A percepção que não resulta de escolha
Em nossas três últimas reuniões, estivemos falando sobre a importância de uma revolução religiosa. Por religião, não entendo dogmas, nem crenças, nem ritos. Não consiste, tampouco, a religião na substituição de uma crença por outra; ela é, sim, uma revolução total do nosso pensar e essa revolução, com efeito, é a nossa libertação do conhecido. Desejo, se possível, examinar nesta tarde esta questão, porquanto a mim me parece que toda atividade proveniente do “conhecido” não é, absolutamente, modificação, transformação fundamental. É, tão só, uma “continuidade modificada” do que já é conhecido. A maioria das revoluções políticas, econômicas, sociais ou mesmo as chamadas “revoluções científicas”, são sempre a continuidade do conhecido.
Desejo, se possível, estar em comunhão convosco. Emprego propositadamente a palavra “comunhão”, porquanto acho que não estamos aqui para uma simples troca de ideias, nem temos o desejo de persuadir alguém sobre um determinado ponto de vista ou de estabelecer um programa de ação. “Estar em comunhão” é uma coisa de todo diferente, porque todas as partes devem estar interessadas no assunto, ao mesmo tempo e no mesmo nível. É impossível a comunhão se, quando nos falamos, vós estais interessados numa coisa e eu, noutra; não há então comunhão; só é possível a comunhão quando todos nós, vós e eu juntos, estamos — ao mesmo tempo e no mesmo nível — interessados não apenas em ouvir a expressão verbal, mas também em comungar uns com os outros num nível mais profundo da consciência, a respeito de coisas que não podem ser expressas em meras palavras. Isso requer muita compreensão e muita penetração. Não há possibilidade de comunhão quando se está obstruindo a inteira significação das palavras com uma série de “cortinas de proteção”, objeções, ideais ou preconceitos.
Creio muito importante saber “comungar”, principalmente em questões de tanta monta e significação. Não há comunhão se não amamos a coisa sobre que falamos, se não dedicamos toda a nossa mente e coração à coisa que estamos investigando. Esse amor não exige nenhum esforço de atenção; o que ele requer é aquele “estado de amor” espontâneo e livre, aquela atenção que damos a uma coisa em que nos deixamos absorver. Tratamos neste momento, de um problema que acho de alta significação; a comunhão, pois, é: essencial. Mas não é possível a comunhão se cada um de nós está obstruindo a comunicação com uma série de objeções, aceitações, recusas ou resistências.
Desejo igualmente examinar a questão relativa à nossa libertação do “conhecido”, porquanto religião não é a “continuação do conhecido”. O conhecido é a crença, a disciplina, o exercício, uma determinada forma de meditação inventada por outro como meio de se alcançar um certo estado, ou o método que inventamos para nosso uso, ou o método de uma determinada filosofia, com a experiência que essa filosofia proporciona e continuação dessa filosofia como memória. A continuação da memória é “o conhecido”; e só quando estamos livres da continuidade do conhecido, pode haver comunhão. Parece-me que, para a maioria de nós, a religião sempre foi o “hábito do conhecido” — sendo o conhecido a crença, o dogma, a esperança, o preenchimento de uma experiência da mente educada ou na religião ou num estado de negação de tudo. O crente e o não crente são ambos “continuação da memória”, condicionada pelo “conhecido”. Para a maioria de nós, a dificuldade está na libertação do conhecido. A continuidade de uma experiência, de uma ideia, de uma crença, produz a mediocridade; faz a mente viver num estado de certeza. Quando a mente se acha certa, no conhecimento, na experiência, na crença; quando se sente em segurança; quando busca refúgio numa experiência, dogma ou crença — a mente é, então, medíocre, limitada. Porque, em virtude do desejo de estar segura, de estar certa, ela está apegada a toda forma de certeza, que ela mesma inventa; e, em tais condições, a mente só pode funcionar e viver e mover-se dentro da esfera do conhecido; desse modo, a mente e o coração permanecem medíocres, limitados, mesquinhos. Nossa mente está condicionada pelas nossas crenças, nossas experiências, nosso conhecimento. Com essa mente queremos achar o que é Real, o que é Deus, encontrar algo que esteja além e acima da invenção e da ilusão humanas.
Enquanto existir a continuidade do “conhecido”, existirá também a mente medíocre, e nunca a mente livre. É importantíssimo compreender isso, não apenas verbal ou intelectualmente, porquanto não existe essa coisa de “compreensão intelectual”. Mas aquela compreensão requer profunda penetração das operações da nossa própria mente, visto que toda a estrutura do nosso pensar está baseada no “conhecido”: “Tive uma experiência ontem e esta experiência me está moldando, moldando-me o pensamento, minha conduta, minha visão das coisas”. A experiência pode não ser de ontem, mas de milênios; chamamo-la então “conhecimento”. O conhecimento, pois, é um fator de confusão, na busca da Realidade. Para a maioria de nós há confusão; estamos confusos, não pelo que não sabemos, mas pelo conhecimento das coisas que sabemos; é o saber que cria a confusão. Não é bastante evidente que os mais de nós estamos confusos? Apesar de tudo o que afirmam, a maioria dos líderes políticos, dos guias religiosos, não estão confusos? Tanto o guia como o seguidor estão confusos. Essa confusão se deve à escolha, porquanto nosso conhecimento é memória, a qual nos molda a vida e a ação. Entretanto, não queremos admitir que estamos confusos.
A vida é uma “coisa viva”, em movimento constante; nós reagimos de acordo com a memória, e somos incapazes de ajustamento às exigências imediatas da vida. Por esta razão, nos aproximamos da Realidade, que é uma coisa viva, um processo complexo, com a mente já pejada de conhecimentos, de experiências, de ideias. Não é livre a mente que sempre vai ao encontro da vida com sua memória. Porque, afinal de contas, o “eu”, o “ego” é a acumulação de várias experiências, conhecimentos, memória; o “eu” é todo fundo (background), o “eu” é feito de tempo; o “eu”, o “ego” é o resultado de várias formas de conhecimento acumulado, informações acumuladas; é esse feixe que chamamos “eu”. O “eu” são as numerosas camadas da nossa memória; ainda que não esteja apercebido dessas numerosas camadas, o “eu” é sempre parte do “conhecido”. Assim sendo, quando estou buscando, busco tão somente o que já conheço. O que eu conheço é a “projeção” do meu passado, e a nossa libertação do “conhecido” e que é a revolução verdadeira. A revolução não pode ser promovida por nenhuma disciplina.
Não posso ser livre por meio de nenhuma disciplina ou exercício, visto ser eu um feixe de memória, de experiências, de conhecimento; e se pratico uma disciplina, para libertar a minha mente do “eu”, isso é apenas uma outra maneira de continuar a memória. E não há, assim, possibilidade de nos libertarmos do “eu”, do “conhecido”, estejamos ou não, conscientes disso. Aquela liberdade só pode acontecer quando existe compreensão do mecanismo total do “eu” — mas não para dirigir esse “mecanismo”; porque no “eu”, quando dirige, existe o “diretor” e “a coisa dirigida”, sendo, ambos, uma e a mesma coisa. Não há “observador” diferente da “coisa observada”; só existe uma entidade única: “experimentador — coisa experimentada”. Enquanto houver “o experimentador”, que é o “eu”, a experimentar aquilo que ele deseja, continuamos na esfera do tempo. A dificuldade, por conseguinte, está em que a nossa mente está sempre em movimento do “conhecido” para o “conhecido”. Como deter esse movimento?
A criação é a ação do desconhecido e não do conhecido. “O desconhecido” é a Verdade, Deus, ou como quiserdes chamá-lo. A atividade daquele estado, daquela Realidade, é criadora; é a ação livre da memória. Eis porque eu acho de extraordinária e imensa importância, não que descubramos como libertar a mente do “conhecido”, mas que nos achemos naquele estado em que a mente está livre do conhecido. O estado de liberdade do conhecido é a verdadeira revolução religiosa.
Nossa mente já está muito acostumada a que se lhe diga o que deve fazer. Os livros religiosos, os mentores, os santos, os guias políticos e de todas as outras espécies nos estão sempre dizendo o que devemos fazer — como sermos livres, como podemos ser guiados para ser livres, o que devemos fazer, como devemos disciplinar-nos, praticar virtudes, etc., etc.. Ora, se examinardes isso com muita atenção, vereis que nada mais é do que o hábito contínuo do conhecido; nele, nunca há criação, sendo meramente a continuidade do “eu” sob forma diferente. É só isso que sabemos, é só este o nosso conhecimento. O movimento desse estado para um estado em que haja liberdade, fora do conhecido, esse movimento não pode ser operado por nenhum exercício ou disciplina ou mecanismo de pensamento. Parece-me ser esta a coisa real que se precisa compreender. Se ela for realmente compreendida, lá estará aquela coisa extraordinária — a revolução. Mas, enquanto estivermos pensando só com o sentido em “chegar lá”, com o sentido nos métodos ou práticas que nos ajudarão a “chegar lá”, só teremos a continuidade do conhecido, que está no tempo.
Quando realmente aprendemos, compreendemos o mecanismo desse movimento da mente, partido do conhecido, e compreendemos que qualquer movimento que parte do conhecido não pode participar do “estado do desconhecido”; se realmente compreendemos, se sentimos, se comungamos com a verdade de que todo movimento partido do conhecido nunca nos conduzirá ao desconhecido, aí, então, estará presente o “desconhecido”. Nossa mente, porém, recusa-se a ver esse fato, porque já está muito acostumada a ser instruída sobre tantas formas de Ioga, sobre o seguimento de certas ideologias, observância de sacrifícios, formação de virtudes, desenvolvimento do caráter, etc., etc..
Conheceis todos os movimentos do conhecido. Mas se pudermos apreender realmente a significação desse movimento do conhecido e ver a sua verdade, aí, então, o outro “estado de ser”, o “estado do desconhecido” vem à existência. Eis porque é muito importante compreender o “mecanismo” da mente (o que, afinal, é autoconhecimento) conhecer, ver como num espelho a imagem do pensamento, da atividade da mente, ter conhecimento dela sem condená-la e sem lhe dar nome. Nesse percebimento em que não há escolha, vereis que “a outra coisa” surge na existência. Entretanto, a mente que está à procura do “desconhecido”, tentando experimentar o “desconhecido”, jamais o conseguirá. Quando a mente se torna, ela própria, o desconhecido, só então há criação e se manifesta o Atemporal.
Senhor, que fim tem uma pergunta? É seu fim achar uma solução para o problema, ou compreender o problema? Eu tenho um problema, vós tendes outro; queremos compreender o problema ou buscamos uma resposta, através do problema? Queremos uma solução, ou queremos compreender todos os meandros, todas as complexidades do problema?
A maioria de nós sofre; há a dor e a ansiedade; e os mais de nós temos muito interesse em saber como nos livrarmos dela, como eliminar a dor, a perturbação. Nessas condições, estamos sempre à procura de meios e modos de vencê-la, expulsá-la. O sofrimento interior, psicológico, do “eu”, está sempre forcejando por encontrar uma resposta, uma saída. Mas, se se puder compreender o “fabricante” do problema, o “eu”, que está sempre seguindo, sempre frustrado, sempre a sentir-se sozinho, ansioso, temeroso — então, na própria compreensão do problema e do “fabricante” do problema, apresenta-se a solução. Mas, para a compreensão do problema requer-se uma mente que não esteja em busca de resultado, de resposta. Se observardes a vossa própria mente, vereis o que está sucedendo. Se tendes um problema, desejais que alguém vos diga o que deveis fazer; vosso principal interesse, portanto, está na solução e não na compreensão do problema.
Na resposta a esta pergunta, o que nos interessa é o problema, e não a solução. Se sairdes daqui desapontado, porque vossa pergunta ficou sem resposta, a culpa será vossa, porquanto para a vida não há resposta. A vida não tem resposta. A vida só tem uma única coisa, um único problema, que é — viver. O homem que vive totalmente, completamente, cada minuto, sem fazer escolha, sem aceitar e sem rejeitar a coisa que é, esse homem não está buscando nenhuma resposta, não está perguntando qual é a finalidade da vida, não procura uma saída para a vida. Isso, porém, requer profunda penetração de si mesmo. Procurar, sem o autoconhecimento, uma resposta, não tem significação alguma, porque a resposta será então aquilo que achamos mais satisfatório e compensador. É isso o que em geral queremos; queremos estar satisfeitos, encontrar um refúgio seguro, um Céu, onde não haja perturbação alguma. Mas, enquanto andarmos buscando, a vida será sempre perturbada.
Krishnamurti, Quarta Conferência em Bombaim
17 de fevereiro de 1954, As ilusões da Mente