A compreensão e o despertar da percepção
PERGUNTA: O “percebimento” de que costumais falar deve significar o despojar-nos completamente das muitas facetas da nossa personalidade. Na índia, esta busca de autoconhecimento conduziu, inevitavelmente, à destruição da personalidade, solapando continuamente toda iniciativa e entusiasmo — as forças propulsoras da personalidade. É por isso que se observa, na Índia, essa recusa a lutar contra os males sociais. O vosso ensino, por conseguinte, não contribuirá apenas para aumentar essa letargia do espírito?
KRISHNAMURTI: Sois indivíduos dotados de personalidade? A compreensão e o despertar do percebimento, com tudo o que isso implica, vos despojará daquela personalidade? Sois um indivíduo, ou sois uma massa de “condições”? Se sois hinduísta, cristão, budista, comunista, sois um indivíduo? E sois um indivíduo porque possuís alguns bens, um nome, umas poucas qualidades e tendências? Senhor, que é “individualidade”? Ela deve ser algo completamente único (singular). Mas, nós não somos assim. Quando vos dizeis hinduísta, muçulmano, comunista, estais tão somente a repetir e isso é puramente tradição. Estais condicionado pela vossa sociedade, pela vossa civilização; conforme esse condicionamento, experimentais, e a experiência é memória, é conhecimento. O conhecimento não constitui a individualidade, visto ser apenas, a reação da “condição”. Quando vos tornardes apercebido desse mecanismo total de condicionamento, desse processo de experimentar e acumular conhecimentos, apercebido de que ele não constitui a individualidade, mas é a destruição da existência criadora, quando estiverdes apercebido de tudo isso, não sereis mais cristão, não sereis mais budista, hinduísta, comunista; estareis num estado de revolta total. Mas, enquanto estiverdes aceitando, enquanto vossa mente estiver condicionada como hinduísta, católica, comunista, não sois um indivíduo, mas, apenas, um dente de máquina.
Observai a vossa própria mente e as suas operações. Sois um indivíduo, no sentido de que sois capaz de criar um estado mental inédito, onde se encontre a liberdade, a liberdade de ser? Como podeis ter individualidade, personalidade, se, no mundo inteiro, a cultura e a religião se baseiam na imitação, no copiar? Quando estais em perseguição do ideal, quando sois gandhistas, ou outros istas, como podeis ser indivíduos? Estais apercebido do mecanismo total do temor, que vos faz imitar, que vos faz seguir, que vos faz aceitar a autoridade de um ideal, de um mentor, um Salvador, um sacerdote? É esse temor que vos faz consentir, aquiescer, imitar; é esse temor que destrói a mente verdadeira e criadora. É esse temor que busca resultados garantidos, um “estado de ser” sem medo. Por esse motivo, ele “projeta”, e vós seguis a “projeção”, chamando-a “Salvador”, “guia”, “ideal” . O medo, por conseguinte, vos está compelindo a conformar-vos, e enquanto houver esse temor nunca tereis a possibilidade de ser um indivíduo, jamais tereis a mente criadora.
É importantíssimo compreender o temor, principalmente num, país superpovoado e todo mergulhado na tradição — moderna, ou científica, ou antiga. Enquanto há temor, não pode haver criação; e só a mente criadora é real, única. O percebimento em que não se faz escolha não destrói aquela realidade criadora.
Desde a infância, a vossa mente é condicionada, desde a infância educada no temor, subjugada, coagida, impelida, compelida, sendo-lhe inculcados valores vários. Como pode ser livre essa mente? Tudo o que ela conhece é só temor. Por isso, ela luta sem cessar, para fazer o que é bom e evitar o que é mau. E justamente o “fazer o que é bom” constitui o meio de vencer o temor; não é ação livre de temor, mas subjugação do temor; o temor, por conseguinte, continua a existir. Como pode ser criadora e feliz essa mente?
A mente livre do temor é a mente criadora, e essa mente, graças ao percebimento, graças ao autoconhecimento, não pode perder a Realidade. A mente só pode ser livre em virtude do autoconhecimento — não o autoconhecimento do especialista, o autoconhecimento de Ramanuja, ou Buda, ou Cristo; um tal autoconhecimento não é autoconhecimento. Conhecer a si mesmo de acordo com alguém, Marx, Buda, ou quem quer que seja — não é autoconhecimento. Fisicamente, só podeis conhecer a vós mesmo se de vós estais consciente, consciente das vossas ações, pensamentos, sentimentos, palavras. Entretanto, não podeis estar apercebido do mecanismo total, não podeis ver a plenitude desse percebimento, se comparais, se escolheis, se dizeis “isto é bom”, “aquilo é mau”. Assim, pois, o autoconhecimento através do percebimento não destrói nem solapa a iniciativa: Vós já não tendes iniciativa. Estais, unicamente, seguindo alguma personalidade poderosa, alguém que, segundo pensais, é um verdadeiro líder.
Enquanto estiverdes a seguir alguém, uma autoridade, um livro, não sois criador. Seguis por causa do temor, e a compreensão do temor é o começo da ação criadora.
É muito difícil compreender o temor. Não falo do cultivo do oposto. A mente que está cultivando o oposto, está ainda aprisionada no temor. O percebimento de que vos tenho falado é um estado em que não se faz escolha e em que se pode ver as coisas exatamente como são, e não como desejais que sejam; em que podeis conhecer o que sois verdadeiramente, sem fazerdes escolha alguma. Esse percebimento é inteligência. O homem que está constantemente a escolher, não é um homem inteligente. Um homem só é verdadeiramente inteligente quando não faz escolha alguma; porque a escolha é sempre produtiva do seu “fundo”, (condicionamento, background), e a mente livre não é uma mente feita de escolha. Existirá a escolha enquanto existir o temor, existirá escolha enquanto seguirdes uma autoridade, de qualquer espécie que seja, em diferentes níveis da vossa consciência. Por conseguinte, o seguir outra pessoa é sempre destrutivo. Quando, porém, vos achais no estado de completo percebimento, sóis vós mesmo a luz.
Krishnamurti, Terceira Conferência em Bombaim
14 de fevereiro de 1954, As ilusões da Mente