O mecanismo de deterioração mental
PERGUNTA: Observa-se na Índia, hoje em dia, uma total ausência de beleza e a destruição das coisas belas, em todos os setores — político, social, psicológico e cultural. A que atribuís esse fato e de que maneira obviar essa desintegração total?
KRISHNAMURTI: Porque há desintegração, não só nesta terra infeliz, superpovoada, miserável e faminta, mas também no mundo inteiro? Porque existe esta desintegração? Não procureis uma resposta; esperai. Não apresenteis razões imediatas, porque as vossas razões serão de acordo com o vosso fundo, vosso condicionamento comunista, hinduísta, capitalista, cristão, ou qual seja ele. Prestai atenção: quando vos fazem uma pergunta — “Porque há desintegração?” — a vossa resposta é ditada pelo vosso fundo, vossos conhecimentos, vossa experiência, não é verdade? Esta reação não é a causa da desintegração? Examinemos esta questão vagarosamente, para acharmos a verdade respectiva. Porque há desintegração? Porque se tornou a mente medíocre, inferior? Porque estamos interessados só em nossas insignificantes pessoas? Porque nos identificamos com um “eu maior” — que, contudo, é ainda medíocre? Porque sou pequeno, identifico-me com algo que é maior; porém, minha mente continua pequena, inferior. Posso identificar-me com Deus, com a Verdade, ou com a Nação; mas minha mente continua medíocre. Por mais que a mente se identifique com algo maior, esse próprio processo de identificação é sempre de ordem inferior.
Senhores, porque nos vemos presos nesta rede de inferioridade, de deterioração? Sabeis que a vossa mente está a deteriorar-se? Ou dizeis: “Minha mente não se está deteriorando; está funcionando maravilhosamente, sem esforço algum, como um mecanismo impecável, sem resistências, sem temores, sem pensar no amanhã”? É óbvio, só muito poucos de nós podemos dizer tal coisa. Se puderdes compreender porque a mente se deteriora, compreendereis então porque se está desintegrando a cultura e porque se desintegram os valores sociais e as várias formas e expressões da beleza.
Porque se está deteriorando a mente? Este é que é o problema, e não: “porque há, na Índia, desintegração em todos os setores?”. Porque se desintegra a vossa mente? Se um ou dois de nós pudermos compreender isto verdadeiramente, um ou dois de nós poderemos transformar o mundo. Já que, em geral, não estamos interessados em tal coisa, não nos achamos capacitados para efetuar uma revolução completa. Nessas condições, só aqueles poucos que puderem compreendê-la verdadeiramente serão capazes de produzir no mundo uma revolução de extraordinária magnitude.
Porque se está deteriorando a vossa mente? Dizeis que, culturalmente, nos estamos desintegrando. Que é “cultura”? É simples expressão, imitação de uma forma, concebida pelo espírito humano? Atualmente, na Índia, a mente está completamente tolhida, agrilhoada pela chamada cultura, pela tradição, pela ausência de alegria, pelo medo de uma existência não futurosa, pela falta de segurança ou pelo desemprego. É esta a razão pela qual a mente, tão condicionada que está, tão completamente tolhida, se vê privada da iniciativa, do impulso criador? É porque a mente tem a tendência de imitar e copiar, é por isso que ela se está desintegrando e não pode estar intensamente ativa, criando?
Como pode ser criadora a mente quando existe temor? O problema, portanto, não é o seguinte: “Pode a minha mente, a vossa mente, a mente comum, a mente que está agitada, por causa das responsabilidades de família, dos seus deleites, da rotina num escritório, debaixo de um chefe tirânico, a mente prisioneira da tradição, da riqueza — pode a mente em tais condições ser criadora?” Se se liberta do seu condicionamento, é claro que a mente é então criadora. Se percebe a verdade de que qualquer modalidade de imitação lhe é perniciosa, é claro que a mente abandonará a imitação. Mas nós não enxergamos essa verdade. Por essa razão prossegue, sem diminuição, o lento processo da desintegração.
Pode uma mente estar livre do medo? Aí está o âmago do problema, pois o medo é desintegração Quando intimidamos uma criança, ela cede; mas com a imitação, a compulsão, destrói-se o espírito. Pode ele estar livre do medo? O medo não existe só sob uma determinada forma — medo de ser punido, medo de perder o emprego, medo ao insucesso — porque a mente teme em todas as suas relações. Pode ela estar livre do medo, onde quer que ele se encontre, no escritório ou no lar, em qualquer parte onde atue? Não digais “não”. Se sei que tenho medo, nas minhas relações e a vários respeitos, esse próprio conhecimento, esse percebimento mesmo da existência do temor, produzirá uma transformação. Mas a transformação é impossível se se quer transformar o medo noutra coisa, por exemplo, em amor; porque, nesse caso, o amor será uma outra forma do temor. Vede bem isso, senhores. Se reconheço que tenho medo de alguém e não desejo transformar esse medo noutra coisa, se sei, simplesmente, que tenho medo, o medo, então, começa a transformar-se em algo totalmente diverso daquilo que a mente deseja.
Enunciemos o problema de outro modo. O problema existe por causa da resistência, e se não há resistência, não há problema. Mas, para se compreender a resistência requer-se extraordinário discernimento e penetração, e não mera determinação ou ação da vontade, dizendo-se: “Não sustentarei resistência alguma”. A própria declaração: “Não sustentarei resistência”, é uma forma de resistência. Entretanto, se compreenderdes a profundidade, a qualidade, as várias modalidades de resistência, existentes na mente — as quais são dificílimas de descobrir — vereis então que o problema do medo nem chega a nascer. A mente está então morrendo todos os dias, não está mais a acumular. E esse morrer para cada dia significa morrer para tudo o que se sabe, morrer para a experiência, morrer para todas as coisas que se têm acumulado, estimado, acalentado. Só então existe a possibilidade do nascimento de uma mente nova, uma mente criadora.
Enquanto se for hinduísta, comunista, budista ou o que quer que seja, não se pode ter um espírito novo. Enquanto a mente está na sujeição do temor e, por essa razão, observando determinada rotina ou ritual, ela não é uma mente nova. Enquanto se pratica puja e se observam mandamentos — atos esses que são “projeções” do medo — a mente não pode ser nova. Se, ouvindo estas palavras, dizeis: “quero ter uma mente nova”, não a tereis. A mente nova não nasce por obra do desejo e da compulsão. Ela só pode nascer espontaneamente, uma vez compreendida pela mente a sua própria capacidade, suas atividades, suas profundezas.
É importante compreender a verdade a respeito da transformação. A mente não pode repudiar o temor, porque ela própria é temor, e é só isso o que se conhece da mente: o medo — medo ao que digam de nós, medo da morte, medo de perder o que se tem, medo à punição, medo de não alcançar o que se deseja, medo de “não preenchimento”. A mente, pois, nas suas condições atuais, é toda temor. E quando essa mente deseja transformar-se, continua, não obstante, no campo do temor; este é um óbvio fato psicológico. Inventa, assim, a mente um “eu superior”, o Atman, para operar a transformação; mas este, também, está na esfera do temor, já que é uma invenção mental. Não importa o que disse Buda, Sankara ou outro qualquer. Tudo continua na esfera do pensamento, e quando a mente aspira à transformação dentro da esfera do pensamento, da esfera do tempo, não há transformação, mas a continuação do medo sob nova forma.
O homem que cultiva um ideal nunca conhecerá uma mente nova; e esta é a praga que infesta o nosso país. Somos todos idealistas, que desejamos adaptar-nos à não-violência, a isto ou àquilo. Todos somos imitadores. Eis porque jamais temos a mente fresca, a mente completa e totalmente nova, e só nossa, não de Sankara, de Marx ou de outro qualquer. Essa total “novidade”, esse estado completo da mente, só pode realizar-se quando não existe experimentador nem experiência; só existe esse estado quando se pode morrer totalmente para cada dia e para tudo o que se tem acumulado psicologicamente. Só então há a possibilidade de uma regeneração completa. Isto não é coisa irrealizável, não é simples retórica. É uma coisa possível, desde que seja meditada e compreendida a fundo; eis porque é importante conhecer, pesquisar o que é verdadeiro. Mas não se pode escrutar o verdadeiro quando a mente não está silenciosa. Se a mente está sempre a pedir, a exigir, a rogar, a desejar isto ou aquilo, a largar uma coisa para pegar outra, não é: uma mente serena. Sede serenos, tranquilos. Vede as árvores, os pássaros, o céu, a beleza, as riquezas da existência humana. Observai, silenciosa e vigilantemente. Nesse silêncio se manifesta aquela coisa indefinível, imensurável, atemporal.
Krishnamurti, Primeira Conferência em Bombaim
7 de fevereiro de 1954, As ilusões da Mente