião é coisa totalmente diversa. Eis porque muito importa compreender essa palavra, não de acordo com o que pensais ou o que eu penso, mas compreender-lhe a significação, toda a sua significação e alcance. A mente é capaz de criar qualquer forma de ilusão, ilusão que pode ser o ideal, ou Deus. Mas o culto dessa ilusão não é religião. A ilusão, a “projeção” da mente que — sob qualquer forma ou em qualquer nível que seja — quase todos nós adoramos, é uma coisa nascida da esperança, nascida do desejo, da ânsia. Esse desejo pode criar uma imagem; e a imitação, a busca desse ideal, o “tornar-se esse ideal” está sempre confinado na continuidade da mente. A mente não pode produzir nenhuma revolução, nenhuma transformação radical. O que poderá produzir a revolução radical, a revolução total no pensar do homem, é a cessação da continuidade da mente como pensamento.
Tende a bondade de escutar. Não compareis o que estou dizendo com o que tendes aprendido ou lido nalgum livro religioso ou outro qualquer. Não compareis. Se comparais, não estais então escutando o que digo. O importante é escutar o que se está dizendo. Quando comparais, nunca encontrais a verdade ou a falsidade do que ouvis dizer, porque a vossa mente está então ocupada com a comparação e não com a compreensão do que é. Assim, pois, as invenções da mente, quer sejam as de ordem puramente física, científica ou abstrata, quer sejam as invenções consistentes em “projeções” dela própria, em ideais dela própria, a que ela chama Deus, Verdade, Amor, — o copiar dessas projeções, o esforço para alcançá-las, tudo isso é continuidade da mente.
Sabemos o que é a inveja, e temos uma ideia de que ser verdadeiramente religioso é achar-se num estado de “não-inveja” O homem invejoso, evidentemente, não é um homem religioso, tão pouco como o é o homem ambicioso, seja no nível físico, seja no nível psicológico. Ora bem, ouvindo dizer que a inveja não é um sentimento religioso, e verificando ser a inveja uma série de lutas e dores e que ela só traz sofrimentos, diz a mente: “Não devo ser invejosa” e isso importa em “vir a ser” — a continuidade do estado de ser invejoso, como o denominamos. O ideal, a perseguição do ideal, que chamamos “vir a ser não-invejoso”, é ainda “inveja”.
Estamos falando agora sobre a cessação do “vir a ser”, na qual, tão somente, é possível aquela revolução que é a verdadeira revolução religiosa. Parece-me importante compreender isto. Nossa educação, nossa cultura, as influências que nos cercam, nosso condicionamento, tudo é “vir a ser”. Este é um fato óbvio, não achais? Sou pobre e quero tornar-me rico. Sou invejoso ou violento ou irascível, e acho que devo tornar-me pacífico, não ambicioso — quer dizer, devo “vir a ser alguma coisa”. Assim, nosso condicionamento e cultura, no seu todo — social, econômico, religioso — é “vir a ser”, é processo de “vir a ser”. Isto não é um fato? Observai o funcionamento da vossa mente, para verdes que é um fato evidente. O “vir a ser” é continuidade do “eu”, da ideia, um mecanismo constante; e esse mecanismo nunca poderá produzir uma revolução. Só é possível revolução, modificação, transformação radical, ao cessar o “vir a ser” — não quando me torno “não invejoso”, mas quando não há mais inveja.
Consideremos o ideal da “não-violência”. Dizeis: “Tornar-me-ei não-violento”. Afirmais que ireis praticar o ideal da “não violência”. Isto é, tornar-vos-eis não-violento. Sois violento; mas, mediante um processo de meditação, exercício, disciplina, vos tornareis “não violento”. A “progressão” da violência para a não violência, não é revolução; é meramente um processo de “vir a ser”, e, consequentemente, não há transformação nenhuma. A mente que se acha num constante “vir a ser”, numa constante busca, deixando-se constantemente persuadir, condicionar, nunca se tornará “não violenta”; nessa mente nunca será possível uma revolução fundamental. Só quando a mente reconhecer o processo de “vir a ser” no tempo, e reconhecer que a cessação do “vir a ser” é o ser, só então haverá o ser; nesse ser, e só nele, é possível a revolução radical.
Pois bem, se escutardes, vereis que enquanto a mente — que é o centro de todo “vir a ser”, já que a mente é resultado do tempo e o tempo é contínuo — enquanto a mente estiver cultivando um ideal e “se tornando” alguma coisa, não poderá haver transformação. Só pode haver revolução, revolução radical, revolução total no desenvolvimento do homem, quando cessa o “vir a ser” — e não quando a mente “se torna” uma mente perfeita; a mente não pode tornar-se perfeita, a mente não pode ser livre e sem “vir a ser”, porque a liberdade implica a cessação da continuidade do que foi. Assim, pois, ao reconhecerdes a verdade a esse respeito, haverá o silêncio da mente, e isso não significa que a mente se tornará silenciosa; o silêncio não pode ser alcançado, a mente não pode tornar-se silenciosa. Porém, quando percebe que “vir a ser” é processo de luta, processo de esforço, e que o esforço não pode produzir a paz, porque o que foi não sofrerá solução de continuidade, no tempo, — quando a mente percebe bem isso, não há mais “vir a ser”. Só com o terminar do “vir a ser”, há o silêncio mental.
Prestai atenção a isso, por favor. Quando há silêncio, nesse silêncio não há “vir a ser”. Ninguém pode “tornar-se” silencioso. Se se faz algo para se tornar silencioso, o que se obtém é apenas a continuação de uma atividade, a que se dá agora o nome de “silêncio”, mas que tinha antes o nome de sofrimento. Deste modo, a compreensão do “vir a ser” é o começo do silêncio, e esse silêncio é o “estado de ser”, é a compreensão total do mecanismo do homem; e esse ser é revolução, a transformação total do nosso existir; só então há a possibilidade de surgir o atemporal, o Eterno. Só são verdadeiramente revolucionários os homens que alcançaram aquele estado, porque já não pensam em “termos” de ajustamentos econômicos, sociais ou temporários .
Acho da maior importância compreender isso, porque os mais de nós, principalmente neste país, estamos contaminados pela praga do ideal, do cultivo do ideal. Todos queremos tornar-nos a pessoa ideal, o ser perfeito; por essa razão, praticamos disciplinas, sustentamos uma luta perene para nos tornarmos alguma coisa, e por isso nunca somos, em momento algum. Estamos sempre “nos tornando”, e nunca somos; nenhum momento é cheio, para nós; só o amanhã está cheio. Dessa maneira, perdemos o movimento da vida; a plenitude da vida. Se observardes a vossa mente, vereis jamais estamos quietos um minuto, mas sempre tentando ficar quietos. Só conhecemos o esforço, só conhecemos o “vir a ser”.
Conhecemos o ideal do silêncio, nossa mente persegue constantemente esse ideal, lutando, disciplinando-se, controlando-se, moldando-se, para alcançar aquele silêncio em que o Real pode manifestar-se; mas o Real nunca surgirá naquele silêncio, pois aquele silêncio é “vir a ser”. Só quando a mente compreende, na sua totalidade, o processo de “vir a ser”, perseguir, lutar, moldar-se, para ser outra coisa, só então há a possibilidade de cessar o “vir a ser” e operar-se a revolução, só então a mente é verdadeiramente religiosa. O homem religioso não é aquele que se torna um Sanyasi, que luta para “vir a ser”, alcançar virtudes ou tornar-se um “homem ideal”. O homem religioso é aquele que desistiu de “vir a ser”; por essa razão, para ele há só um único dia, um único momento — e não o momento de ontem, ou o momento de amanhã. Esse homem é o verdadeiro revolucionário; porque ele se integrou na realidade.
Releva não apenas escutar o que se diz, mas que se saia daqui como um ente humano completamente transformado — não por ter adquirido ideias novas, uma nova perspectiva das coisas, valores novos, ou por ter abandonado a tradição — que são puerilidades, atividades próprias da imaturidade. O importante é a mente não deixar espaço em si senão para o “estado de ser”.
Nosso espírito está sendo continuamente moldado por nós mesmos, pelas circunstâncias. Estamos sendo empurrados em todos os sentidos, sendo condicionados, como hinduístas, católicos, cristãos ou comunistas. Enquanto nos acharmos nesse estado, não criaremos um mundo novo. Só o homem que nenhuma outra religião tem senão a religião do “ser” — o “estado de ser” não tem nenhum espaço, nenhum canto onde a mente possa “vir a ser alguma coisa” — só ele criará um mundo novo.
Vós e eu temos de produzir um mundo novo — não o novo mundo ideados pelos comunistas, católicos ou capitalistas, mas um mundo totalmente diferente, um mundo livre, livre no movimento do ser e não do “vir a ser”. Nunca é livre o homem no “vir a ser”; está sempre a lutar, sempre competindo para “vir a ser”; jamais é livre. Prestai atenção a isso, por favor. Escutai-o. Se escutardes verdadeiramente, vereis que existe a liberdade sem “vir a ser”. Só nessa liberdade sem vir a ser pode um homem ser realmente feliz; o homem que a alcança é o homem feliz, integrado naquele espírito fundamental que cria o mundo novo.
Como tenho dito, o importante ao fazer-se uma pergunta, não é achar a resposta, mas compreender o problema, porque só o problema existe, e não há resposta. Fazer uma pergunta é coisa fácil; mas penetrar o problema é extremamente difícil e relevante, porque, sabendo-se de que se constitui o problema, o próprio percebimento do problema é a compreensão do problema. No momento em que posso formular o problema com toda a clareza e simplicidade, a resposta se apresenta — não tenho de procurá-la mais longe. Mas, em geral, nós não sabemos o que é que constitui o problema. Vemo-nos confusos com respeito ao problema, e, naturalmente, por causa dessa confusão, procuramos soluções; e essas soluções só produzirão mais confusão.
Compreendei, de uma vez por todas, que não há respostas para a vida. A vida é uma coisa viva, e não uma coisa que tem fim; a vida é o problema. Se sou capaz de compreender, no seu todo, o “mecanismo” do problema, ele é então para mim uma coisa viva, e não uma coisa que me faz fugir e que me assusta. O importante, pois, não é a resposta, mas que se apresente o problema de modo claro e simples e se perceba tudo o que ele implica. Porém, a mente que busca uma resposta, é uma mente sem penetração, uma mente estúpida. A mente que percebe o problema no seu todo, na sua sutileza, que percebe seu conteúdo e significação, suas variações e sua extensão, torna-se, ela própria, o problema. Quando a mente é o problema, já não busca resposta alguma. Sendo o problema, ela se torna quieta; e no momento em que a mente está quieta, não existe mais problema algum. Releva pois, não indagar uma solução, mas dispor-mo-nos a penetrar o problema.
Krishnamurti, Segunda Conferência em Bombaim
Krishnamurti, Segunda Conferência em Bombaim
10 de fevereiro de 1954, As ilusões da Mente